Já são pouco os cafés abertos que tiveram um lugar na história de Portugal. Locais que foram outrora centros privilegiados para a discussão política, social e cultural e que marcaram a agenda das cidades e de um país inteiro. Nos anos 1980 foram sendo substituídos por agências bancárias que, por sua vez, estão hoje a ser substituídas por mercearias e lojas de bugigangas com gentes do Oriente. Mas há resistentes, poucos. O Martinho da Arcada, que desde 1782 está debaixo das arcadas da Praça do Comércio, é um deles. Começou como Casa da Neve, um dos fornecedores de gelo para a Casa Real portuguesa, e passou a Martinho em 1845, quando foi comprado por Martinho Bartolomeu Rodrigues. É hoje o café mais antigo de Lisboa em atividade.. Nos últimos 30 anos é propriedade de António de Sousa, nascido quase há 75 anos em Paredes de Coura. Conta-nos na sua voz que mistura o sotaque minhoto com termos adocicados brasileiros, herança dos 14 anos que viveu no Rio de Janeiro: "Fugi ao regime e Salazar e fui para lá. Estive por lá a minha juventude toda e o Brasil deu-me muita coisa e ensinou-me a ser homem." Quase ao mesmo tempo que a conversa se inicia somos interrompidos, coincidência ou não, por uma turista brasileira que, guiada pelo Sr. Dionísio, um dos empregados mais experientes do Martinho, quer conhecer a mesa quase imaculada onde Fernando Pessoa se sentava. O canto onde ela está foi transformado em minimuseu do poeta - com fotos, livro e até um chapéu preto. E, mal a turista se senta na mesa-museu, o empregado ajeita o telemóvel com a experiência de poucos para a foto da praxe que levará, certamente, o nome do Martinho da Arcada pelas redes sociais afora. O canto, e todo o Martinho, é hoje local de visita de turistas, e não só, a quem é relembrado que terá sido ali que o poeta bebeu o seu último café, ou vinho, em vida, três dias antes de morrer..António de Sousa convida-nos a sentarmo-nos numa mesa perto da de Pessoa na sala do restaurante, local que sempre fervilhou de ideias, estratégias, conspirações e tertúlias, ora de caráter político ora cultural. E que está agora, por culpa da pandemia da covid-19, vazio a contrastar com os outros dois espaços do Martinho: a esplanada com alguns turistas e o café com as pessoas que entram amiúde para tomar ao balcão uma bica e um pastel de nata - mais lisboeta parece impossível..Emotivo e de peito cheio, António de Sousa fala do seu Martinho como uma casa antiga, mas nova. "Temos restaurado e recuperado a casa nos últimos 30 anos." Foi lá parar quando, já regressado do Brasil, investiu em negócios em mãos - como o café Caracol, também na Baixa. "A anterior proprietária, Albertina Mourão, tinha perdido a pastelaria Ferrari num incêndio e nessa altura o Martinho estava realmente numa situação difícil. Contudo, a Associação Amigos do Martinho da Arcada fez pressão ao governo de Cavaco Silva para restaurar o café. E, no dia que a obra começa, o café conheceu-me como proprietário", conta. Depois da remodelação, levada a cabo pelo arquiteto Hestnes Ferreira, o Martinho foi reinaugurado em fevereiro de 1990, com direto à presença do ministro das Obras Públicas da altura, Oliveira Martins, e muita comunicação social, e desde então o não deixou de trabalhar. Mas houve ameaças.. Por altura das obras de requalificação da Praça do Comércio, pairou no ar o possível fecho do café bicentenário. Mas a pronta resposta da sociedade e de alguns políticos, como o ex-presidente Mário Soares, que iniciou um ciclo de tertúlias em 2009 contra o fim do Martinho, como na altura noticiou o Diário de Notícias, deu frutos e o Martinho continuou aberto. Mais recentemente e para espanto dos proprietários, António de Sousa descobriu que o seu café Martinho estava à venda num sítio da internet. "Mandámos retirar o anúncio. Não derrubam