A marca americana Aunt Jemima, que tem 131 anos e produz farinha de panquecas, molhos e outros produtos para o pequeno-almoço, anunciou na semana passada que vai mudar o seu nome e logótipo. Em comunicado, Kristin Kroepfl, vice-presidente e diretora de marketing da Quaker Foods North America, proprietária da marca, reconheceu que "as origens da Aunt Jemima se baseiam num estereótipo racial"..A responsável acrescentou: "Embora tenha sido feito um trabalho ao longo dos anos para atualizar a marca de maneira a ser apropriada e respeitosa, percebemos que essas mudanças não foram suficientes". Depois disto, também o arroz Uncle Ben, o molho Mrs. Butterworth, a farinha Cream of Wheat e o gelado Eskimo Pie anunciaram que vão mudar a sua imagem..A contestação à utilização da imagem estereotipada das pessoas racializadas (não só os negros mas também os índios, os esquimós ou os hispânicos, entre outros) não começou agora mas ganhou um novo impulso após a morte de George Floyd e os protestos contra o racismo institucional nos EUA. O movimento Black Lives Matter tem chamado a atenção para todas as formas de racismo que estão presentes na sociedade e na cultura, e que nem sempre são encaradas como tal. Depois dos protestos na rua, exigindo justiça para George Floyd, vieram os movimentos contra as estátuas de figuras ligadas à escravatura e ao colonialismo, ao mesmo tempo que tem havido um intenso debate em volta do modo como os negros têm sido representados em obras de arte, livros e filmes - o caso mais conhecido é o do filme E tudo o Vento Levou mas não é o único.."Estamos a viver um momento extraordinário na história em que o próprio tema da vida negra se tornou parte central do nosso discurso nacional", diz Kevin Strait, curador do Museu Smithsonian de História e Cultura Afro-Americana. "Há um pedido amplo por justiça e mudança abrangente que visa não apenas o policiamento dos bairros negros, mas todos os aspetos da vida afro-americana, incluindo os símbolos anacrónicos, monumentos e iconografia que historicamente enquadraram as formas racistas e estereotipadas como os negros são vistos e tratados".."Mais vale tarde do que nunca, mas essas imagens causaram muitos danos durante um longo período de tempo, e isso não deve ser esquecido", comenta Todd Boyd, professor de cultura popular e racial da Universidade do Sul da Califórnia, citado pelo jornal USA Today..Quem é Aunt Jemima?.A marca Aunt Jemima (Tia Jemima), inicialmente só para mistura de farinha de panquecas, foi criada em 1889 e o seu nome foi inspirado na canção Old Aunt Jemima, que fazia parte do repertório dos espetáculos de minstrel surgidos no século XIX (espetáculos de música e comédia que parodiavam a cultura afro-americana e que eram interpretados maioritariamente por brancos)..A primeira imagem de tia Jemima foi baseada em Nancy Green, natural de Kentucky, uma escrava da época da Guerra Civil. Além de aparecer na embalagem, Nancy Green também aparecia em eventos, promovendo a marca..Depois de Nancy Green ter morrido em 1923, outras mulheres serviram de modelo a Aunt Jemima. A cozinheira Anna Short Harrington tornou-se Aunt Jemima em 1935, participando em demonstrações de panquecas e tornando-se conhecida em todo país. Depois dela, foram Lillian Richard e Ethel Ernestine Harper a aparecer nas embalagens da farinha..Originalmente, a tia Jemima era mostrada com um sorriso largo e usando um lenço no cabelo. Em 1969, perdeu o lenço. Após várias críticas, em 1989, a imagem foi reformulada, transformando-se numa mulher negra, de cabelos encaracolados e que usava brincos de pérola..Seja como for, todas as imagens nas embalagens desta marca são variações da figura da empregada negra (geralmente cozinheira ou baby sitter) ou da mammy, como era chamada, uma representação racial que remetia para o tempo da escravatura ou, mais tarde, da segregação de Jim Crow..Nessa altura, os criados negros que trabalhavam para os proprietários brancos foram mantidos à força nos seus lugares segregados mas, segundo a classe dominante, deveriam sentir-se felizes e agradecidos por esse trabalho. "Quando alguém abre a caixa, de manhã, vê essa cara feliz da mammy", explicou ao USA Today Rita Roberts, professora de história e estudos africanos no Scripps College, em Claremont, Califórnia. "Não importa que use pérolas, ainda é uma mulher negra feliz por estar no lugar onde está, a servir.".A escravidão, obviamente, era altamente lucrativa para as plantações porque o custo da mão-de-obra era muito baixo, depois da compra dos escravos, limitando-se ao fornecimento de alojamento e alimentação. Após a abolição da escravatura, a divisão racial entre trabalhadores brancos e não brancos manteve o custo da mão-de-obra abaixo do que seria justo. Se os trabalhadores brancos pobres pudessem ser convencidos a identificar-se mais com os empresários brancos do que com os colegas não brancos, isso reduzia o risco de os trabalhadores se unirem para exigir melhores salários e condições de trabalho..Dessa forma, Aunt Jemima e outras marcas ajudaram a