O que é o apadrinhar? O que levou juízes, procuradores e técnicos da área da infância a defenderem uma lei como a do apadrinhamento civil? Antes de mais, porque era necessário encontrar-se novas respostas que não fossem só a institucionalização, ou residencialização, como agora se designa este tipo de acolhimento. Depois, porque compensa sempre quando se consegue retirar uma qualquer criança de uma instituição para um ambiente familiar. Apadrinhar é um ato de solidariedade, é um ato de afeto para qualquer criança ou jovem. É pois preciso que os técnicos acreditem muito neste projeto. O DN pediu ao juiz Paulo Guerra, diretor adjunto do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), que respondesse a algumas perguntas sobre o que se passa com esta lei, quase dez anos depois de ter sido aprovada e de ter entrado em vigor. Aqui ficam as respostas que enviou por escrito..Foi um um dos impulsionadores da Lei do Apadrinhamento Civil (AC). Trata-se de uma lei que apenas pretendeu resolver situações de crianças que já estavam à guarda de pessoas de confiança e de família ou que tinha um objetivo mais vasto? Eu fazia e faço parte do Observatório Permanente da Adoção do Centro de Direito de Família de Coimbra onde foi gizada esta nova providência tutelar cível, pensada para retirar, em primeira linha, crianças em perigo da fatal institucionalização. Na verdade, quando as crianças se encontram numa situação de perigo e são retiradas às suas famílias beneficiam de uma medida temporária que significa bastantes vezes a sua institucionalização, por um certo período de tempo. Os técnicos de serviço social que acompanham o caso devem procurar, num prazo razoável, definir um "projeto de vida" para a criança. Todavia, o elenco de possibilidades de que os técnicos dispõem é limitado: ou se prevê que as crianças possam regressar à família biológica ou se espera que possam ser encaminhadas para a adoção. Contudo, tanto a primeira como a segunda possibilidade podem ser, na realidade, difíceis de concretizar. O regresso à família biológica implica meios de intervenção capazes, o que nem sempre é possível, escasseiam técnicos, escasseiam meios suficientes e em tempo de dificuldades económicas é mais provável que as famílias frágeis piorem a sua vida do que o contrário. Neste campo não há soluções milagrosas, as respostas são complexas e conflituais. O espaço da criança é sempre, de confronto, de (des)afetos e (in)competências, de parentalidade e filiações desencontradas. O encaminhamento para a adoção, por vezes, também não é fácil..Mas qual era o objetivo da medida? Tudo isto desemboca numa realidade em que as crianças, que num primeiro momento de emergência foram acolhidas em instituição, vão continuando nessas instituições esperando, esperando por um futuro. Urgia e urge então encontrar novas formas de colocação definitiva das crianças e dos jovens, que se acrescentem ao regresso à família biológica e à adoção, pois que estas duas soluções conhecidas não têm sido suficientes para evitar que as crianças e os jovens permaneçam demasiado tempo em instituições de acolhimento. O apadrinhamento civil - cuja noção se encontra na lei - é um instituto de afetos, daí não ser pago (ao contrário do acolhimento familiar), embora tenha incentivos sociais, se calhar, poucos. Portanto, a ideia-base foi desinstitucionalizar crianças, e não tanto atribuir confianças jurídicas de crianças a pessoas que já tomavam conta delas. Contudo, as duas realidades podiam viver paredes-meias. E a verdade é que os poucos casos de apadrinhamento civil resultaram da segunda destas situações..Dez anos depois de a lei entrar em vigor ainda acredita que pode ser a solução para tirar mais crianças e jovens de instituições? Claro que sim. Pode ser uma resposta. A criança precisa agora é que o Estado e os possíveis padrinhos lhe façam a pergunta certa. É um instituto para a vida, não cessando aos 18, 21 ou 25 anos, tal como uma medida de promoção e proteção. É uma providência mais ampla do que a tutela e menos ampla do que a adoção. E também pode ser uma solução para prevenir a residencialização de crianças (o novo termo para «institucionalização» desde a revisão de 2015 da Lei de Proteção), levando a que haja gente idónea que as receba em sua casa, embora não como "filhos legais", mas de forma a que possam usufruir de um acolhimento familiar que, já sabemos, é tão gratificante para o desenvolvimento de qualquer ser humano. Sabemos todos que cada ano de residencialização de uma criança equivale à perda de quatro meses de desenvolvimento. E a criança tem direito a uma vinculação segura com adultos de referência e isso não se consegue na melhor das casas de acolhimento!.Como se explica que ainda haja juízes que nunca aplicaram esta medida, procuradores, técnicos e casas de acolhimento que a desconhecem ou que nunca a propuseram? Primeiro que tudo, o Estado nunca fez o que lhe competia - nunca publicitou devidamente esta providência tutelar cível. Nunca houve efetivas campanhas mediáticas para a divulgar. Os magistrados conhecem todos a figura. No CEJ sempre foi ensinado este instituto. O problema é que, se não há candidatos a padrinhos, os tribunais e as CPCJ nada podem fazer. Sei que a CNPCJP tem feito um esforço de formação para que seja aplicada a medida pelas CPCJ, nos casos em que tal se justificar. O apadrinhamento civil pressupõe uma convivência entre a família do padrinho e a família de origem da criança. Nem sempre isso se aceita bem por parte da primeira. Contudo, também acho que as pessoas ignoram este caminho. E se não há mais pessoas a querer apadrinhar é porque elas próprias desconhecem o que é isso do AC..Porque não temos candidatos a padrinhos? Teremos nós, portugueses, pouca vocação para acolher? É difícil para nós trazer para casa uma criança, não para ser nossa filha, mas para a podermos proteger e cuidar? Sabemos que temos poucas famílias de acolhimento em Portugal (e daí a necessidade atual de ativar essa medida de promoção e proteção, tão pensada para crianças até aos 6 anos que tenham de ser retiradas provisoriamente de casa de seus pais). Por isso, porque é que não temos mais candidatos a padrinhos? Porque há que os saber recrutar e seduzir para esta nobre tarefa. Dar-lhes incentivos sociais para que haja mais candidatos....As famílias não estão preparadas para lidar com este tipo de realidade? Laços, passado, duas famílias para uma criança? Essa é também uma acrescida dificuldade, como já referi. Não é cómodo ter de conviver com a família de origem que é reclamante, que exige muito... E isso pode fazer fugir muita gente cuidadora..Considera que alguém está a falhar nas suas responsabilidades para com as crianças que estão à guarda do Estado e que poderiam ganhar com um projeto de vida como o apadrinhamento civil? Falhamos todos. Como sociedade porque não nos dispomos a querer acolher crianças. Se calhar, acolhemos animais com mais bonomia..Para o sistema é mais fácil manter as crianças em instituições, fazer intervenção nas famílias e se não resultar enviá-las para adoção do que propor a autonomização?.A residencialização deveria ser a última resposta para uma situação de criança em perigo. Está pensada como tal. Mas na prática, na falta de outros recursos (e porque não há famílias de acolhimento e não há candidatos a padrinhos), recorre-se vezes de mais a ela..O que é preciso mudar no sistema para que uma medida como o apadrinhamento civil possa vingar? Que seja dado a conhecer ao mundo o instituto e se agilizem os projetos de vida, tendo em conta a possível aplicação do instituto. Porque o ainda reduzido número de casos de apadrinhamento civil constituído não é nem pode ser encarado como sinal de que este instituto fracassou. Não é uma lei fracassada a partir do momento em que ajuda nem que seja só uma criança. Eu continuo a acreditar que o AC veio para ficar - é mais um instrumento jurídico que atribui a confiança de crianças a terceiros, com vínculo afetivo e legal. Mais um de muitos. Pode não ter até agora ter acolhido senão 50 crianças. Contudo, existe e a ele pode ser lançada mão sempre que a situação do concreto João ou da concreta Maria assim o exigir....* Trabalho inserido numa investigação Especial - Crianças em Perigo, a ser publicado durante o mês de maio no Diário de Notícias.