O assalto em Tancos "é muito grave, é mesmo muito grave"

Ângelo Correia parte para esta entrevista sem querer falar muito do PSD, porque considera que a ação do partido tem primado "pelo silêncio e pela ausência". Considera que em Portugal se legisla muito e se mede pouco a eficácia das leis. Presidente da Câmara de Comércio e Indústria Árabe-Portuguesa, Ângelo Correia fala igualmente da crise entre a Arábia Saudita e o Qatar, considerando que no Médio Oriente se vive uma crise grave.
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Em quinze dias passámos do país das boas notícias - crescimento económico, saída do procedimento por défice excessivo, queda do desemprego, já tínhamos ganho o Campeonato da Europa de Futebol e depois ganhámos a Eurovisão -, para um país em ressaca; já nem vale a pena falar do futebol porque há coisas mais graves, houve o grande incêndio de Pedrógão com, pelo menos, 64 mortos e agora o assalto a um paiol de Tancos. Qual é o país real?

Os dois. Chama-se a dialética do real, que tem simultaneamente aspetos positivos e outros negativos que contrariam a nossa obrigação em superar este momento e encontrar uma nova síntese, para utilizar a terminologia hegeliana habitual.

Como é que o país - já não falo dos agentes políticos que têm obrigações especiais de fazer essa síntese de que fala -, deve viver com isto, habituar-se a ter sempre presente que não pode ser demasiado otimista nem demasiado pessimista quando as coisas acontecem?

A ciclotimia é uma doença e, como tal, deve ser evitada. Agora, os processos têm sempre algum conteúdo de avanço e de recuo. No caso português, em relação aos bons momentos que felizmente temos atravessado, devemos perceber qual é o limite dos mesmos, já que as projeções apontam para os anos seguintes uma diminuição do ritmo de crescimento. O que significa que somos obrigados a meditar e a considerar que aquilo que considerávamos e julgávamos muito positivo afinal tem limites. Do lado negativo das coisas, tentar sobretudo perceber e encontrar as razões daquilo que sucedeu e como sucedeu. Ou seja, tentar também superar o que é hoje um aspeto essencial da vida política portuguesa, a ausência de avaliações.

Um dos traços determinantes da vida política nacional tem duas características muito próprias e, em parte, desnecessárias: primeiro, a política é medida pelo efeito das leis que se publicam, dos regulamentos que se editam, dos textos escritos que se expressam, mas não pelos efeitos concretos e os resultados da ação que daí deviam decorrer. Segundo, a maior parte do exercício da política nunca tem um exercício de avaliação daquilo que se fez. Ou seja, se são fixados objetivos é preciso saber se no fim de um determinado período foram cumpridos e de que maneira. Em Portugal vivemos sempre numa situação de algum, digamos, surfar sobre uma realidade em que nunca mergulhamos completamente, porque nunca queremos saber. Voamos, sobrevoamos, não diria sobre um ninho de cucos, porque isso era uma imagem extremamente interessante e até positiva numa altura em que zoologicamente todos achamos que isso é interessante, mas sim sobre a realidade. Nós não penetramos suficientemente na nossa realidade, o poder político não quer, não deseja, mas o país também não exige suficientemente.

É isso que se está a passar neste caso que tem dominado a atualidade noticiosa?

Em parte é, em parte é. Porque há muito tempo que sobre esta questão das florestas deveríamos ter percebido que isto é uma consequência. A floresta e o abandono em que está, uma parte dela pelo menos, é uma consequência do abandono a que o país votou o seu território. Ou seja, nós não abandonámos a floresta, abandonámos o país interior. Nós pensámos, de repente, que a riqueza era o litoral...

Abandonámos tudo o que estava no interior e também a floresta.

... a pobreza era o interior e, como tal, abandonámos duas coisas do interior: as populações e os sistemas produtivos. As populações foram convidadas a emigrar ou a deslocar-se para o litoral; os sistemas produtivos, em consequência da falta de pessoas, deixaram de ter meios humanos suficientes para os manter ou, até, estímulos para os inovar, para os aumentar e acrescentar e, através de novas estratégias e novas versões genéticas, tentar encontrar novas formas do sistema produtivo. Logo, uma boa parte do país está votada à inércia, ao desinteresse e, como tal, multiplicam-se os efeitos do que está sem qualquer efeito de variação e de mudança deliberada. Há muito tempo que o sistema político deliberou ausentar-se do problema das florestas. Deixa estar, deixa andar, é um sistema inerte e, assim, quando acontecem fenómenos como este ficamos todos muito surpreendidos por não ser acompanhado há muito tempo algo que era vital acompanhar.

E queremos legislar agora um pouco à pressa, antes de ir de férias, deixando um sinal de que se está a fazer alguma coisa.

