"O Brasil tem pessoas que vivem como escravos"
Escritor que venceu a última edição do Prémio Leya, Itamar Vieira Júnior, está no encontro literário Correntes d'Escritas e foi-lhe impossível fugir ao romance Torto Arado durante a sua intervenção na mesa cujo tema era inspirado num verso de Sophia de Mello Breyner sobre o "vazio" e dele falou bem como do silêncio da memória e da voz que calaram os seus personagens. Um tema que está bem presente no romance, tal como os conflitos sobre a posse da terra no sertão brasileiro, onde acontece o cenário do livro durante quatro décadas.
Refere que só num dos últimos anos registaram-se 1640 conflitos no que respeita à posse de terras e que morreram várias pessoas, sendo que conhecia seis delas. Por isso, garante, a literatura pode ser a expressão de uma questão e que, não sendo o primeiro a falar dos conflitos de terras, sabe que há muitas décadas de separação entre este romance e os que já se escreveram sobre o tema. "Vivemos num luto cívico como se fizéssemos um velório da democracia e Torto Arado é um manifesto contra esse vazio", diz perante seis centenas de pessoas que o escutam no Auditório Garrett, na Póvoa de Varzim. É a sua primeira aparição pública em Portugal, faz questão de o referir logo ao início, e o tema do vazio assenta bem ao seu romance porque, como desvendou em entrevista ao DN, uma das protagonistas está privada de voz, fruto de um episódio que marca o leitor ainda não chegou a meia dúzia de páginas. As restantes 250 continuam a seduzir o leitor como poucos romances o fazem hoje em dia.
O anúncio do Prémio Leya apanhou Junior com o pai no hospital. Soube da sua atribuição durante a última campanha eleitoral no Brasil, mas viu o livro impresso já com o presidente Bolsonaro eleito. Itamar Vieira Junior chega à literatura através do conto, mesmo que tenha publicado há dez anos um primeiro romance: "Nem quero falar dele, era mais um exercício da escrita do que uma obra acabada." Os seus dois livros de contos foram muito apreciados pela crítica. O último, Oração do Carrasco foi finalista do mais importante prémio literário brasileiro, o Jabuti.
Torto Arado continua a ter o mesmo significado ou a nova situação política obriga a fazer uma leitura diferente?
Acredito que tem um significado muito diferente de quando o comecei a escrever. Nem nos meus piores pesadelos imaginei o que aconteceu ao Brasil: eleger um candidato de extrema-direita. Hoje, vejo este livro com muito mais carinho pelo que pode representar além da literatura, ou seja, para as populações que estão retratadas, pois fala de direitos que são universais e elas não os têm.
Este cenário do interior que não seduz a atual literatura brasileira?
Não vejo muitos trabalhos na literatura sobre esse tema e a minha grande fonte de inspiração foram os autores do passado: Guimarães Rosa, Jorge Amado e Rachel de Queiroz, que se debruçaram sobre essa região.
A escolha do tema passa por uma questão pessoal?
Sim, o meu trabalho como geógrafo e antropólogo levou-me para o sertão e vi como estas pessoas sobre quem escrevo permanecem invisíveis. A sua realidade pouco mudou nos últimos séculos e a sociedade brasileira não se preocupa, nem os escritores, pois os romances contemporâneos que se debruçam sobre este tema são feitos em complemento da vida nas cidades, em que o autor escreve sobre si e em autoficção.
Faz um retrato social muito forte e só possível a um conhecedor desta realidade.
Eu nasci e cresci na cidade, mas nos últimos doze anos trabalho com as populações do campo e pude viver e conviver com estas histórias de vida. Que me inspiraram. O romance é uma ficção, mas bebeu nessas fontes e espero ter conseguido trazer esse universo de uma forma muito real até ao leitor.
Tanto que ganhou o Prémio Leya...
Fiquei muito surpreendido. Primeiro, porque sendo um prémio voltado para a literatura lusófona pensava que o júri não se interessaria por um falar e uma escrita tão diferente da de Portugal. Quando escrevi Torto Arado não me preocupei muito com o alcance do livro, daí ter registos e expressões coloquiais que tornam um produto mais fechado. No entanto, o prémio mostrou o contrário, que é uma linguagem que chegou a um júri de peso, que foi tocado, por isso creio que o romance vai poder também tocar qualquer leitor.
Receou que sugerissem a adaptação de certas palavras para o "nosso" português?
Esse nem era um problema caso a editora o solicitasse, mas fico contente que tenham preservado a forma como foi escrito. Acho que é compreensível para todos, além de existirem atualmente ferramentas que rapidamente explicam os termos desconhecidos.
O livro começa com uma epígrafe de Raduan Nassar, escritor de uma obra que no total tem menos páginas que Torto Arado...
Raduan é um autor com que tenho uma grande afinidade e que é uma referência para a nossa literatura. Embora ele não trate das questões sociais que estão presentes no meu livro, escreveu uma obra seminal que é fonte de inspiração para todos nós. O seu Lavoura Arcaica é um romance único e muito da sua estética foi inspiradora para o meu livro.
