Se não fosse O Ano da Morte de Ricardo Reis talvez José e Pilar nunca se tivessem conhecido. O primeiro livro de José Saramago que Pilar del Río leu foi O Memorial do Convento. A jornalista gostou tanto que quis ler todos os títulos daquele autor português e depois de ler O Ano da Morte de Ricardo Reis e de ter espalhado o vírus Saramago por entre os amigos, decidiu vir a Lisboa para conhecer aquela cidade de colinas e passeios empedrados por onde tinha andado Fernando Pessoa. "Vim, não conhecer o autor mas para seguir a rota do livro", conta Pilar. "Vim de Sevilha, com amigos, todos fascinados com o livro, e trazia o meu exemplar para me guiar." Um dia, encheu-se de coragem e telefonou a José Saramago para lhe dizer o quanto tinha gostado do seu livro e como gostaria de conversar com ele. Encontraram-se no dia 14 de junho de 1986..O escritor contou, no filme José e Pilar, documentário de Miguel Gonçalves Mendes, como foi esse encontro: "Fizemos um percurso muito pouco romântico, que foi ir ao Cemitério dos Prazeres, onde o corpo de Pessoa já não estava, daí fomos ao Mosteiro dos Jerónimos, para onde ele tinha sido trasladado, e sentámo-nos nos claustros a conversar. Nisto, devemos ter levado duas horas, duas horas e meia. E aí ficou tudo. Gostei de tê-la conhecido. E tive o pressentimento de que aquilo seria o início de algo mais profundo.".Nesse dia não falaram muito da sua vida, discutiram literatura e política, descobriram afinidades, trocaram os endereços. Voltariam a encontrar-se em outubro, um ano depois estavam juntos, dois anos depois casavam-se. "Portanto, este é um livro especial", diz Pilar sobre O Ano da Morte de Ricardo Reis. "Foi o livro que permitiu o 14 de junho, foi o livro do conhecimento.".Das janelas da Fundação José Saramago, instalada na Casa dos Bicos, em Lisboa, vê-se a oliveira plantada em homenagem ao escritor falecido em 2010, o pequeno jardim também batizado com o nome do laureado com o Nobel da Literatura e, ao fundo, o rio Tejo. Cá dentro, Pilar del Río, atualmente com 70 anos, desdobra-se em telefonemas, entrevistas, conferências por Zoom, reuniões de trabalho. José e Pilar estiveram casados durante 22 anos. Hoje ela é não só a presidente da fundação e guardiã de todas as memórias, como é uma das maiores conhecedoras da obra de Saramago..Sobre O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, diz-nos que é "um livro que ele fez com temor e reverência. Ele sabia que muitos académicos pessoanos não lhe reconheciam autoridade para falar do grande poeta. E no entanto ele sentia que os leitores podem falar dos autores que amam. E ele era um grande leitor de Fernando Pessoa"..O Ano da Morte de Ricardo Reis acabou por se tornar "um livro de culto" e um dos mais conhecidos do escritor português - sendo neste momento uma das obras que integram o programa da disciplina de Português no 12.º ano, a par de O Memorial do Convento. "O Memorial do Convento é muito popular em Portugal, fora de Portugal evidentemente o livro mais conhecido, mais citado, e que é mais traduzido, é Ensaio sobre a Cegueira, depois Evangelho segundo Jesus Cristo e a seguir, talvez, seja O Ano da Morte de Ricardo Reis", diz..Uma das características que tornam este livro tão interessante é o facto de ter sido escrito em 1984, contando uma história de 1936 mas que, afinal, é intemporal. E que continua atual. "Assim se demonstra que os intelectuais, os pensadores, têm capacidade antecipatória. Saramago já estava vendo para onde ia o mundo. Descreve-o com enorme tristeza em Ensaio sobre a Cegueira e fá-lo também em O Ano da Morte de Ricardo Reis", explica Pilar del Río. "E, anos depois, João Botelho, também com grande capacidade antecipatória, diz-me que quer filmar este livro porque ele nos conta o mundo de hoje. E o filme também fala do mundo de hoje", diz, referindo-se ao aparecimento de vários líderes políticos, um pouco por todo mundo, com ideologias ligadas à extrema-direita e ao modo como ideias que julgávamos extintas - como a superioridade de uma raça ou de um povo sobre outro - parecem estar a ser aceites por alguns núcleos da sociedade..Pilar del Río já viu o filme de João Botelho três vezes. E talvez venha a ver mais. "Adorei", admite. "Vi quando ainda não era a versão definitiva, vi-o no Porto, na semana passada, e vi-o nesta semana, em