Mais uma vez, acho que tem razão no que está a dizer, no sentido de que o que nós queremos é legislar. O problema central do país não é legislar, é verificar se aquilo que se legisla, primeiro, corresponde aos objetivos que devemos ter; segundo, se são atribuídos os meios humanos, financeiros, técnicos e organizativos para concretizar aquilo que é escrito; terceiro, proceder ao acompanhamento permanente daquilo; quarto, verificar no final qual o resultado daquilo que se pretendeu. Ora bem, nós ficamos pela primeira fase: legislar. Quando se legisla pensa-se resolver os problemas, quando não é assim, damos início a um processo longo em que as fases mais importantes não são tanto o legislar, mas o realizar e operacionalizar no terreno. E essas áreas nós escamoteámos, e daí o problema do próprio sentido da responsabilidade. Eu hoje em dia vejo, e bem, que se contemple e se solicite um exercício de responsabilidade política e diretiva a vários escalões e a vários patamares. Isso é importante, mas só é importante e só é cabal e o desempenho só é, digamos, suficiente, se percebermos que o exercício da responsabilidade tem de ser paralelo ao exercício do desempenho, isto é, é em função do desempenho que se pode avaliar ou não a responsabilidade. Ora, a maior parte dos desempenhos não são avaliados. O que é que nós fazemos com os desempenhos em Portugal? Fazemos sobretudo uma coisa: verificar se gastámos o dinheiro, se mantivemos o mesmo quadro de pessoas, mas não o resultado prático daquilo que pretendíamos fazer, se é que algumas vezes, em alguns casos, sabemos o que é que estamos a querer fazer.

Neste caso concreto, a propósito do incêndio de Pedrógão Grande que, e tendo em conta aquilo que disse sobre a necessidade de avaliação das medidas e não só da sua implementação, o caminho que tem sido seguido é o melhor, no sentido em que está confiante em que no devido tempo vamos ter uma noção cabal e exata sobre o que se passou?

A espuma do tempo presente denota que vamos ter grandes conclusões. Toda a gente fala, toda a gente protesta uns contra os outros, todos se acusam uns aos outros, dá a impressão que estamos naquele espírito habitual de que os portugueses gostam imenso que é o de toda a gente a acusar-se. Eu não sei se esse espírito é o melhor para chegar a conclusões finais, mas no meu ponto de vista era urgente tê-las, mas tê-las num sistema de discrição, de eficácia, mas que sobretudo aponte uma forma para o futuro de como avaliar o desempenho.

Mas discrição e eficácia é aquilo que até agora, pelo menos, não tem acontecido...

Pelo contrário, estamos muito longe disso.

Temos os institutos tutelados pelo MAI que têm versões contraditórias dentro do mesmo ministério e que se acusam uns aos outros.

E continuam a bradar no espaço público uns contra os outros. Ou seja, aqui já há claramente uma manifestação de alguma ausência de poder em relação a alguns institutos do próprio Estado, mas o que me preocupa e o que eu gostaria, se fosse possível, é que encontrássemos uma fórmula mais rigorosa, mais honesta e mais esclarecedora para a opinião pública. A opinião pública não está tão interessada em saber se o senhor A ou B falhou, em que é que falhou ou porque é que falhou, está interessada no final de tudo isto em saber se todo o dinheiro que nós pagamos para os impostos e que é usado nas despesas públicas tem eficácia. É esta a questão essencial, o poder político é para isso.

Mas acha que quando acontece uma tragédia desta dimensão não é obrigatório que alguém assuma responsabilidades políticas? E isso tem de passar obrigatoriamente por demissões, ou não?

É obrigatório. É mais do que obrigatório, é inevitável. E só vamos esclarecer esse problema no dia em que soubermos as conclusões. Agora, vamos estabelecer dois patamares de conclusões que inevitavelmente decorrem deste problema. Primeiro, a conclusão dos comportamentos que no plano operacional e no plano da direção não foram conformes com aquilo que se esperava da ação dos institutos do Estado. Há aí um problema claramente objetivo de responsabilidade. A segunda questão que eu gostaria de pautar era que este problema nos provocasse e nos solicitasse uma averiguação final e geral das causas disto tudo que nos permitisse mudar a realidade em que estamos. Mais do que tentar punir A, B ou C, responsabilizar A, B, ou C, há outra coisa que para mim é mais importante: encontrar uma fórmula ou uma forma de organizarmos novamente a questão da floresta de um modo distinto, ou seja, acho que a intenção ou o desejo que devia ser expresso nesta ação é o de encontrar caminhos para o futuro diferentes daqueles que trilhamos até hoje.

