O catalão, essa nossa língua

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Se não nos entendem pela língua, entendam-nos pelo amor", assim, na sua língua catalã, criava o balear Ramòn Llull uma das obras literárias fundamentais espanholas do século XIII, escrita numa das línguas românicas que os espanhóis falavam. Conheciam-nos como espanhóis - palavra provençal, mais catalã do que castelhana - aos povoadores daquelas heterogéneas povoações que ocupavam as zonas cristãs da península ao sul dos Pirenéus.

O Instituto Cervantes de Lisboa, que tem como missão ensinar e divulgar o espanhol e a sua cultura, tinha a obrigação de ensinar essa outra língua oficial que desde há séculos nos emociona na sua literatura e que foi - e continua a ser - imprescindível para entender a cultura do Mediterrâneo, a cultura europeia, a nossa própria cultura. Como não podemos dar aulas amatórias, dedicar-nos-emos à língua, a difundir e melhorar a língua catalã. Também gostaríamos de oferecer aulas de uma das línguas mais antigas e misteriosas do mundo, o basco. Estamos a trabalhar nisso. Queremos oferecer o galego, mas em contrapartida oferecemos também aulas de português.

Diz-se n"Os Lusíadas: "A nobre Hespanha, cabeça de Europa toda". Esse passado comum, essa maneira ibérica de estar no mundo, teve erros, proibições e até perseguições por parte de alguns governantes que quiseram impor a língua castelhana sobre as outras línguas ibéricas. Tentativa repetida na história que nunca conseguiu fazer calar a fala, a escrita e a cultura nas outras línguas. A Catalunha, como a Galiza, conservaram as suas línguas e desenvolveram uma extraordinária expressão literária. No País Basco a língua teve outro desenvolvimento, outra implantação, outros perigos hoje largamente superados.

Como estamos a falar da Catalunha terei de recordar a lição que nos deu Cervantes ao dizer que o melhor livro do mundo era Tirant lo Blanch, escrito pelo valenciano Joanot Martorell no século XV. Esse romance tão querido a Cervantes que o leu na sua língua original - o mesmo que fez com Camões - é uma das mais originais e ricas obras cimeiras do romance de cavalaria. Só por isso deveríamos conhecer o catalão. Por esse romance total, de cavalaria, fantástico, histórico, erótico, social, apaixonou-se há muitos anos um jovem escritor peruano que chegaria a ser Prémio Nobel. Sim, Mario Vargas Llosa, que depois do convite cervantino e o trabalho fundamental de Martín de Riquer é o mais destacado defensor e divulgador desse romance inicial do idioma catalão. Mas Vargas Llosa, como todos os amantes da literatura ibérica e universal, não se deixou ficar por esse original e extraordinário romance do século XV. Em catalão já estava Ramon Llull, avança com a poesia de Ausias March - que consegue poetizar pela primeira vez fora dos moldes provençais - e um caminho literário que nos levou por outros nomes, por um renascimento - renaixença - e que passou pelo teatro, pela poesia, pelo romance e pelo ensaio do século XX. Não se pode entender a nossa cultura sem a cultura escrita representada ou criada em catalão.

Sou de uma geração que cresceu com o catalão perseguido, uma geração inconformista que não soube compreender nem aceitar que a única língua oficial espanhola fosse a língua do "império". Minha querida língua castelhana usada com mesquinhez e torpeza contra as outras línguas também nossas, também espanholas. Afirmada pela força, para lá da razão. Sim, sou dessa geração que não acreditou no franquismo, que o combateu e que, sendo madrileno filho de castelhanos - ainda que o meu pai tenha nascido em Reus -, quis e continuou a querer às outras línguas espanholas. O catalão foi também a língua das nossas emoções, das nossas canções, dos nossos poemas e do nosso amor a um país que também era o nosso. Formei-me com as canções catalãs, que iam bem com as castelhanas, francesas, italianas ou inglesas, enamorei-me com uma canção de Serrat, afirmei-me como antifranquista com Raimon, tornei-me cético com Pi de la Serra, sentimental e irónico com Sisa, snobe com Guillermina Motta, psicadélico com Pau Riba, hippie com Maria del Mar Bonet e poético piroso com Lluís Llach. Também me tornei aficionado do jazz com Núria Feliu, que cantava os standards em catalão, e, sobretudo, com Tete Montóliu, que nem cantava nem via mas era um visionário catalão e universal. Admirámos aquele movimento da nova cançó na música. Aqueles músicos aproximaram-nos dos seus poetas. Espriu emocionava--nos, queríamos como ele que Sefarad nos escutasse, e na voz de Ovidi Montlor, recordo-me apaixonado a repetir aqueles versos de Ensayo de cântico en el templo: "Car sóc també molt covard i salvatge-i estimo a més amb un desesperat dolor- aquesta meva pobra, bruta, trista, dissortada pátria. [Pois sou também muito cobarde e selvagem - e amo demasiado com uma dor desesperada - esta minha pobre, suja, triste e desditosa pátria.]" Essas músicas, essas letras, faziam-nos sentir de um tempo e de um país; queríamo-nos iguais, próximos, ainda que cada qual no seu idioma.