Que outras influências têm?
Os autores já citados antes, mas penso pouco nisso.
E entre os portugueses?
Esses acompanham-me também, pois tenho muito interesse sobre o que se escreve hoje em Portugal. Logo após o Nobel descobri José Saramago, que é para mim o maior escritor de língua portuguesa e com uma obra fenomenal, alegórica e dono de uma diferença estética a que ninguém ainda chegou muito perto até hoje. Entre os mais novos, gosto de Inês Pedrosa que escreveu sobre a Bahia, o José Luís Peixoto - que tem muita gente a pesquisar a sua obra nas universidades brasileiras - e Valter Hugo Mãe.
O seu livro vai ter leitores em Portugal?
Acho que sim, porque trata de temas universais de grande alcance e, como o Brasil vive um momento muito especial, creio que tende a despertar o interesse dos leitores. Este livro fala de uma população que é objeto de ações do atual governo muito questionáveis, porque Bolsonaro disse na campanha que não haveria mais um centímetro de terra para os indígenas, quilombolas e outros camponeses, ou seja, serão inevitavelmente atingidas por esta governação.
Disse quilombolas. O que significa?
São as populações que descendem dos africanos escravizados no Brasil e que, mesmo após a abolição da escravatura, não tiveram os direitos respetivos garantidos de modo a terem uma vida digna e que acabaram por ocupar terras ou trabalhar num regime de servidão que permanece até aos nossos dias. Alguns tiveram os direitos reconhecidos, outros ainda lutam, mas há muito trabalho pela frente para essas populações.
Neste romance, mesmo os que são livres têm uma vida de escravos. É a realidade?
É, e até hoje. O romance trata de um período de quase 40 anos, começa com as personagens principais meninas e vai até à sua maturidade. São pessoas que continuam a viver nesse regime de servidão, trabalhando para o proprietário para ter o direito a uma casa e uma pequena roça; nada que lhes permita emancipar-se. É uma situação de exploração que confirma que de nada se avançou nessa questão social, pois o Brasil tem pessoas que vivem como escravos até hoje. Tanto assim que todos os anos são resgatados várias pessoas desse regime pelas autoridades e muitas vezes.
Introduz também um caráter mágico em Torto Arado. Porquê?
Naquele lugar acontece uma confluência de religiões habituais nessa região, uma mistura de catolicismo rural com religiões de matrizes africanas, com espiritismo, e pai das meninas é um curandeiro e uma espécie de líder espiritual desse grupo, em certa medida também um líder político porque conduz as populações. Ele não tem consciência do direito de ser livre e só após a sua morte é que os descendentes se apercebem da sua verdadeira situação de pessoas exploradas.
As grandes protagonistas do livro são duas mulheres. Qual a razão?
Não foi bem uma opção, fui antes levado a isso. O que acontece nessas comunidades de trabalhadores rurais é que o homem vai trabalhar fora e são as mulheres que assumem esse protagonismo. É quase uma regra elas terem um papel político e de organização, como o que acontece na fazenda de Água Negra, o cenário de Torto Arado.
O romance está dividido em três partes muito diferentes. Porquê essa opção?
Existe no livro mais do que um narrador, sempre na primeira pessoa, porque queria dar a visão das protagonistas. Deste modo era capaz de tratar das questões da servidão e da escravidão de uma perspetiva mais ampla.
Este livro exigiu muita investigação ou já conhecia a realidade?
Nos últimos doze anos convivo com estas comunidades, porque fiz a minha pesquisa de doutoramento, leituras de antropologia e de ciências humanas com elas, até literatura fui incorporando ao meu trabalho. O romance surge desse universo quase que quotidiano para mim, em que estive a viver entre eles e a perceber a suas formas de vida. Essa matéria-prima foi fundamental para construir estas personagens e dar vazão a tudo o que vi.
Essas populações alguma vez serão leitores de Torto Arado?
O meu trabalho literário anterior já fala um pouco deles, um livro de contos, e levei-o até eles. Mas essa questão não é importante para mim, porque têm uma outra forma de viver e um mundo em que o livro impresso não é relevante. É possível que se possam rever nesta narrativa porque a intimidade com a terra é muito real e, se para nós é quase incompreensível, para eles é uma situação muito palpável.
Porque existe tanta melancolia?
Existe porque uma vida privada de tanta coisa como a deles desemboca nessa realidade. Uma parte do livro passa-se durante a ditadura militar, situação que para eles nem fez grande diferença porque não importava sequer quem era o presidente. Hoje, isso mudou um pouco porque já têm acesso à televisão e sabem as notícias.
Apesar de ser uma narrativa violenta, a violência aparece pouco no livro. Como se cria uma sensação de opressão constante?
Era um desafio criar essa atmosfera a partir das ameaças veladas, embora o Brasil seja um país onde a morte de camponeses é altíssima. No entanto, a grande violência é o facto de não lhes ser permitido que se emancipem, serem donos das suas terras ou decidir as suas vidas.
Torto Arado
Itamar Vieira Junior
Editora Leya, 279 páginas