O principal partido da oposição sugeriu a criação de uma comissão independente de peritos, essa sugestão foi aliás aceite pela maioria. Esteve bem o PSD ao dar este passo?

Eu acho que a comissão de peritos é boa e é importante, mas nunca na dependência do Parlamento. O Parlamento não é para isto. Nós estamos a analisar uma situação de como é que se comportaram as entidades públicas, as entidades operacionais do Estado, de um modo geral e, como tal, o que nós estamos a avaliar é o próprio Estado. Ora para avaliar o próprio Estado nas suas funções deve ser uma comissão independente, estou muito de acordo com essa ideia, mas não pode estar dependente do Parlamento. O Parlamento emite uma opinião final política sobre uma ação técnica e operacional que está a ser feita e que deve depender do próprio. É o Governo que tem de se avaliar a si próprio, que tem de determinar e ampliar a ação de avaliação a si próprio, de um modo correto através de entidades independentes. Acho bem, sobretudo com esta visão de encontrar alternativas ao que está e como está, para se fazer de um modo diferente. Agora, o Parlamento deve estar isento disto, o Parlamento pronuncia-se politicamente.

Às vezes, em Portugal, não há uma separação nítida entre o que é técnico e o que é político. Este é um exemplo claro: aqui, o que está em causa é uma ação técnica. Para quê? Para que no final da ação técnica se assuma uma análise política; essa sim é que é do parlamento, mas só do Parlamento.
[...]
A propósito de outro acontecimento que marcou a agenda noticiosa. Preocupa-o estas armas todas que roubaram do paiol de Tancos?

É muito grave o que aconteceu, muito grave. É mesmo muito grave e não é possível esconder a questão, porque não se trata de roubar pistolas, pistolas-metralhadoras ou espingardas, como já se verificou noutras circunstâncias e não se encontraram. Aliás, encontraram-se noutro acontecimento. Trata-se de granadas, sobretudo.

E lança-granadas, na sexta-feira o DN deu essa notícia.

É muito grave, é muito grave. Ou seja, qual é o uso que vai ser feito disso por quem roubou? Se estamos na presença de algum gangue internacional ou não, com efeitos de, com a intenção de vender parte desse equipamento roubado a algumas redes e, isso é muito negativo e põe em causa o país. Eu acho que é das questões talvez mais graves que têm acontecido e que coloca, mais uma vez, uma questão: o Estado Português tem muitas funções, não pode às vezes fazer todas, mas as que tiver que fazer tem de fazer bem feitas. Esta segurança, por exemplo, das instalações militares é uma obrigação do estado, sob pena de nos causar perturbações e problemas de imagem. No cenário internacional, este roubo é uma das coisas que mais vai contribuir negativamente para uma má imagem de Portugal.

Era caso para pedirmos ajuda até a serviços secretos estrangeiros para nos virem ajudar a resolver este problema, tal a gravidade?

Com toda a discrição, mas é óbvio. É óbvio. Aliás, estou convencido que isso está a ser feito, porque nisto, estamos a falar de um outro tipo de gangues. E nestes gangues há geralmente correlações entre terrorismo-equipamentos, droga-equipamentos, droga-terrorismo ou seja, as várias criminalidades às vezes cruzam-se entre si no mesmo gangue. Nós temos uma polícia judiciária nesta área, a polícia judiciária civil, a PJ, que tem uma direção para esta área com muita competência, com muito trabalho praticado e com enorme capacidade. Eu espero que esta investigação possa ser formalmente estendida a outras entidades nacionais, assim como para o exterior se for preciso. Porque o problema não é português, ninguém pode pensar isso. Que o façam, mas que encontrem rapidamente uma base de perceção de onde é que aquilo está.

"O PSD não existe. Assim, nem pode ser criticado"

Sobre a questão política, no início da semana Pedro Passos Coelho utilizou uma informação que se veio a revelar falsa sobre suicídios na zona de Pedrógão Grande. Acha que esta gafe, vou-lhe chamar assim, o fragilizou enquanto líder da oposição neste debate político?

Eu acho que o que tem fragilizado a liderança do PSD é não representar a sua base eleitoral de apoio, ou seja, um partido político serve fundamentalmente para duas coisas: a primeira é para representar uma fração da consciência do país, uma fração dos cidadãos, para ter um poder de representação, e o poder de representação significa um local próprio onde se exerce a representação, que é no Parlamento, e aí manifestar o que o país que vota num partido expressa, quer e deseja. Ora o PSD prima pelo silêncio e não pela palavra, como tal falha no exercício de representação.

