O bem e o mal na Ucrânia
Como a maioria dos portugueses, mal me tinha interessado pelo presidente da Ucrânia antes da madrugada de 24 de fevereiro. Foi nas primeiras horas dessa quinta-feira, quando no Twitter surgiam as primeiras imagens daquilo que era descrito como colunas russas a entrar no país, que um amigo me chamou a atenção para o discurso que Volodymyr Zelensky fizera pouco antes.
Vi-o no Youtube com tradução automática, e fiquei varada: é das melhores peças de retórica a que assisti na vida. Tudo está certo: as palavras, a cadência - Zelensky fala sempre com o ritmo de quem declama um poema, mas sem dramatismo exagerado, tão-pouco afetação - o tom, a energia, o desespero, o estoicismo. Foi nesse discurso que me encontrei pela primeira vez com a gravidade do que estava a acontecer, e foi nesse discurso que percebi que ali, naquele homem, está um fenómeno de comunicação.
YouTubeyoutubehttps://youtu.be/osspfYzqTkM
Procurei, nessa primeira semana da guerra, mais informação sobre ele e fiquei confundida: quase tudo no seu percurso apontava para alguém sem estatura, do facto de ter criado um partido com o nome, bastante populista (Servo do Povo), da série de TV em que era protagonista ao facto de, segundo li, se ter apresentado como "candidato fora do sistema" (lembra alguém?) e recusado debater com os opositores na campanha, tendo levado para o governo os que trabalhavam com ele numa produtora de audiovisual - tudo gente sem qualquer experiência política. E no entanto, à medida que os dias passavam, continuava a demonstrar a sua capacidade para estar à altura do momento.
Passou quase um mês e ainda não sei (não perceber ucraniano é um sério handicap) muito mais de Zelensky - nomeadamente, que defende nas áreas fundamentais da governação, qual o programa com que se candidatou e o que fez desde que tomou posse, há dois anos. Não sei se me identifico com as suas ideias, com a sua prática fora do contexto da guerra - e mesmo nesse.
Sei que toda a retórica nacionalista, inevitável em guerra, e até o slogan "glória à Ucrânia" me faz pele de galinha. Que vi com apreensão um vídeo recente com a voz dele em modo Darth Vader que acaba com as palavras Great Ukraine, como me incomodou o apelo, logo no início da invasão, a que combatentes estrangeiros se juntem à luta contra o invasor - parece uma ideia romântica, a ecoar a coluna Durruti e Por quem os sinos dobram, mas temos demasiado presentes os horrores do Daesh para não temer o resultado (e o episódio Mário Machado demonstra bem os riscos).
YouTubeyoutubehttps://youtu.be/eeDzEapSn0Y
Sei que não me agrada, mesmo tendo noção de que um país sob lei marcial não é uma democracia plena, a suspensão de 11 partidos por ele decretada este fim de semana com o fundamento de serem "pró-russos", nem a unificação dos canais de TV "numa única plataforma com a justificação de que é necessária uma política de informação unificada".
Em suma: não sei se gosto de Zelensky. O ponto é que não tenho de gostar. Não tenho de achar que votaria nele, nem considerá-lo santo, nem concordar com tudo o que faz, nem sequer achar boa ideia que um país governado por ele entre na UE (repito: não tenho informação que me permita ajuizar), para saber que neste momento o lado dele é o certo, aquele pelo qual torço e me angustio.
Por motivos simples, simplórios, até. É o presidente de um país invadido por uma superpotência governada por um autocrata formado nos serviços secretos soviéticos que arranjou um esquema para se manter indefinidamente no poder; que há anos apoia e financia tudo o que é extrema-direita na Europa; que interfere nas eleições de outros países; que tem a sorte de os opositores tenderem a morrer de mortes macacas; que manda prender pessoas por dizerem a palavra guerra. Um autocrata que justifica a invasão asseverando que o país invadido é "uma invenção de Lenine" e que a concessão de autonomia às repúblicas que fizeram parte da URSS foi um erro estúpido (leia-se: nunca lhes deveria ter sido dada a hipótese de se autodeterminarem) e, no mesmo discurso, lembra que a Rússia tem armas nucleares - o maior arsenal do mundo - e por esse motivo é invencível, e diz temer pela respetiva segurança. Um autocrata que ameaça o mundo com o holocausto nuclear caso se atreva a ir em socorro da Ucrânia e põe os seus representantes na ONU a negar que esteja a ocorrer uma invasão.
Basta isto, que é indesmentível, para custar a perceber que haja quem, ainda por cima reclamando-se pela paz e pela democracia, não veja em Putin e na ação da Rússia uma encarnação do mal e um perigo universal. Quem, acusando os outros de maniqueísmo e de não querer pensar ou "contextualizar", passe a vida a apontar razões para questionar o governo ucraniano, a inocência da Ucrânia e "as culpas" da UE, EUA e NATO, sem jamais perder um parágrafo a analisar a postura da Rússia.
Perante aquilo que é, muito claramente, uma guerra de conquista em pleno século XXI, a reativação de um império que procura anexar um país soberano como colónia, quem fala em "maniqueísmo" para alegadamente "não ter de escolher um lado" são os que maniqueisticamente, sonsamente, o escolheram ainda antes da invasão.
Os que nem perante ela mudam de discurso, sequer hesitam ou refletem, porque na sua mundivisão o bem e o mal não dependem de ações, de prática, mas estão predestinados: o mal está sempre num sítio e portanto o bem sempre no outro. Só é preciso arranjar explicações e motivações para justificar as maiores barbaridades, defender as maiores estultícias, e uma cara de pau a condizer.
A cara de pau com que acusam de "não querer a paz" e de apaniguados de mários machados os que reconhecem aos ucranianos o direito de se defenderem e de recusarem render-se (em tempos chamava-se a isto coragem, creio; parece que afinal "liberdade ou morte" é admirável conforme), enquanto se reclamam contra maniqueísmos. Ao menos fosse iliteracia; tinha remédio. Já a deficiência ética não creio.