O caso da serra de Sintra, ou como os incêndios não são todos iguais

No sábado, as chamas também desceram rápidas a serra de Sintra mas, desta vez, os elogios aos bombeiros foram unânimes. Os incêndios são diferentes quando acontecem em meios rurais ou zonas urbanas?
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Quando a estrada para a Peninha foi reaberta, por volta das duas da tarde de domingo, uma multidão de populares decidiu ir ver os estragos que o fogo tinha feito. A maioria chegou pela estrada da serra que liga os Capuchos à Estrada Nacional 247, que esteve fechada todo o dia. Vinham famílias inteiras, muitas delas com cães. E parecia mais um dia de domingo, não fosse a vista até ao Guincho ter-se enchido de carvão.

Vários veículos de comando de bombeiros estavam também ali. Naquele alto, o lugar onde começou o maior incêndio da década no Parque Natural Sintra-Cascais, na noite de sábado. Vê-se afinal toda a extensão de terreno queimado. É uma torre de vigia sem o ser, e ontem à tarde tornou-se um estranho lugar de convívio.

Pessoas iam ter com os comandantes dos bombeiros que ali estavam e agradeciam-lhes o serviço prestado. Daí por uma hora, o Presidente da República diria o mesmo. "É tranquilizador ver, para um fogo com aquela velocidade, com as condições muito desfavoráveis, como a resposta superou todas as expectativas. E isso deve ser sublinhado e elogiado hoje", disse Marcelo Rebelo de Sousa, na feira de Almoçageme, acompanhado pela segunda figura de Estado, o presidente da Assembleia da República.

Depois de Pedrógão e dos incêndios de 15 de outubro em 2017, depois de Monchique em agosto deste ano, esta é a primeira vez que um incêndio convoca aplausos no meio da tragédia. O que é que a serra de Sintra tem de diferente?

Em primeiro lugar a localização. O Parque Natural de Sintra-Cascais é uma mancha verde, boa parte dele classificado como Património da Humanidade, no meio da região mais densamente povoada do país: a Área Metropolitana de Lisboa. Se o fogo avançasse descontrolado, se engolisse casas e entrasse em povoações, o impacto tornar-se-ia catastrófico.

Horas antes do nascer do sol, no domingo, a população da Charneca do Guincho temeu que as chamas levassem a melhor sobre os bombeiros. Não é que eles fossem poucos - estavam 700 operacionais no terreno. "Lutaram que nem uns bravos", disse ao DN João Pedro Gonçalves, um homem que passado umas horas organizou uma recolha de comida e bebida para oferecer àquela gente toda.

Esta era uma das quatro aldeias que tiveram de ser evacuadas na noite de sábado para domingo. Tem 675 habitantes que vivem num núcleo concentrado de casas - ao contrário do que acontece em muitas aldeias do interior, onde sobram habitações isoladas. Quando a GNR veio avisar o povo de que vinha lá fogo, a maior parte da população preferiu ficar. Sabia que as chamas dificilmente chegariam ao centro da aldeia.

Uma das primeiras pessoas a dar pela notícia do fogo foi um miúdo de 17 anos chamado Gonçalo Gonçalves. Ainda antes de o povo ouvir as sirenes dos carros dos bombeiros, já ele tinha recebido uma notificação de que a sua serra estava arder pelas redes sociais. No campo, nem sempre há rede. E é menos provável que um jornal, uma rádio ou uma televisão dispare um alerta nacional assim que deflagra um incêndio numa zona isolada.

A diferença determinante, no entanto, poderá estar no que disse o presidente da Câmara Municipal de Sintra, Basílio Horta, às duas da manhã de domingo: "Os bombeiros que estão no combate às chamas têm uma enorme experiência e conhecem profundamente o terreno."

De facto, as corporações que acorreram à chamada da Proteção Civil vinham quase todas de zonas próximas da serra. Na tarde de domingo, na Peninha, os carros de comando estacionados no lugar onde o incêndio deflagrara vinham de quartéis como Cascais e Cacém, Montelavar e Algueirão-Mem Martins. Nenhuma destas terras fica a mais de uma dezena de quilómetros daqueles montes. O grosso dos bombeiros fez ações de vigilância e treino naqueles terrenos.

Em Monchique, na serra algarvia, chegaram a estar mais de mil operacionais no terreno, mas havia homens e mulheres que chegaram do Minho para combater as chamas. No centro do país, em 2017, e na maior parte dos casos, os bombeiros nem sequer chegaram. O país rural tem um sério problema de efetivos para combater as chamas nas zonas de maior densidade florestal. Uma boa parte disso deve-se à crise económica da última década, que fez os mais novos fugirem do país e deixarem quartéis inteiros em grande aperto.

Isso obriga a ir buscar gente de fora, que não conhece o terreno, nem o comportamento dos ventos, nem os vales por onde as chamas sobem primeiro. O fogo é matreiro e fazer-lhe frente é sempre um perigo. Quando há dúvidas sobre o seu comportamento, nenhum comando quer arriscar a vida dos seus bombeiros. E deixa arder.

O incêndio da serra de Sintra não é menos trágico do que os outros. Mas não deixa de levantar uma pergunta pertinente. Poderá um país cada vez mais litoral acorrer a quem vive longe do mar?

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