A segunda questão que um partido político deve ter é: para além daquilo que representa dos cidadãos tentar também explicar aos cidadãos, apontar aos cidadãos caminhos, para tentar compatibilizar e harmonizar aquilo que é o sentido de representação do que os cidadãos enviam como mensagem a um partido e aquilo que o partido, e a sua direção, envia ao país ou reenvia ao país fruto da análise que faz das circunstâncias, da conjuntura, dos objetivos gerais e da própria base eleitoral que representa. O que significa que o PSD também devia, em paralelo, tentar dirigir alguma ação política. Aí, a palavra é inércia. Como tal, as duas ações fundamentais a que o PSD se tem votado, ou se deveria votar, primam pelo silêncio e pela ausência. Assim, nem podem ser criticados, nós só podemos criticar aquilo que existe e como não existe nós nem sequer podemos criticar.

Neste caso específico, acha que se passa mais ou menos o mesmo, são também o silêncio e a inércia que marcam a posição do PSD?

É a mesma coisa. A constância fundamental do PSD tem sido o silêncio e, como tal, espero que no final da análise feita por uma equipa de peritos o PSD tenha uma posição articulada e que a expresse com clareza. O grande problema para o PSD hoje em dia é o vazio que ele está a criar à sua volta, porque um partido político não pode deixar abandonado quem nele vota, isto é, não pode negar a representação política.

Já se fala na possibilidade de nascer um partido liberal que vá buscar - estou-lhes eu a chamar assim - esses órfãos do PSD que não se sentem representados. Acha possível?

Eu não acho possível a existência de novos partidos políticos. Pequenos grupos políticos talvez, grupos de estudo sim, centros culturais, centros de discussão política acho que sim, podem e devem proliferar. A criação de novos partidos não é necessária e em Portugal não são fáceis de fazer, até porque requerem meios e Portugal é um país parco de meios, portanto acho que isso não vai acontecer. Admira-me que coloque o problema dos liberais que se sentem mal, pensei que eram alguns sociais-democratas...

Certo, mas falo dos liberais porque há notícias da tentativa de formação de um partido liberal onde está, por exemplo, Nuno Garoupa...

Eu acho que o Dr. Nuno Garoupa é um homem muito inteligente, que passa bastante tempo em Portugal, além das aulas que dá nos Estados Unidos, seguramente quando refletir melhor e mais sobre essa realidade perceberá que não há espaço suficiente para a criação de novos partidos em Portugal. O que há a fazer é uma coisa mais simples: dinamizar os presentes. O grande problema do PSD não é criar rivais ao seu lado, mas é dinamizar-se a si próprio.

Ainda uma pergunta relacionada com Pedrógão Grande, ainda que voltemos a seguir à parte mais política: qual é a sua opinião sobre o papel que o Presidente da República teve nesta tragédia, pensa que ele ficou fragilizado com as primeiras declarações que fez em que afirmou que tudo o que podia ser feito tinha sido efetivamente feito?

Todos nós percebemos que o Professor Marcelo Rebelo de Sousa é, acima de tudo, um grande dinamizador de relações humanas, de sentimentos de afeto, de sentimentos de solidariedade e de unidade que decorrem do afeto. Isso, ele faz magnificamente. Se às vezes, pelo facto de praticar ações excelentes, com um objetivo excelente, o método utilizado significa dizer ou utilizar algumas expressões ligeiramente excessivas, o tempo encarrega-se de mostrar que são excessivas, mas nunca nos faz esquecer a utilidade da intenção inicial, que é a de agradar aos portugueses.

E isso, ele tem conseguido fazer?

Tem, tem.

Um dia foi-lhe colocado o título de padrinho político de Pedro Passos Coelho. Como é que olha agora - com esta distância em que há um certo afastamento em relação à liderança de Pedro Passos Coelho - para o tempo em que lhe chamavam padrinho político de Pedro Passos Coelho?

Eu nunca me autointitulei padrinho.

Não. Chamavam-lhe isso.

Eu sei que me chamaram, mas erradamente. Eu apenas fui um companheiro. Ajudei. A minha intervenção no PSD sempre foi - desde o tempo do Dr. Sá Carneiro e com outros líderes, com o Dr. Carlos Mota Pinto, com Durão Barroso, com Cavaco Silva, com Luís Filipe Menezes -, tentar ajudar a liderança a representar melhor e interpretar melhor e produzir mais e melhor.

Mas ajudou mais Pedro Passos Coelho do que alguns daqueles que mencionou, ou não?

Ajudei muito, por exemplo, Luís Filipe Menezes, de quem sou amigo e continuarei a ser amigo. A minha intenção é sobretudo ajudar o partido, coisa que eu acho que deve ser a atitude mais necessária. Um partido político em Portugal não é um produto da figura de uma pessoa, é uma conjugação de vontades, de intenções e de setores que se unem. Ou seja, não há líderes que salvem um partido político, há líderes que conseguem mobilizar uma elite, conseguem mobilizar os militantes, conseguem mobilizar uma fração importante da sociedade portuguesa em objetivos concretos para que o partido os possa concretizar.