assim tão facilmente o Martinho, temos muitos amigos.".António de Sousa partilha agora a gerência com um dos quatro filhos, o mais velho, "isto é muito trabalhoso, é preciso uma presença permanente aqui", mas não deixa de sublinhar a gratificação que tem em estar por ali, mesmo com as dores de cabeça, velhas e novas. Quem são os clientes - ou "amigos", como lhes gosta de chamar António? Vão desde as pessoas que vem aqui só tomar um café e um pastel de nata ou almoçar ou jantar. Do pedreiro ao ministro. "Em 30 anos nunca tive um problema ou uma falta de educação aqui dentro da casa. Ainda ontem esteve aqui o ex-ministro Mário Centeno que veio comprar uns pastéis de nata, mas não só. No passado recente tivemos cá desde Álvaro Cunhal, Mário Soares, Ruy de Carvalho ou Eduardo Lourenço. Tudo isso é muito gratificante, o Martinho é uma joia da cidade." Dos turistas que entram no espaço, muitos vêm do Brasil, não só pela ligação de António de Sousa ao país onde viveu e foi pai pela primeira vez, mas também pela obra além-fronteiras de Pessoa. "É um nome universal e a esta hora trabalha para o Martinho", diz a sorrir para, sem descanso, contar uma história: "Um dia convidei o embaixador do Brasil para almoçar comigo, e ao almoço fiz o convite ao Fernando Henrique Cardoso, eles eram amigos e o ex-presidente brasileiro veio cá uns tempos depois." Há quase 20 anos que existe a ideia de criar um espaço dedicado ao poeta, na galeria existente no piso sobre o café. A ideia foi protelada anos e anos, sendo bem recebida por outros e nem tanto por outros. No final "a tutela negou o projeto", explica triste o proprietário..Além de todo o papel para cidade, e de quase ficar esquecido no meio de tanta história, o Martinho da Arcada é um espaço onde (também) se come, e bem. "Aqui temos boa comida portuguesa. Bom peixe, boa carne e bom vinho. Quem vem ao Martinho da Arcada, sobretudo os turistas, sabe o que quer e vem para apreciar a qualidade". Atualmente, a equipa conta com cerca de 20 empregados, metade dos que existiam antes da pandemia. A sala onde nos sentamos tem capacidade máxima para 80 lugares, ou por aí... "Uma vez tive um jantar para cem médicos aqui sentados, recordo-me de que o ambiente estava muito quente por causa de um descontentamento que havia na altura. Nesse jantar o menos importante foi a comida, o que interessava era estar aqui no Martinho da Arcada", conta vaidoso António de Sousa..Destaquedestaque"E cá continuaremos, o mundo não acaba com a pandemia e o Martinho da Arcada também não".. A pandemia tem sido o mais recente desafio para toda a restauração e o antigo café de Fernando Pessoa não é exceção. "A sala do restaurante quase não trabalha. Temos todas as medidas de segurança, a distância, etc., mas as pessoas têm medo. O turista prefere ficar na esplanada, mas a clientela que vem gastar dinheiro não aparece, ponto final. Se calhar vamos trabalhar com coisas mais ligeiras, vamos ter de nos adaptar." Otimista por natureza, conta que nestes últimos tempos tem sentido apoio de muitas pessoas que querem o Martinho vivo e de boa saúde. "Há dias recebi um telefonema para minha casa do comendador Rui Nabeiro a dizer se eu precisasse de algo era só dizer. Não há dinheiro que pague isto." De conversa fácil e com inúmeras histórias que se passaram no local, pelo menos nos últimos 30 anos, recorda mais uma, quando um casal dos Açores trouxe o filho, ainda pequeno, a jantar no Martinho. O pequeno foi para o canto dedicado a Pessoa, conta António, e "declamou de cor um poema do poeta, sequer sem sotaque açoriano", conta António. Há qualquer coisa com o Martinho da Arcada, diz, "parece que antes de morrer os clientes passam o carinho pelo Martinho à geração seguinte. E cá continuaremos, o mundo não acaba com a pandemia e o Martinho da Arcada também não".