O beijo do Dalai Lama e os pais que beijam os filhos na boca

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O Dalai Lama deu recentemente um beijo na boca a uma criança, pedindo-lhe em seguida para que esta lhe chupasse a língua. Este comportamento gerou uma enorme polémica, seguindo-se depois um pedido de desculpas público pelo sucedido.

Ainda bem que as pessoas se sentiram chocadas e incrédulas, o que significa que conseguem identificar comportamentos desadequados entre um adulto e uma criança. E beijar na boca é um deles.

Porém, e não obstante a maior parte das pessoas concordar que os adultos não devem beijar as crianças na boca, entendendo esse comportamento como sendo de natureza sexualizada, a verdade é que muitas destas consideram perfeitamente aceitável que os pais o façam aos seus filhos. Defendem que, pelo facto de serem pais e filhos, este comportamento torna-se legítimo e, por isso mesmo, é muitas vezes observado em público, sem qualquer pudor ou tentativa de ocultação.

Ora, vamos então por partes.

Em primeiro lugar, é muito importante que as crianças aprendam desde cedo a conhecer as partes privadas do seu corpo (aquelas que habitualmente são protegidas pela roupa interior - órgãos genitais, mamas e rabo) e a identificar as diversas situações de risco ou perigo que podem surgir - nomeadamente, o "Perigo VER", "Perigo FALAR" e "Perigo TOCAR". Significa isto que, se alguém as abordar no sentido de tentar ver ou mostrar, falar ou tocar em partes privadas (suas ou de terceiros), devem dizer "não" e, sobretudo, contar a uma pessoa de confiança (salvaguardando, naturalmente, os contextos de saúde e higiene). E quando informamos as crianças sobre estes perigos, é fundamental alertá-las também para o facto de serem situações que podem acontecer com pessoas conhecidas ou desconhecidas - sabemos que a maior parte das situações sexualmente abusivas ocorrem no contexto de uma relação de confiança e familiaridade prévia.

Pretendemos, assim, aumentar os conhecimentos e promover as competências das crianças para que saibam distinguir situações adequadas e desadequadas e o que fazer perante estas últimas. Porque as crianças são seres plenos de direitos que temos o dever de proteger, ensinamo-las a regra de ouro: "O meu corpo é o meu maior tesouro".

Neste contexto, o que dizer dos beijos na boca entre pais e filhos? Será a boca uma parte privada do corpo? E, se sim, então como explicar a uma criança que os pais a podem beijar como forma de manifestação de afeto, mas as outras pessoas não? E se, um dia, esse mesmo pai ou mãe quiser tocar os órgãos genitais da criança, alegando ser também uma forma de transmitir o seu amor? Conseguirá a criança distinguir estas duas situações e pedir ajuda?

Apesar de, em rigor, não podermos afirmar que beijar os filhos na boca configure uma possível situação de abuso sexual, a verdade é que este comportamento acaba por ser um pouco ambíguo, correndo o risco de dificultar a capacidade de a criança distinguir os diversos tipos de comportamentos, envolvendo as várias partes do seu corpo. Ou seja, apesar de sabermos que a maior parte dos pais que beijam os filhos na boca não o fazerem como uma forma de estimulação sexual, devem repensar este comportamento e encontrar outras formas de manifestar o seu afeto positivo - formas menos ambíguas e que ajudem as crianças, mesmo as mais novas, a distinguirem situações normativas de outras que podem envolver já algum risco ou perigo.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

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