Já disse que Pedro Passos Coelho não está a fazer isso no PSD.

Eu não personifico nem pessoalizo a questão junto só a Passos Coelho, falo do PSD como um todo, porque o líder é aquilo que o partido o deixa ser. Eu não posso criticar Passos Coelho, não posso, não o faço, nem o quero fazer, sem ter em conta que ele é um produto do próprio partido. E se o partido não tiver esta lógica interior, não leva o líder a obrigar-se sê-lo também. O que está em causa não é só a liderança, o que está em causa é como o PSD vive hoje o atual momento, como o PSD atua em relação a este momento. Isso é que está em causa e é por isso que me interessa lutar, não é por pessoas.

Que avaliação é que faz, de qualquer forma, desta fase de passagem à oposição?

O que eu já disse é suficiente.

Santana Lopes, em entrevista esta semana ao Público e à Rádio Renascença, garante que Passos Coelho ganhará a Rui Rio ou a Morais Sarmento se eles se candidatarem à liderança do PSD. Perante o momento em que está o PSD, acha possível derrotar Passos Coelho no próximo congresso?

Vou-lhe dizer mais uma vez, não é o meu ângulo de análise. Eu não estou preocupado em saber se A derrota B ou C derrota D. O meu interesse é: será o PSD capaz de produzir um conjunto de objetivos, e de mobilizar as pessoas para um conjunto de objetivos, que sejam necessários para o país ser melhor, para cada português ser mais feliz? Ora bem, isso não é o trabalho de uma pessoa, não é o trabalho nem a consequência da derrota de uma pessoa, é de um movimento. A mim o que me interessa é o movimento.

Mas é preciso uma liderança. Pergunto-lhe se confia que Rui Rio avance e se...

Acho que Rui Rio vai avançar, ele disse-o. A partir de outubro e não até lá. Ainda bem que não o faz até lá. A partir dessa altura veremos. Mais uma vez, a questão que se põe, a Rui Rio, a quem quer que seja, a Passos Coelho, a quem quer que se vá candidatar, não é tanto o que é que ele quer fazer, mas sim o que é que ele se propõe mobilizar e com quem. Mais uma vez a questão não é individual, de um líder, mas sim de uma equipa.

Mas Rui Rio é essa figura mobilizadora em seu entender, ou não?

Vamos ver, vamos ver. Eu acho que tem condições para isso, mas vamos ver.

Que influência julga que pode ter o resultado das eleições autárquicas nas várias lideranças, mas sobretudo na do PSD?

Formalmente não devia ter. Porque são eleições em que estamos a avaliar não um partido globalmente, mas vários líderes consoante os locais onde estão. A votação em Lisboa tem um significado diferente da votação, por exemplo, em Odivelas, ou em Sintra, ou em Aveiro, ou em Ovar. Tem significados distintos. Portanto, o que está em causa são, primeiro, espaços de concretização política mais reduzidos do que o espaço nacional; segundo, espaços onde os objetivos a ter em conta são mais limitados; terceiro, onde as lideranças pessoais têm maior efeito e maior importância do que têm noutros espaços. Donde, eu penso que não há uma correlação direta entre o resultado autárquico e a votação nacional. Com uma exceção que é a exceção dada pelos grandes espaços urbanos, onde há maior similitude entre a posição autárquica e a posição nacional.

Onde o comportamento dos eleitores também é mais semelhante nos vários atos eleitorais.

Onde é mais adequado e é mais próximo da similitude entre as duas posições. Se houver alguma consequência ou alguma implicação pós-eleitoral é na perceção do resultado dos grandes espaços urbanos.

Mas aí é em termos de votação global, porque as expetativas para o PSD no Porto e em Lisboa são muito baixas, a política também é a gestão das expetativas, aí não haverá um grande problema para gerir, mas pode haver em matéria de votação global. O que significa o que o partido conseguiu, nas grandes cidades, Porto, Lisboa, Coimbra, Braga, Aveiro, etc.

Aí se a penalização for grande, o PSD sente. Porque é o próprio PSD que sente, mais do que numa eleição mais individualizada de um presidente de câmara.

O Médio Oriente vive "uma situação política gravíssima"

Preside à Câmara de Comércio e Indústria Árabe-Portuguesa. Vamos agora olhar um pouco para essa zona do globo que tem uma grande influência sobre todo o mundo. Os Estados Unidos, em 2016, só importaram 25% do petróleo que consumiram e apenas uma pequena parte dessa importação vinha do Golfo Pérsico. Significa isto que a velha tese de que a América interfere no Médio Oriente por causa do petróleo já não é válida?

