Quer queiramos quer não, a situação de reclusão que todos estamos a viver por causa da pandemia do covid-19 leva-nos a olhar os filmes com outros olhos, por vezes valorizando aquilo que quase nos passou despercebido, outras vezes atribuindo significados especiais ao que nos pareceu quase indiferente. Assim, ironicamente, do puro drama à mais delirante comédia, as histórias que envolvem alimentos adquirem uma nova pertinência. Pela mais humana das razões: num contexto que nos obriga a redefinir todas as regras de comportamento (e distância) social, como é que organizamos a nossa alimentação?.Por uma espécie de insólito surrealismo figurativo, não deixa de ser curioso perceber que o papel das conservas alimentares nos filmes é muito mais frequente, porventura mais pertinente, do que poderíamos supor. Podemos, aliás, a propósito, recordar a sugestiva imagem de uma lata de conservas que esconde um valioso colar de joias, tal como aparece no filme Love Happy (1949), com os Irmãos Marx (no mercado português: Louco por Mulheres). Será, em todo o caso, uma referência secundária. Trata-se, de facto, de um dos títulos claramente menores da trupe (o próprio Groucho Marx lamentou publicamente os resultados). E se Love Happy ficou para a história, isso deve-se tão-só ao facto de no seu elenco, num papel secundário, surgir uma ilustre desconhecida chamada Norma Jean Mortenson, nessa altura a tentar construir uma carreira em Hollywood com o nome de Marilyn Monroe..No seu limite mais drástico, já vimos as latas de conservas funcionarem, não como adereços mais ou menos decorativos, antes como objetos carregados de uma peculiar energia dramática. Lembremos esse invulgar e magnífico exercício de cinema que é All Is Lost (2013), de J. C. Chandor, entre nós lançado como Quando Tudo Está Perdido. A sua sinopse não podia ser mais linear: sozinho no seu barco de recreio, na sequência de uma colisão com um gigantesco navio de transporte, um homem tenta sobreviver no alto-mar... Ao longo de cerca de cem minutos, o essencial passa-se "apenas" entre as tarefas para manter o barco à tona de água e as austeras refeições - o certo é que tanto basta para se produzir uma contagiante energia emocional, aliás exemplarmente sustentada pela subtil interpretação de Robert Redford naquele que é, por certo, um dos papéis mais desafiantes da sua imensa e admirável filmografia..A sobrevivência, convenhamos, é cinematograficamente fotogénica. Pensemos, por exemplo, na odisseia de Matt Damon em Perdido em Marte (2015), de Ridley Scott: a paciente criação e o tratamento da sua horta tem qualquer coisa de profundamente comovente, não apenas porque se trata de sobreviver, também sozinho, no Planeta Vermelho, mas sobretudo porque, desse modo, ele repete o misto de vulnerabilidade física e força criativa dos homens primitivos. E que dizer da candura da personagem de Tom Hanks em O Náufrago (2000), de Robert Zemeckis? Ele vive, afinal, um cruel paradoxo: como funcionário dos correios dos EUA, é seu dever e vocação garantir a circulação das cartas e encomendas entre os seres humanos; sozinho numa ilha deserta, na sequência de uma aterragem de emergência, o mundo vai-se esboroando e tudo adquire um espetacular valor de sobrevivência, até mesmo a arte de guardar numa casca de coco as gotas que escorrem das folhas das árvores..Será, talvez, excessivo definir o cinema da nossa época a partir de um sentimento desesperado de sobrevivência. Afinal de contas, os filmes existem numa paisagem socialmente ambivalente: por um lado, integram sintomas dos nossos comportamentos individuais e coletivos; por outro lado, libertam-se de qualquer obrigação "sociológica" para existirem como aventuras de um espírito que procura, interroga e imagina para além das evidências do tempo presente..Lembremos, ainda assim, três títulos relativamente recentes em que os enigmas da vontade humana oscilam entre o realismo das mais cruas condições de sobrevivência e as ilusões de uma utopia radical. A saber: O Lado Selvagem (2007), de Sean Penn, 127 Horas (2010), de Danny Boyle, e Ártico (2018), de Joe Penna. Todas as personagens centrais - interpretadas, respetivamente, por Emile Hirsch, James Franco e Mads Mikkelsen -, as duas primeiras inspiradas em figuras verídicas, vivem a mesma trágica odisseia: descobrem que a exuberância visual e emocional dos elementos naturais pode ter tanto de libertador como de destruidor. São histórias radicais de sobrevivência e dificilmente podemos encará-las como redentoras..Lembram-se da arrecadação do hotel em que se passa o filme Shining (1980), de Stanley Kubrick? É um espaço que descobrimos com a mesma curiosidade das personagens centrais: a família Torrance vai passar ali o inverno, cumprindo tarefas de manutenção durante o período em que as instalações estão encerradas aos turistas. Com as suas muito variadas latas de conservas, a arrecadação possui qualquer coisa de cenário de uma história de bonecas, acolhedor e lúdico. Será no mesmo cenário que o pai (Jack Nicholson) é fechado pela mãe (Shelley Duvall), assustada com a violenta transfiguração do seu comportamento... Quer isto dizer que sentimos o cenário a transfigurar-se através das convulsões dramáticas do próprio filme, a ponto de as latas de conservas se tornarem artefactos de um espaço dantesco. Não é uma questão alimentar - apenas a marca de um cineasta de génio.