O Brasil desmata a Amazónia desde antes de Jair Bolsonaro nascer, mas o principal culpado da tragédia que se vive hoje é o atual presidente, de acordo com a opinião da maioria dos especialistas. Se o Estado sempre disse "desmata", o Capitão Motosserra ou Bolsonero, as suas alcunhas mais recentes, gritou na campanha e continuou a gritar já no poder "esfola". O resultado está à vista: a devastação no pulmão da Terra gerou alertas da ONU e ataques das maiores economias do mundo, reunidas no G7. O Palácio do Planalto, como a floresta, também está a arder..Apesar de o governo argumentar "ter apenas oito meses de duração", para Cláudio Ângelo, coordenador de comunicação do Observatório do Clima e autor de A Espiral da Morte - Como a Humanidade Alterou a Máquina do Clima, de 2016, "o Brasil é um país onde os sinais valem mais do que os contratos, logo, a perceção que os desmatadores tiveram é que, com o discurso de Bolsonaro assumidamente contrário à floresta, ao meio ambiente e aos indígenas, estava na hora de aproveitar".."Nem toda a queimada é desmatamento, é certo, mas todo o desmatamento implica queimada, logo, Bolsonaro é o grande culpado do que está a acontecer agora, disso não há dúvida, ele e o ministro do Ambiente [Ricardo Salles], que tenta amordaçar os organismos de controlo ambiental", conclui o pesquisador em conversa com o DN..Bolsonaro exonerou no princípio do mês Ricardo Galvão, presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), após estudo do organismo ter apontado que os alertas de desmatamento na Amazónia brasileira haviam disparado 278% em julho em relação ao mesmo mês do ano passado..É o INPE, através do Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazónia Lega, que contabiliza as áreas desmatadas ano a ano (ver gráfico). Ainda não há dados sobre o ano corrente mas os primeiros indicadores apontam para um aumento de 50% de área desmatada, ou seja, superior a 11 mil quilómetros quadrados, mais quase quatro mil do que em 2018.."Isso, no mínimo, e se depois da saída de Ricardo Galvão não houver manipulação de dados pelo governo, o que eu acredito que não aconteça por toda a comunidade internacional estar atenta ao que está a passar", diz Ângelo..No gráfico anual de desmatamento nota-se que a partir de meados do primeiro mandato de Lula da Silva e até ao fim do primeiro governo de Dilma Rousseff, de 2005 a 2012, houve uma queda significativa. Alguns fatores explicam-na: em 2005, o assassínio no Pará da religiosa e ativista ambiental americana Dorothy Stang, a mando de um fazendeiro, alertou para o problema; no ano seguinte, a assinatura da chamada "moratória da soja", articulada pela Greenpeace, foi outro passo; em 2007, iniciativa de Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, de retirar crédito aos municípios na Amazónia onde se desmatasse, também contribuiu para a baixa..Por isso Dilma reagiu em nota: "[A situação incontrolável de agora] não existia quando o Brasil tinha governos progressistas e populares. O governo Lula e o meu governo reduziram o desmatamento da Amazónia em 82%. O nosso esforço foi reconhecido pela ONU, em 2014, como um exemplo a ser seguido pelo mundo." "As mudanças na Amazónia brasileira na década passada e sua contribuição para retardar o aquecimento global não têm precedentes", dizia o relatório das Nações Unidas..No entanto, lembra o especialista do Observatório do Clima, "já a partir de 2013 o Código Florestal mudou e, lá está, criou novamente uma sensação, são sempre as sensações, de empoderamento na corrida armamentista ao desmatamento e os números começaram a piorar outra vez".."A diferença é que todos os presidentes da redemocratização podiam até estar-se, intimamente, nas tintas para o desmatamento, mas nos seus discursos diziam o oposto; com Bolsonaro não, ele disse ao que vinha... de mentir em campanha não se pode