dar aos americanos brancos outro "alguém para menosprezar". Essas figuras negras que os olhavam na cozinha, servindo-os com um sorriso, apoiavam a ordem social que ajudou a gerar lucro para os patrões americanos, considera Rita Roberts.."No caso da Aunt Jemima, os anunciantes brancos reduziram a negritude a algo que os brancos pudessem conhecer, possuir e confiar", diz Gregory Smithers, professor de história e coautor do livro Racismo nos meios de comunicação populares americanos: da Aunt Jemima ao Frito Bandito, editado em 2015..A polémica não é de hoje.A questão da representação das pessoas racializadas por diversas marcas tem-se vindo a arrastar ao longo de décadas - acompanhando a discussão também em torno da sua representação na cultura..A cadeia de restaurantes Coon Chicken Inn desapareceu em meados do século XX, depois de anos a usar a imagem de um negro sorridente com um boné de porteiro. O "Frito Bandito", imagem da marca de aperitivos de milho, foi retirado no início dos anos 70, após reclamações sobre como essa mascote mexicana, que usava sombrero, era apresentada como um fora da lei que falava inglês com sotaque..Há cinco anos, Riché Richardson, professora de literatura afro-americana na Universidade de Cornell, pediu a retirada de Aunt Jemima num artigo de opinião publicado no New York Times - um artigo integrado numa discussão mais ampla, após o massacre de nove paroquianos negros numa igreja em Charleston, Carolina do Sul, e que já na altura incluía estátuas confederadas e outras imagens da cultura popular..Richardson defende que Aunt Jemima simboliza o conforto que alguns americanos sentem nas imagens de servidão negra, tão normalizadas que até estão na caixa da farinha das panquecas. Ela considera problemático que Aunt Jemima seja um símbolo tão omnipresente da feminilidade negra quando existem tantas mulheres reais que são ícones da história afro-americana. "A questão é: queremos afeiçoar-nos a imagens que remontam a um passado em que os negros eram criados e aceitavam o seu lugar?", pergunta Richardson. "As pessoas que defendem esses símbolos estão a sugerir que esses são momentos nostálgicos. Não acho que as pessoas queiram de facto passar essa mensagem, mas, neste momento, não nos podemos dar ao luxo de enviar mensagens dúbias.".Todos esses nomes e imagens têm um denominador comum. São legados da antiga Confederação e "perpetuam esse mito do velho Sul ou o mito dos bons velhos tempos", explica ao USA Today Jason Chambers, professor associado da Universidade de Illinois, autor do livro Madison Avenue e a Color Line: Os Afro-Americano na indústria de publicidade. "Quando os afro-americanos ouvem os americanos caucasianos usarem essa frase 'bons velhos tempos', temos de perguntar o que querem dizer. Porque os bons velhos tempos de uns não são bons para todos."."A decisão de descontinuar a marca Aunt Jemima surge num momento em que se intensifica o dicurso sobre a importância das vidas negras [black lives matter]", diz Kevin Strait. "Baseada no arquétipo da mammy e das representações de blackface do século XIX, a imagem de Aunt Jemima é uma personificação histórica da caricatura racista que está profundamente arraigada na memória e na linguagem compartilhadas da cultura popular americana"..Essas imagens, dizem os críticos, perpetuaram estereótipos sobre os negros americanos que logo se tornaram insultos que ainda hoje são usados. Quando um rapaz branco chama "tia Jemima" a uma rapariga negra isso nunca é um elogio. Também não foi um elogio quando esta semana, no Twitter, alguns brancos tentaram gozar com a política da Geórgia Stacey Abrams dizendo que Abrams poderia substituir Jemima na caixa dos cereais. Abrams, que é negra, é uma ex-deputada estadual com vários diplomas universitários, incluindo um diploma de Yale em direito, é considerada uma potencial candidata à vice-presidência do candidato presidencial democrata Joe Biden..Um golpe de marketing?.Nem todos, porém, concordam com este passo das marcas americanas. As famílias de Harrington e Richard, duas das mulheres que foram modelos para Aunt Jamime, já vieram criticar a alteração dos nomes das marcas porque isso iria apagar a histórias daquelas mulheres..Além disso, outros veem nesta tomada de posição súbita nada mais do que um golpe de marketing. Depois de décadas de discussão e polémica, de repente, todos decidem mudar ao mesmo tempo? "Isso para mim é apenas cobardia", afirma Nsenga Burton, professora de estudos de cinema e media na Universidade de Emory.."É o que todos estão a fazer, então o que podemos nós fazer?" As marcas sentem-se pressionadas a mudar para não perder clientes e não por convicção, diz. Afinal o catalisador da mudança pode ser o mesmo que manteve tia Jemima viva desde 1889. Lucro. É por isso que esta especialista considera que estas alterações são apenas "correções superficiais". "Isso tem acontecer", diz ela, mas não é suficiente. Talvez as empresas pudessem fazer algo mais significativo, como investir em educação e programas de emprego para os negros americanos.