Um dos mais saudosos intelectuais, escritores e jornalistas catalães, Manuel Vazquez Montálban, dizia que "contra Franco vivíamos melhor". Não era verdade, mas não deixava de ser uma adequada e maliciosa boutade nostálgica. Eram aqueles tempos em que o antifranquismo nos mantinha próximos. Depois conhecemos a transição e as reivindicações do Estatuto de Autonomia, que fizemos nossas. Chegaram a "modernidade", os Jogos Olímpicoss de Barcelona, a Expo de Sevilha e a movida madrilena. Éramos diferentes, mestiços, nacionalistas ou não, de esquerda ou não, mas éramos - quero crer que somos - um país de complementários. Tão diversamente rico. Tão plural, aberto e pouco excludente. A maioria estava com aquilo de Renan, "excluir toda a exclusão". Desejamos vertebrar Espanha, sabemos, como dizia Ortega y Gasset, que "toda a unidade nacional não é uma coexistência inerte, é um sistema dinâmico". Certo é que não se convive para estar juntos, mas sim para fazer algo juntos. E para entoar o mea culpa, para aceitar os erros da história, para os conhecer e evitar repeti-los, voltamos às palavras do autor de A España Invertebrada: "Castela transforma-se no mais oposto de si mesma: torna-se desconfiada, tacanha, sórdida, azeda. Já não se preocupa em potenciar a vida das outras regiões (sic): com ciúme delas, abandona-as a si mesmas e começa a não se inteirar do que nelas se passa." Isto foi escrito no princípio dos anos vinte. Continuou-se a cometer erros até aos nossos dias, se bem que a realidade, as liberdades, a autonomia da Espanha de hoje nada têm que ver com os tempos de Ortega. Sinceramente, se agora o espírito dos castelhanos merece censura pelo particularismo, também a merecem a Catalunha e o País Basco. Continua a ser válido e necessário aquele desejo do pensador: "A ideia das grandes coisas por fazer forja a unificação nacional."

E creio que a maioria desse país de todos os demónios - e de muitos santos e alguns anjos - que é o meu continua contra as exclusões. Esse é o país que queremos aproximar a partir do Instituto Cervantes, o da língua dos poetas, de Verdaguer, Foix, Maragall - que se queixava poeticamente irritado que não os tínhamos escutado na sua própria língua -, Salvat Papasseit, Riba, Espriú o Margarit. O país de Albéniz, Gaudí, Dalí, Miró, Casals, Carmen Amaya, Xavier Cugat, Perucho, Lujàn, Tapies, Marsillach, Espert, Goytisolo, Gil de Biedma, Barral, Marsé, Mendoza, Caballé, Savall, Vila Matas ou Boadella. O país de Peret e Bigas Luna, de Ferrán Adriá e Pau Gassols. Queremos aproximar-nos da língua, da vida, da cultura do país de Josep Pla.

Escrevo esta homenagem particular à Catalunha num 23 de abril, Dia do Livro, Dia de Sant Jordi, padroeiro da Catalunha. Dia de Shakespeare e de Cervantes que escreveu de Barcelona muitas vezes e no final de Dom Quixote assegura que é "das mais belas cidades do mundo, honra de Espanha, regalo e delícia dos seus moradores, amparo dos estrangeiros, escola de cavalaria, exemplo de lealdade e satisfação de tudo aquilo que de uma grande, famosa, rica e bem fundada cidade pode pedir um discreto e curioso desejo".

A 23 de abril de 1981 morreu Josep Pla, o escritor e jornalista que nos aproximou do seu povo e da sua língua, o mestre memorialista que faz literariamente grande o catalão, também foi capaz de escrever, com pesar mas com excelência, em castelhano. Dizia o escritor de Ampurdán, o cosmopolita de Palafrugell, que "o esquecimento é a paixão humana mais duradoura". Um dos nossos maiores escritores do século, que em cada linha nos faz amar essa língua de Espanha que é o catalão, nunca recebeu o prémio Cervantes. Também não recebeu o Prémio de Honra das Letras Catalãs, que desde a sua criação lhe foi negado ano após ano. Segundo o seu amigo e editor, para esse esquecimento teve muito que ver a chamada Omnium Cultural, a história repete-se, chove sobre o molhado naqueles que se creem com o poder de decidir se era bom catalão. Há que ser néscio e mesquinho, pouco culto e nada universal, para duvidar da mestria em catalão de Pla. O velho ampurdanês enrolaria um cigarro, beberia um vinho, um whisky se lhe tivessem chegado alguns rendimentos dos seus escritos, e voltaria a pensar que não poderia estar com estes patrioteiros nem com os outros. "Não pensem que tenho algum sentimento de pátria nem coisas dessas; a minha pátria é saudar na minha língua algum vizinho que conheço mais ou menos. O demais são abstrações, megalomanias que degeneram infalivelmente em guerras, em matanças". Não estamos em tempo de guerras, não degeneraremos para essas catástrofes de antigamente. Estamos no momento de recuperar o tempo perdido. De nos entendermos nas nossas diferenças, nas nossas línguas. Estamos num tempo ótimo para poder ler Pla em catalão. Na sua e na nossa língua.

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