acusá-lo", acrescenta..Outros fatores, como o aquecimento global ou até períodos de bonança económica, explicam variações. "Em 1994, com a adoção do Plano Real de Fernando Henrique Cardoso, que melhorou a economia, a motosserra correu solta na Amazónia, por exemplo, e em 2003 e 2004, só com o anúncio da construção de uma autoestrada entre Cuiabá e Santarém, o desmatamento explodiu outra vez"..Os dados de desmatamento durante o período da Ditadura Militar, de 1964 a 1985, não são conhecidos, mas, numa altura em que as questões climáticas não estavam tão na ordem do dia como hoje, a política era, abertamente, pelo desmatamento. "Basta dizer que foram os militares que compraram, em 1977, o sistema de satélite com que hoje o INPE mede o índice e usaram-no para conferir se os colonos a quem entregaram terras na Amazónia estavam a desmatar na quantidade combinada, ou seja, o inverso da lógica de hoje", afirma Ângelo..O Estado brasileiro, no seu todo, tem culpas no desmatamento? "Tem", diz o pesquisador, "porque se, por hipótese, o governo houvesse estado nas mãos, digamos, de um líder político escandinavo ou de ambientalistas convictos, desmatar-se-ia menos, claro, mas a culpa da situação atual deve ser atribuída às políticas de Bolsonaro"..A situação não é irreversível mas pode estar perto: "O Brasil desmatou, em média, 20% da floresta amazónica, um percentual próximo ao ponto sem retorno, já que para alguns cientistas a floresta não conseguirá regenerar-se se o desmatamento chegar a 40% da mata e outros estimam em 25%, defende, Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociência da Universidade de São Paulo, ouvido pelo portal UOL..Além do desmatamento, as queimadas e a falta de verbas e de fiscalização são apontadas pelos ambientalistas como causas da tragédia. O país registou, entre janeiro e 19 de agosto, um aumento de 83% das queimadas em relação ao mesmo período de 2018, com 72 843 focos de incêndios até ao momento, segundo o INPE. O fogo está a progredir mesmo em áreas de proteção ambiental: 68 incêndios foram registados em territórios indígenas e áreas de conservação nesta semana, a maioria deles na Amazónia..O estado de Mato Grosso, na região centro oeste do Brasil, lidera as queimadas com 13 682 focos de incêndio em 2019 - um aumento de 87% em relação ao mesmo período do ano passado -, ainda segundo o INPE. Mesmo entre julho e setembro, quando é proibido promover queimadas naquele estado, houve um aumento de 205% no número de incêndios..O desmatamento e as queimadas ganharam repercussão internacional, depois de São Paulo, cidade a mais de 2500 quilómetros da Amazónia, ver o céu escurecer na última segunda-feira como consequência do mau tempo e do fumo das queimadas vindas das regiões norte e central do país.A água da chuva daquele dia estava contaminada com fuligem de fogo, segundo reportagem da TV Globo..Fotos da Amazónia desmatada invadiram as redes sociais no Brasil e no mundo e fizeram aumentar a pressão sobre Bolsonaro. O presidente, entretanto, acusou as organizações não governamentais (ONG) de proteção ambiental de estarem envolvidas em incêndios ilegais como retaliação por receberem menos verbas desde o seu consulado. "Pode haver, não estou afirmando, uma ação criminosa dessas ONG para chamar a atenção precisamente contra mim, contra o governo do Brasil. Esta é a guerra que enfrentamos. Faremos todo o possível e o impossível para conter o fogo criminoso", disse Bolsonaro, sem apresentar provas para sustentar a acusação..Representantes dessas ONG repudiaram a afirmação, assim como a comunidade internacional, que se tem mobilizado contra o Brasil, nomeadamente através do presidente francês, Emmanuel Macron. No país e no mundo, entretanto, estão marcadas manifestações em, pelo menos, 40 cidades, sob a liderança da produtora Paula Lavigne, que classifica a política de Bolsonaro de "criminosa".