É, mas de outro modo. Os Estados Unidos não estão interessados, desde o tempo em que o presidente Roosevelt fez o acordo com o rei Abdul Aziz em 1945, no Mediterrâneo, o interesse americano é fundamentalmente a proteção do petróleo produzido naquela região e sobretudo a proteção dos fluxos. Foi essa a razão fundamental porque a operação Desert Storm em 1991 teve lugar. Foi a razão fundamental porque a operação militar no Iraque em 2003 teve lugar. Os Estados Unidos não querem controlar diretamente o petróleo, querem controlar o fluxo do petróleo e do gás natural.

Em segundo lugar, esse resultado que me está a dizer da produção norte-americana significa que os americanos são quase autossuficientes. Isso deve-se à revolução tecnológica que o shale oil and gas [petróleo e gás de xisto] produziu nos EUA e que associada à política saudita, sobretudo saudita, teve consequências no sentido do abaixamento do preço do produto.

Pois, porque deve ser isso que justifica, pergunto-lhe, que com tantas guerras no Médio Oriente - Síria, Líbia, Iémen, Iraque, etc. - o preço do petróleo esteja extraordinariamente baixo.

O preço do petróleo não depende tanto daquilo que são as formações da OPEP, como da política saudita de aumentar ou reduzir a produção. A intenção saudita nunca foi dirigida contra os Estados Unidos, foi dirigida sempre contra o Irão e a Rússia, sobretudo o Irão. Eles, sauditas, aceitam reduzir o preço e o rendimento do seu petróleo, mas isso tem uma consequência inevitável: nessa altura, o Irão, que precisa mais do rendimento do petróleo do que a Arábia Saudita, é prejudicado. Sem que isso ponha em causa a capacidade dos Estados Unidos em assegurar a rentabilidade das suas novas fontes de petróleo. E isso aconteceu. Portanto, o que está em causa, de facto, é o início nessa altura duma exposição, duma visibilidade clara, de uma disputa hegemónica no Médio Oriente entre o Irão e a Arábia Saudita.

Olhando para esse conflito entre islâmicos - sunitas contra xiitas, a Arábia Saudita contra o Irão -, agora o embate é entre a casa real saudita e o Qatar, ambos países muçulmanos sunitas, porque é que isto acontece em sua opinião?

Por uma razão simples, que é a intenção da Arábia Saudita no espaço sunita de liderar claríssimamente sem oposição e, sobretudo, sem uma manifestação de algumas nuances comportamentais dos seus aliados. O Qatar tem três problemas que a Arábia Saudita e outros países não gostam. Primeiro, tem a Al Jazeera...

E isso é uma questão de fundo. Foi o maior atrevimento do Qatar?

Foi, mas noutro sentido, porque quem criou de facto a Al Jazeera foi a BBC. O serviço árabe da BBC, com a qualidade e a independência que os ingleses têm na comunicação social, foi a fonte. A BBC extinguiu esse serviço e a organização do serviço foi assumida por vários empresários.

Sim, mas com financiamento do Qatar.

Foi do Qatar e saudita, mas passou a ser quase só do Qatar. Hoje em dia, a própria coroa do Qatar tem interesses diretos. Ora, a Al Jazeera tem sido um meio de comunicação social no mundo árabe não só com uma grande divulgação, mais do que Al Arabiya, mas tudo com um certo sentido de independência e de demarcação do comportamento político de alguns países. Portanto há uma pressão de alguns países, a Arábia Saudita é um deles, contra a Al Jazeera, culpando um dos donos mais importantes da Al Jazeera como fomentador disso, quando se sabe que a comunicação social é sobretudo resultado da ação dos próprios jornalistas. Como tal, o próprio alvo está mal encaminhado.

A segunda questão que a Arábia Saudita tem é não ter tomado suficientemente a peito a questão das jazidas de gás natural do Qatar, que são das maiores do mundo e que são contíguas a outras do Irão e, até uma há uma partilha de algumas. Como tal, é muito difícil ao Qatar estar formalmente a tornar-se totalmente independente, a não ter qualquer relação com o Irão quando tem de gerir aspetos comuns.

Por uma questão de defesa do próprio Qatar para não ter conflitos com o Irão.

