"Aqui o mar acaba e a terra principia", um vapor da Mala Real Inglesa atraca ao cais de Alcântara depois de ter atravessado o Atlântico, "como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá". Nessa manhã chuvosa, com que José Saramago abre o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, os passageiros e o correio aqui desembarcados trazem notícias cada vez mais inquietantes, independentemente do seu porto de origem. O ano é 1936 e, neste lugar onde o mar acaba e a terra principia, Fernando Pessoa está morto há alguns meses, e Salazar reforça os instrumentos ideológicos da ditadura e o seu controlo pessoal sobre o aparelho de Estado..Neste ano em que se comemora, com pompa e circunstância, o décimo aniversário da revolução nacional (a de 28 de maio de 1926), reestrutura-se o Ministério da Marinha e o Presidente do Conselho chama a si, interinamente mas por muito tempo, também as pastas da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, neste caso após discordâncias com o ministro Armindo Monteiro, que será enviado a Londres como embaixador, embora a distância nunca ponha cobro à inimizade entre ambos. Sob a direção de Carneiro Pacheco (famoso pela célebre frase "quem muito lê treslê") consuma-se a reforma educativa que leva o seu nome: o Ministério da Instrução Pública passa a Ministério da Educação Nacional, foi fundada a Mocidade Portuguesa, a Mocidade Feminina e a Obra das Mães pela Educação Nacional, a Junta Nacional da Educação, o Instituto para a Alta Cultura, a Academia Portuguesa da História e o Instituto Nacional de Educação Física. É introduzido o modelo do livro único, a obrigatoriedade de afixação do crucifixo nas salas de aula e o casamento das professoras fica sujeito à autorização do ministério..Para o investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Quintino Lopes, que prestou consultoria histórica à adaptação cinematográfica do romance de Saramago por João Botelho, "esta mudança é dramática em várias áreas da vida educativa, mas também na investigação científica. Na Primeira República, e mesmo sob a ditadura militar, em Portugal fazia-se ciência com projeção internacional e não estávamos propriamente isolados." A Junta de Educação Nacional, antecessora do Instituto de Alta Cultura, "não estava manietada ideologicamente e chegou a recusar, em 1930, uma "cunha" do general Carmona em favor de determinado candidato. Nesse mesmo ano estivera prevista a vinda a Portugal de dois cientistas soviéticos, que acabaram por não vir por motivos logísticos, mas não por entraves políticos ou ideológicos." Para Quirino Lopes, embora se tenha continuado a fazer alguma boa investigação em Portugal (como no Laboratório de Fonética da Universidade de Coimbra), 1936, ano da reforma Carneiro Pacheco, marca o apertar da vigilância do regime sobre esta área. "Os candidatos a bolseiros do IAC passaram a estar sujeitos ao mesmo juramento de fidelidade aos princípios do Estado Novo e repúdio à ideologia comunista impostos aos funcionários públicos." Com efeito, a 14 de setembro desse ano, o Decreto-Lei n.º 27 003 impõe "para a admissão a concurso, nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência voluntária, em relação aos lugares do Estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativos", um documento, com assinatura reconhecida, em que se leia: "Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933 com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.".Na linha do que se passava em vários países europeus, 1936 será o ano em que a ditadura elegerá o comunismo como principal inimigo, o que levará à manifestação de 28 agosto desse ano, na Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa, acontecimento central em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Identifica-se o alvo a abater, estimula-se a delação. Não por acaso, este é também o ano em que é criada a colónia penal do Tarrafal, em Cabo Verde, para onde são deportados os primeiros presos políticos a 29 de outubro. Entre eles, seguem os marinheiros insurrectos da revolta de 8 de setembro que tinham tomado os navios Dão, Afonso de Albuquerque e Bartolomeu Dias, com o objetivo de os pôr ao serviço dos republicanos espanhóis que, desde julho, enfrentavam a reação nacionalista de cariz fascista, apoiada por italianos, alemães e, cada vez mais abertamente, pelo