Miguel Sousa Tavares usa as palavras do escritor Gabriel García Márquez "não se morre quando se quer, mas quando se pode" para, cem anos depois do nascimento do seu pai, a 12 de junho de 1920, recordar num texto que publica esta sexta-feira no site do Centro Nacional de Cultura e onde recorda o facto de ter morrido antes do que lhe "prometera"..Para Guilherme D'Oliveira Martins, esta evocação deve-se ao facto de Francisco de Sousa Tavares ter "sido a grande alma do Centro a partir de 1957, sem cuja determinação, entusiasmo e inteligência, não teríamos sido na sociedade portuguesa o que fomos, na afirmação firme dos valores da liberdade, da cultura e da democracia". Por essa razão, o CNC vai realizar várias atividades sobre o seu antigo dirigente após o fim da pandemia..A recordação de Miguel Sousa Tavares intitula-se O Homem do Largo do Carmo devido a uma fotografia do pai de megafone na mão a falar aos portugueses que se juntavam nesse local no dia 25 de abril de 1974, a aguardar o destino do presidente do Conselho derrubado pelo golpe militar dos capitães de Abril. Também a imagem presente na capa de um livro que recolhia os seus escritos políticos, produzidos entre 1975 e 1993, em várias publicações, sendo certo que foi no Diário de Notícias onde Francisco de Sousa Tavares teve impressos os últimos textos..Para Miguel Sousa Tavares, ainda lhe faz falta "muitas vezes ouvir a sua voz nestes tempos tão incertos e tão intimidantes como os que vivemos". Explica que o pai "sempre viveu intensamente a politica, primeiro como imperativo cívico, depois, e sobretudo, como exercício intelectual que o fascinava". Ao reler esses artigos, o filho Miguel "constata a alternância entre a intervenção politica, imediata e inadiável, sobre aquilo que acontecia no momento e a persistência de um pensamento politico anterior, fundamentado e para além do rescaldo dos dias"..Destaca também o facto de Francisco de Sousa Tavares não ter "nascido politicamente em 25 de Abril de 1974" e não ter "morrido intelectualmente no dia seguinte, coisa que tantos oportunistas do 26 de Abril jamais lhe perdoaram"..Miguel Sousa Tavares confessa que "não se esperará de um filho que ele proceda a uma análise isenta do que foi o seu pai, mas se o guardo na memória nesse território íntimo e impartilhável, também sempre o vi do ponto de vista do cidadão. E é como cidadão próximo, e não como filho, que me permito apenas resumir o essencial do seu caráter: impulsivo, generoso, por vezes caótico, de uma cultura histórica e politica rara e apaixonada, de uma inteligência que às vezes cortava a direito como uma lâmina que até podia ferir e magoar, um ser indomável, instintiva e ferozmente livre e, acima de tudo, aquilo que para mim será sempre inesquecível: de uma coragem inaudita. Coragem intelectual, pessoal, física.".Um poema de Sophia.Essa é também a memória de Guilherme D"Oliveira Martins que, ao DN, recorda um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, em que a poeta escrevia sobre o marido os seguintes versos em Porque:.Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão Porque os outros têm medo mas tu não.Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não..Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não..Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não..Estas palavras de Sophia estão no livro Mar Novo, o livro da poeta de 1958 e em que rompe com a situação política numa altura em que o marido é presidente do CNC. Para Oliveira Martins, "o Centro torna-se o centro de gravidade da ação de Francisco de Sousa Tavares, numa atividade que vai culminar em 1965 com dois acontecimentos: o célebre documento dos 101 Católicos, que é muito crítico ao regime e aos métodos policiais da altura - que o cardeal Cerejeira não condena publicamente; o fecho da Sociedade Portuguesa de Escritores devido à atribuição do Grande Prémio a Luandino Vieira pelo seu romance Luuanda, sendo que convida os escritores espoliados da sua sociedade a reunirem-se no CNC. Situações que vão representar uma grande alteração no CNC, pois gera a possibilidade do aparecimento de uma geração mais nova, como a de Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Nuno Júdice ou Eduardo Prado Coelho. No ano seguinte, Francisco de Sousa Tavares será preso..Anos depois, já em 1974, o CNC acolhe na clandestinidade a nova Comissão de Apoio aos Presos Políticos e é por isso que também se vê a presença de Francisco de Sousa Tavares no acompanhamento da libertação dos presos políticos de Caxias a seguir à Revolução de Abril..As comemorações do centenário de Francisco de Sousa Tavares pretendem reunir até ao fim do ano vários dos seus contemporâneos e, quando acabar a pandemia, explica Guilherme D'Oliveira Martins, "queremos passar da celebração digital para a física e ter uma participação de viva voz de todos os que conheceram Francisco, ouvir os seus testemunhos de modo a salientar, além do papel na vida política nacional, a posição muito importante no Centro a partir de 1957". Acrescenta: "É ele que promove a abertura do CNC, até então constituído por um grupo inicial de monárquicos críticos do regime salazarista, e dá novos horizontes à organização. Ele já fora penalizado em 1958 por ter apoiado a candidatura de Humberto Delgado às presidenciais e vê-se afastado da função pública, mas em 1959 participa da Revolta da Sé com o padre Perestrelo, Jorge de Sena, António, Alçada Batista e Manuel Serra, entre outros.".É Francisco de Sousa Tavares que altera o rumo da história do CNC, pergunta-se a Guilherme D'Oliveira Martins: "Totalmente. Torna o CNC uma instituição plural e democrática, tendo a extraordinária capacidade de compreender a necessidade de renovação geracional e fazer com que pela primeira vez se coloque a questão do debate sobre o tema colonial, designadamente com o Nuno Teotónio Pereira e o Frei Bento Domingues.".Sobre este debate colonial, Guilherme D'Oliveira Martins recorda uma história entre Francisco de Sousa Tavares e a PIDE: "A polícia foi ao CNC buscar os papéis como os que o Nuno Teotónio Pereira tinha distribuído relativamente à questão colonial. Apresentam-se nas instalações do Centro quando o Francisco estava já a fechar a porta, mas os agentes obrigam-no a reabrir a porta para podem apreender esses documentos clandestinos. O Francisco garante aos da PIDE que não havia lá nada de clandestino, mas eles não aceitaram a resposta e entraram à mesma. Os agentes vasculharam tudo o que era possível mas nada descobriram. O que tinha acontecido: pouco antes de sair, o Francisco tinha posto no congelador do frigorífico tudo o que poderia ser perigoso e ninguém se lembrou de verificar nessa parte do aparelho.".Para Guilherme D'Oliveira Martins, a celebração do centenário de Francisco de Sousa Tavares impõe-se: "Há no Centro Nacional de Cultura a partir de 1957 um momento antes e um momento depois, devido a uma total renovação democrática do Centro: Constitui-se como um centro de oposição muito diverso e, hoje fazendo o balanço, compreende-se a importância dessa renovação. Ele percebeu que era necessário lançar as bases de uma sociedade aberta e democrática e onde todos tivessem lugar. Desde os mais próximos do PCP, dos maoistas, dos democratas moderados e, praticamente, toda a pré-representação do pensamento que deveria existir numa democracia."