É uma geografia, é uma geopolítica, se quiser. É uma geoeconomia. Isto é, as reservas que estão em determinados sítios são para ser utilizadas por dois países. Timor beneficia hoje de reservas de petróleo e de gás, neste caso também, que foram utilizadas pela Indonésia e pela Austrália. S. Tomé vai utilizar daqui a algum tempo algo que é produzido pela Nigéria ou pela Guiné Equatorial. Portanto, aí há uma inevitabilidade e estar a alterar a relação do Qatar com este problema não me parece fácil nem simples.
Terceira questão: a nova liderança. Há aqui um problema geracional muito importante, o rei Salman, protetor das duas mesquitas sagradas, é o último dos grandes gerontes da dinastia dos Saud. O seu filho, o ministro da defesa, é um rapaz novo que dirige com alguma energia o futuro da Arábia Saudita e que está a tornar-se independente e a querer assumir alguns papéis próprios. Nesse sentido, está a ir numa lógica de alguma agressividade e alguma radicalidade. No caso do Qatar, este cometeu algumas imprudências diplomáticas como foi, por exemplo, o apoio ao Hamas já há alguns anos, até o próprio rei foi lá e tudo. Comprometeram-se, portanto, talvez excessivamente em alguma medida com alguns movimentos que também são tutelados politicamente, apesar de sunitas, pelo Irão. E isso compromete. A ligação dupla, quer no gás, quer na geografia, quer um pouco nestas ligações com terceiros, colocou o Qatar numa posição difícil em relação à Arábia Saudita.

Porque é que a Arábia Saudita está assim? Não é só por mudança geracional. É por afirmação de uma autonomia e de uma hegemonia forte que é disputada todos os dias pelo Irão. É disputada na Síria, é disputada em vários locais. Isto prende-se agora com os Estados Unidos, que interessa posicionar. Como é que os EUA se posicionam nisto? Obama fez uma política de distanciamento, simultaneamente manteve sempre a aliança com a Arábia Saudita, mas também deu alguma credibilização ao Irão, na exata medida em que assinou um acordo nuclear com o Irão, que sempre teve a oposição de Israel e da Arábia Saudita, logicamente, e já veremos porquê. Simplesmente deu alguma força ao Irão para equilibrar o mundo xiita e sunita - não nos esqueçamos que a maior parte do Iraque é xiita hoje em dia - e como tal é muito difícil passar por uma política que ignore a força do mundo sunita, mesmo dentro do espaço árabe. Desse modo, eu creio que a dificuldade de perceção desta questão tem levado a que o distanciamento não tenha sido suficiente. E, como tal, hoje em dia a Arábia Saudita invoca e deseja que o Qatar siga à risca um conjunto de preceitos que o deixa, digamos, separado entre dois mundos. Enquanto Obama quis manter um certo equilíbrio por cima dos dois, mantendo uma disputa hegemónica latente, mas com baixa intensidade, a Arábia Saudita quer elevar a intensidade da disputa a seu favor.

E tem o apoio de Trump, não é?

Tem, na exata medida em que já fez duas coisas: primeiro, colocou no mesmo patamar os sete países de interdição de fronteira, que são a Síria, a Líbia, o Iémen, a Somália, o Sudão, o Iraque e... o Irão. É exótico e estranho, até na medida em que tem um acordo nuclear com eles. É estranho, mas colocá-lo é já um acinte. Agora, com o incentivo do apoio à posição saudita invocando as questões do apoio ao terrorismo, coisa que o Qatar não fará nem mais nem menos que outros países árabes, ou seja, formalmente estou convencido que não o faz. Pelo contrário, na Líbia ou na Síria está a apoiar os movimentos jihadistas contra o Daesh, portanto ele não tem razão nesta fundamentação. Trump deslocou-se de uma posição de equilíbrio entre os dois para uma posição de apoio exclusivo à Arábia Saudita, ora, essa posição norte-americana é frágil, porque incentiva não o equilíbrio no Médio Oriente, mas a pulverização.

Se daqui a oito ou dez dias tivermos um problema de não cumprimento das questões...

Pois, vai terminar o prazo. Acha que o Qatar vai cumprir?

Não. Não pode. Não pode extinguir a Al Jazeera, não pode aceitar que vá indemnizar por coisas do passado, que não sabe bem quais são nem qual a legitimidade de indemnizar quem, o quê, e porquê, Não pode, sem mais nem menos, deixar de falar com o Irão por jazidas de gás natural que lhes são comuns ou contíguas, não pode. Assim, não pode sequer aceitar uma posição de excessiva dependência da Arábia Saudita. Pior do que isso: estamos a atacar o Qatar quando o país tem duas bases militares, uma norte-americana com 11 000 pessoas e outra base turca em construção.

As duas da NATO.