Lisboa, no Centro Cultural de Belém. Desta vez já não estava nervosa e pude vê-lo melhor. E novamente me pareceu magnífico. Fiquei emocionada. Impressionou-me tanto que quando cheguei a casa não conseguia dormir.".A pergunta que todos fazem é: será que Saramago iria gostar deste filme O Ano da Morte de Ricardo Reis? Não esperem que Pilar vos ajude a encontrar uma resposta. "Não penso nunca no que diria Saramago porque isso me parece sempre um atrevimento", diz a viúva do escritor que em 1998 ganhou o Prémio Nobel da Literatura. "Mas sei o que ele dizia. Ele dizia: cinema é cinema, literatura é literatura. Ninguém pode ir ao cinema à espera de ver um livro." As diferenças são abismais, o livro é uma via direta entre o escritor e o leitor que o desfruta sozinho, se esse livro for adaptado ao cinema o filme já é uma nova obra de arte e portanto deve ser visto não tanto como uma mediação entre o escritor e o espectador mas antes como objeto de uma nova relação, entre o realizador e o espectador. Tal como Saramago, também Pilar diz: "Não fui ver o filme à procura do livro. O livro é o livro e já o conhecia. Fui à procura do trabalho de outras pessoa - o realizador, os atores, toda a equipa - e que é algo novo.".Não sabemos se Saramago iria gostar deste filme mas sabemos que ele gostava muito de cinema. "Era um cinéfilo", diz Pilar. "Via filmes praticamente todos os dias. Nos diários dele, fala todos os dias dos filmes que viu. Gostava, por exemplo, do cinema francês e tinha realizadores de culto, um deles era Fellini, outro era Bergman. E também gostava de alguns filmes que as pessoas, quando o ouviam falar, ficavam surpreendidas. Por exemplo, o Blade Runner." Pilar sabe que causa espanto com tal afirmação. Mas garante que era verdade: Blade Runner, de Ridley Scott (1982), "era um dos seus filmes preferidos, considerava-o extraordinário"..E vai mais longe: "Eu acredito que José pode de alguma maneira estar presente na sequela de Blade Runner pois José falou muito com os produtores de The Enemy", o filme baseado no seu livro O Homem Duplicado, a que escritor deu o seu acordo embora tenha morrido antes da concretização. O Homem Duplicado (2013) foi realizado pelo canadiano Dennis Villeneuve, o mesmo que viria depois a realizar Blade Runner 2049 (2017). Será uma simples coincidência?.Seja como for, Pilar recorda que tinham muitos amigos cineastas, alguns deles, como Bertolucci ou Pedro Almodóvar, chegaram a ir visitá-los a Lanzarote, outros, como Manoel de Oliveira, eram companheiros para longas conversas sempre que se encontravam..Ao longo da sua carreira, várias vezes propuseram a José Saramago a adaptação dos seus livros ao cinema. O escritor nem sempre reagia da melhor maneira. "Ele respeitava muito o cinema", explica Pilar. Por isso, "quando lhe pediam para filmar os seus livros ele dizia para não filmarem o livro, isso era impossível, mas para filmarem algumas situações ou algo a partir do filme. Mas se lhe falavam da palavra fidelidade ele quase vomitava, não há que ser fiel ao texto, há que ter uma visão própria do texto, era o que José defendia".."Tenho muita pena de que ele não tenha visto The Enemy porque, sabendo o que ele pensava do cinema, teria sentido que ali o realizador (o autor) fez o que quis, pôs as personagens que quis, e o que resulta é um filme "baseado em" mas não é uma reprodução mecânica de um livro." Pilar recorda que José Saramago gostou do filme Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles (2008), e gostou menos de Jangada de Pedra, de George Sluizer (2008), "porque sentiu que era um filme extremamente devedor do livro. Dizia: o realizador deveria ter brincado mais, não me deveria ter respeitado tanto, o respeito não é tão necessário"..Essa era uma ideia que ele repetia muito. Pilar recorda que, certa vez, Saramago participou numa conferência em Madrid para falar de cinema e literatura, e aí ele disse: "E o estilo literário como se reproduz?" É que, para o escritor, "uma obra de arte é estilo, um autor é estilo. um livro não é a história que contamos, não é o triângulo amoroso. Uma obra de arte é estilo. O estilo literário não pode ser passado para o cinema. O realizador tem de pegar no livro e criar algo novo, com liberdade. Saramago reclamava a liberdade para tudo, inclusive para fazer as versões dos seus livros."