No último domingo (15), Jair Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada, em Brasília, e dirigiu-se à claque que o espera todas as manhãs no cercadinho. Jair Bolsonaro, como se sabe, é o presidente da República brasileira, embora cada vez mais pessoas, inclusive entre seus eleitores, se envergonhem de se referir a ele pelo cargo que ocupa. O Palácio da Alvorada, em Brasília, é a residência oficial da Presidência - que outros presidentes classificaram de mal-assombrada, mas cujos fantasmas devem ter-se mudado assim que Bolsonaro foi morar lá. E o tal cercadinho é uma área reservada em frente ao palácio, onde, todas as manhãs, se concentram centenas de pessoas, vindas não se sabe de onde, que estão ali à espera de Bolsonaro quando ele sai para trabalhar. Elas querem vê-lo de perto, tocá-lo, apalpá-lo, dirigir-lhe a palavra, apertar-lhe a mão e tirar selfies com ele. Bolsonaro se submete satisfeito e o ritual se repete diariamente..Na verdade, aquele cercadinho é o púlpito, o verdadeiro palco de onde Jair Bolsonaro exerce a presidência do Brasil. É dali que, sem prejuízo do que comete no resto do dia, ele efetivamente se dirige à nação - sua performance não apenas é registada pelos jornalistas que tentam entrevistá-lo como gravada por uma bateria de funcionários e disseminada em infinitas postagens pelas redes sociais. E Bolsonaro não perde tempo. É do cercadinho que ele ataca a liberdade de imprensa, joga a população contra o legislativo e o judiciário, põe em dúvida a lisura das eleições brasileiras (inclusive a que o elegeu) e incita a malta a pedir "intervenção militar já", o que, na prática, seria a volta da ditadura que nos infelicitou de 1964 a 1985..É um cenário perfeito para Bolsonaro. Já bem cedo, as pessoas vão chegando. Desembarcam, aos grupos, de autocarros fretados, e se amontoam junto às grades do cercadinho. Pelo aspeto de cada um, pelo acento predominantemente rural e pela ingenuidade com que se esbaldam a cada tirada de Bolsonaro, nenhum deles deve ser ouvinte de Mahler ou leitor de Kierkegaard. O sol de Brasília é inclemente e não há uma única árvore para lhes fazer sombra na enorme praça - porque Lucio Costa, que planejou a cidade, e Oscar Niemeyer, que projetou os prédios, preferiam os grandes espaços vazios e desumanos. Mas ninguém se queixa. Estão ali para se deliciar com tudo que o "Mito" - como se referem a Bolsonaro - disser. E o "Mito" não os dececiona..Num dia normal, Bolsonaro pode insinuar que as repórteres são prostitutas, que vendem sexo em troca de informações, e "acusa" um jornalista ali presente de "parecer terrivelmente homossexual". A cada uma dessas declarações imortais, a plateia se dobra de rir, com gargalhadas equivalentes ao grosseiro "kkkkkkkkkkkkkkkk" que as pessoas usam na internet. Bolsonaro tem um ódio todo especial pelos jornalistas da Folha de S. Paulo e da TV Globo, a quem chama de "canalhas! Canalhas! Canalhas!". Se um deles se atreve a fazer uma pergunta, é silenciado a vaias pela claque e, se Bolsonaro responde, a claque só falta rolar pelo chão de tanto rir..Bolsonaro agride de tal maneira os profissionais designados para cobrir seu show matinal que será inevitável que, um dia, um repórter perca a paciência e o mande à merda - e, se escapar ao linchamento pela turba ali presente, nada lhe acontecerá, porque Bolsonaro não se dá ao respeito e não tem moral para processar ninguém. Até agora, no entanto, o comportamento dos colegas tem sido exemplar - aguentam com a maior dignidade os arrotos verbais de Bolsonaro e os cacarejos da claque..Para Bolsonaro, a culpa pelo ridículo crescimento anual do Brasil, pela instabilidade económica e pela ausência de investimentos externos cabe à imprensa - e não os seus destemperos, que dão aos estrangeiros a ideia de que o Brasil está sendo governado por loucos. Outra de suas facetas a reforçar essa impressão é o facto de ele se desdizer com a maior facilidade, negando cinicamente algo que disse na véspera e que toda a imprensa registou. Um presidente que desmente a si mesmo com tal frequência não deve ser capaz de respeitar acordos - eis o que devem pensar lá fora, e não estarão errados. Junte a isso a simpatia explícita de Bolsonaro pelos devastadores da Amazónia, pelos policiais criminosos (as "milícias"), pelos fabricantes de armas e até mesmo por assassinos condenados - não por acaso, amigos íntimos de seus filhos -, e fica claro por que Bolsonaro não pode gostar da imprensa. É ela que denuncia tudo isto..Apenas pelas barbaridades que já praticou no cercadinho desde que tomou posse, agredindo a Constituição, as instituições e os direitos humanos, Bolsonaro já deveria ter sido chamado à responsabilidade dezenas de vezes. Isso inevitavelmente ocorrerá e Bolsonaro, que não tem apoio no Congresso, não escapará de um impeachment. As bolsas de apostas dão-lhe apenas mais seis meses ou um ano no cargo - e há quem ache isso muito..Nuno Santos.Mas Bolsonaro pode se complicar até antes. No domingo passado, ele apertou mãos, deixou-se apalpar e tirou selfies com os telemóveis de dezenas de pessoas no cercadinho. Isto poucas horas depois de as autoridades sanitárias de seu próprio governo terem exortado a população a evitar contactos pessoais para se protegerem da pandemia..O problema não é Bolsonaro ser contaminado - o que daria motivo a um feriado nacional no Brasil. Mas, ao contrário, ele ter empestado seus inocentes apoiadores. Se morrer algum, os sobreviventes saberão finalmente como chamá-lo..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).