Ora bem, são dois parceiros importantes da NATO. Se assim for e houver uma tentativa de disputa militar, o que eu acho que nunca chegará a acontecer, porque o risco que existe é, mais uma vez, a questão de o Médio Oriente ser um pretexto para elevarmos o patamar do perigo, o threshold do perigo, e colocarmos em oposição direta os vários contendores internacionais, ou seja, os Estados Unidos de um lado e, do outro, a Rússia que, neste caso, podia aliar-se à Turquia e ao Irão. Estamos, portanto, numa situação política de uma intensidade gravíssima que está a ser elevada a um centro de gravidade injustificado, inusitado e, do meu ponto de vista, errado. Era preciso acalmar e a única entidade do mundo, que eu acredito forte e piamente, que tem capacidade "imperial" para se impor minimamente e conseguir encontrar alguma plataforma de paz e de entendimento são os Estados Unidos. Ora, quando os EUA optam por um lado, em vez de manter um certo equilíbrio entre os dois, é perigoso porque podemos chegar a uma última situação que interessa e é fundamental percebermos.

Porque é que a Arábia Saudita e Israel sempre estiveram contra o acordo nuclear? Israel quer ser o único país do Médio Oriente com capacidade nuclear, apesar de não ter celebrado um acordo. Mas quer ser o único porque tem armas nucleares. Tem armas nucleares e tem veículos transportadores de ogivas nucleares. A Arábia saudita nunca terá, mas na exata medida em que o acordo nuclear agora veda já, já, a produção de energia nuclear ao Irão - o Irão não é uma sociedade de beduínos, não é uma sociedade nova, o Irão tem 3000 anos, foi das civilizações mais antigas, Ciro, Dario, Xerxes, os sassânidas, os corassane..., há uma História no Irão de uma profunda e importante civilização que lá esteve, que Alexandre Magno derrotou, mas que lá esteve sempre e que se mantém - portanto, estar a pensar que o Irão é um país pouco estável, pouco organizado, é um erro político, é um erro de interpretação histórica, como tal o que vai acontecer é que a longo prazo o Irão vai ter capacidade nuclear, não tem já, mas se não houvesse este acordo tinha-a já. A longo prazo pode-a ter.

Israel não quer que chegue este momento, nem a Arábia Saudita. Mais, se passam vários anos até que cheguemos a este ponto, qual será a reação saudita se isso acontecer e a própria Arábia Saudita souber que não está em paridade estratégica com o Irão? Pode acontecer uma coisa estranhíssima, é que o entendimento saudita-israelita venha a ter um efeito de celebração e de consistência que não teve até hoje. O que é um facto totalmente novo e eu não sei se a administração Trump não quer isto. Por isso, a pergunta que fica no ar para mim, e para todos se calhar, é: será que estamos já a ser conduzidos para uma política de longo prazo em que Israel mostre uma grande, enorme influência sobre a administração Trump e a sua política, ou não?

Portugal é vizinho do mundo árabe...

...Mais do que isso, somos herdeiros de parte da civilização árabe. Temos sangue árabe.

Isso é uma vantagem ou uma desvantagem em termos da relação com esses países?

Para já, é uma circunstância. Nós não podemos mudar a História. Portanto temos sangue árabe, tudo o que é de bom e de mau está lá e, como tal, nós temos é de aproveitar. Em segundo lugar, Portugal há muitos anos que faz uma política de aproximação inteligente, correta, ao mundo árabe. Com vantagens. Gostava de lhe dizer uma coisa: em todas as votações importantes, onde Portugal foi votado, nas Nações Unidas, noutros locais da História das organizações internacionais, o mundo árabe votou sempre com Portugal por unanimidade. Logo, isso é uma vantagem para nós.

Isso dá-nos alguma garantia de que Portugal seja hoje um país seguro à luz dos fenómenos...

Isso era se o mundo árabe tivesse algum controlo sobre o fenómeno da segurança e do terrorismo, e não tem. O fenómeno do terrorismo tem dois significados ou, se quiser, duas interligações: primeiro, com efeitos de algumas comunidades que estão em alguns países e não foram integradas suficientemente. A França e a Inglaterra são casos evidentes, comunidades indianas, comunidades paquistanesas no caso de Inglaterra, no caso francês comunidades magrebinas, demasiado marginalizadas e, como tal, com apetência para mudanças radicais em alguns casos. Nós não temos isso. Em segundo lugar, temos uma geografia que de facto é uma vantagem. Tem muitas desvantagens incluindo a de estarmos na periferia, mas, às vezes, a periferia tem vantagens. A distância é para nós uma enorme vantagem. Agora, temos beneficiado bastante com a crise que o terrorismo provocou no Mediterrâneo. Aparentemente ganhamos, mas a longo prazo nunca se ganha, porque temos de apostar sempre na estabilidade do Mediterrâneo. Não podemos jogar politicamente em gostarmos muito da crise do Mediterrâneo para nós ganharmos. É um erro. A longo prazo temos de perceber que ganhamos ou perdemos todos com a destruição do Mediterrâneo ou com a grande articulação entre as duas margens do Mediterrâneo. Portugal tem apostado nesse ponto e eu acho que o deve.

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