O amor imperfeito segundo Ingmar Bergman
Há ligações que vale a pena o leitor ter em conta antes de se dizer mais sobre Scenes From a Marriage: Oscar Isaac e Jessica Chastain são amigos de longa data - daí a intimidade visível entre os dois na passadeira vermelha do Festival de Veneza, que há dias animou as redes sociais -, já foram inclusive marido e mulher no grande ecrã (Um Ano Muito Violento, de J.C. Chandor), e Chastain confessa-se uma devota de Liv Ullmann, tendo já sido protagonista de um filme por ela realizado em 2014, Miss Julie, a partir de uma peça de Strindberg. Ullmann foi a atriz que deu vida à Marianne de Cenas da Vida Conjugal (1973), a minissérie de seis episódios assinada por Ingmar Bergman, que depois a condensou num filme. Para a escrita, Bergman inspirou-se em parte na sua própria relação com Ullmann.
Dito de outro modo: há uma teia de cumplicidades que precede Scenes From a Marriage e torna a adaptação do texto de Bergman à realidade americana um pouco menos arriscada, ou menos imprudente. Os cinco episódios que chegam na segunda-feira à HBO, escritos e realizados pelo israelita Hagai Levi, têm ainda entre os produtores executivos Daniel Bergman, um dos filhos do mestre sueco. Ora saber isto também ajuda a entrar sem medo no espaço íntimo deste casal que segue as pisadas do par Erland Josephson e Liv Ullmann. Enfim, com algumas mudanças.
Uma delas é a "nudez" com que a produção se apresenta ao espectador. Em cada episódio, quase sempre no início, há um travelling que dá um vislumbre dos bastidores, com o arsenal da rodagem e os membros da equipa de máscara nos últimos preparativos antes de um dos atores entrar em cena. Como se o ambiente desta rodagem em tempos pandémicos fosse parte da ideia de casulo onde somos convidados a entrar, sem perder o pé no interior da angústia que se vai desfiando na troca de palavras e gestos, ora afetivos ora violentos, entre Mira (Chastain) e Jonathan (Isaac).
Sendo uma versão que absorve os traços da contemporaneidade - sente-se sobretudo a dependência moderna dos telemóveis -, Scenes From a Marriage experimenta também inverter os perfis e situações masculino/feminino da série sueca.
Para se perceber a operação de Levi nesse aspeto, podemos pegar num excerto do livro de memórias de Liv Ullmann, intitulado Mutações, onde a atriz norueguesa descreve a sua personagem a partir da recordação do dia em que entrou numa sala de cinema para assistir a Cenas da Vida Conjugal imiscuída numa plateia americana. Ela detém-se em particular sobre o momento em que Johan deixa Marianne por outra mulher: "Choro quando Johan parte, como a mulher junto a mim, na escuridão do cinema. Sei exatamente o que significa o bater da porta, ao fechar-se. Um automóvel afasta-se. O silêncio, em seguida, anuncia, com mais clareza do que qualquer outra coisa, o fim de toda a esperança. Acabou. Durante muitos anos, Marianne deixou que uma parte dela ficasse sem uso. Tudo o que uma educação tradicional sufocou. A sua visão da vida foi construída sobre convenções e falta de fantasia: o amor, em grande parte, era um sentimento de dependência."
Agora imagine-se que esta descrição psicológica corresponde a um homem. Exato. Na nova série, o Jonathan de Isaac "é" a Marianne de Ullmann. Um professor de Filosofia, judeu, que presta mais atenção à filha do que a mãe, Mira, que é a variante feminina de Johan, uma executiva da área da tecnologia que há já algum tempo sente o bloqueio da paixão dentro do "território seguro" em que se converteu o seu casamento. O corpo de Mira/Chastain precisa de aventura, e por isso é ela quem desperta o monstro adormecido entre os dois: um ódio que, segundo Bergman, é o condimento da imperfeição do amor.
Roubando a Ullmann mais umas palavras iluminadas: "Nenhum relacionamento entre as pessoas é perfeito. Não há violinos a tocar quando alguém que amo me beija. O happy end de Hollywood é um produto fabricado, que jamais encontra equivalente na vida real. (...) Quando Marianne e Johan se divorciam, descobrem laços mais profundos do que os do contrato do casamento. Sabem que pertencem um ao outro de maneira indefinível porque, na sua mútua libertação, aprenderam algo a respeito de si próprios - conheceram-se um pouco melhor. Não são perfeitos."
De Woody Allen (Maridos e Mulheres) a Noah Baumbach (Marriage Story), Hollywood já bebeu muito de Cenas da Vida Conjugal. Regressar agora ao espírito da letra de Bergman é como regressar a uma casa escura a meio da noite. Isaac e Chastain conhecem bem a linguagem da intimidade, aguentam longas cenas que podem passar da altercação magoada ao sexo, e, sobretudo, convivem bem com os fantasmas do original.
O facto de se assumir a dimensão teatral, através da referida entrada em cena dos atores, cria um distanciamento momentâneo que serve de teste para o espectador: será possível imergir na ficção depois de se ver Oscar Isaac a receber indicações do realizador antes de assumir a personagem? Bem, se um simples gesto sensual na passadeira vermelha de Veneza fez sensação mediática, imagine-se do que estes dois são capazes com uns copitos de vinho e vodka à mistura.
dnot@dn.pt