Governo de Salazar, que, a partir de outubro desse ano, cortará relações diplomáticas com o Governo espanhol saído das eleições de maio..Para o regime português, como para a maior parte dos Estados ocidentais, a Guerra Civil de Espanha tem um efeito de soro da verdade. Mas não só os acontecimentos do país vizinho revelam posições. Dois meses depois de a Alemanha quebrar o estabelecido em Versalhes, remilitarizando a Renânia, ante a passividade de França e Inglaterra, Haile Selassie I, imperador da Etiópia, chega a Londres. Dirigira uma guerrilha contra o exército italiano invasor, que tinha como objetivo construir uma "ponte" entre as suas possessões da Eritreia e da Somália, mas, sem que alguma vez chegasse o apoio prometido pela Liga das Nações, não teve qualquer hipótese de vencer as bem apetrechadas forças comandadas pelo general Badoglio, que entrou em Adis Adeba a 5 de maio e proclamou o rei Vítor Emanuel III novo imperador..Vencido mas não convencido, Selassié iniciou um périplo europeu em busca de simpatias para a sua causa. À sua chegada à capital britânica, onde permaneceu até 1942, o primeiro-ministro Baldwin ainda sugeriu a Eduardo VIII que "seria um gesto de boa vontade receber o etíope", mas o monarca não se comoveu e terá respondido: "Boa vontade com quem? Não com os italianos, certamente." E mandou um dos irmãos mais novos, o duque de Gloucester, em seu lugar..Podia dizer-se, sem que isso sirva de desculpa, que o rei tinha mais em que pensar. Jorge V morrera a 20 de janeiro de 1936, após 25 anos de reinado. Sucedeu-lhe o filho, Eduardo VIII, que fora um muito popular príncipe de Gales. Bem-parecido, elegante e extrovertido e com um vago interesse pelas condições de vida da classe operária (em todo o caso maior do que o revelado pelos seus antecessores), inquieta o Governo conservador de Stanley Baldwin não apenas por se manter solteiro (e sem herdeiro) aos 40 anos, mas pela sua continuada preferência amorosa por mulheres casadas ou divorciadas. A possibilidade de ver a última dessas conquistas, a divorciada norte-americana Wallis Simpson, transformada em rainha de Inglaterra divide a sociedade britânica e transforma-se num folhetim à escala mundial..O desenlace, aparentemente romântico, desta crise ocorre a 11 de dezembro, quando, aos microfones da BBC, o rei que não chegou a ser coroado anunciou que lhe seria impossível assumir a pesada responsabilidade da coroa sem o apoio da mulher que ama. Suceder-lhe-á o irmão, duque de York, com o nome de Jorge VI, mas, para muitos historiadores, mais do que o respeito pelas convenções morais da época, pesara o mal-estar causado pelas amizades nazis do monarca e de Wallis, nomeadamente com o embaixador alemão em Londres, Joachim von Ribbentrop. Nas décadas seguintes, vários historiadores reforçaram esta ideia em obras mais ou menos fundamentadas..A violência passava de uns continentes para os outros como uma pandemia. Os jornais iam dando conta da crescente agressividade bélica do Japão no Extremo Oriente (nomeadamente contra a Manchúria e a China). No Brasil, o Governo de Getúlio Vargas (cujo regime também se chamará Estado Novo) imita a sanha anticomunista da Europa e prende o líder do PCB, Luís Carlos Prestes, ao mesmo tempo que repatria para a Alemanha (seu país de origem) a mulher deste, Olga Benário. Judia, morreu na câmara de gás de um campo de extermínio em 1942. Mas nos Estados Unidos, onde Franklin Delano Roosevelt foi reeleito, a atenção do cidadão comum ainda preteria os graves problemas do mundo em favor de dois "folhetins de grande fôlego": um real (o julgamento do alegado assassino do bebé Lindbergh) e outro de ficção, o romance de Margaret Mitchell, E tudo o Vento Levou..Pressionados por esta alucinante conjuntura, os jornais portugueses não deixam de dar conta da vida de todos os dias, tanto quanto o permite a Comissão de Censura Prévia. Longe dos holofotes da história, cantam-se fados no Café Luso, a revista Arre-Burro, com Beatriz Costa, em cena no Teatro Variedades atinge, no final do ano, 300 representações, o arquiteto Pardal Monteiro projeta os edifícios do Instituto Nacional de Estatística e do Diário de Notícias, na Avenida da Liberdade. Com o pão nosso de cada dia, espera o comum cidadão que nuvens tão negras se dissipem sem borrasca nem estrago de maior. "Aqui o mar acaba e a terra principia."