Um abraço entre o líder socialista, Pedro Sánchez, e o homólogo do Podemos, Pablo Iglesias, selou nesta terça-feira um pré-acordo de governo de coligação entre as duas forças políticas. Uma luz ao fundo do túnel para Espanha menos de 48 horas após os dois partidos terem perdido, em conjunto, dez deputados em relação às eleições de abril, quando após meses de negociações não foram capazes de desbloquear a situação política..Este é o ponto alto da relação entre os dois madrilenos, Sánchez e Iglesias (o anterior tinha sido a moção de censura a Mariano Rajoy em 2018), que já teve, contudo, muitos baixos causados pela desconfiança entre ambos, que agora parece ter sido esquecida..O socialista de 47 anos, por exemplo, foi surpreendido após as eleições de 2016 quando o líder do Podemos, depois de se reunir com o rei Felipe VI, disse que apoiaria um governo de mudança presidido por Sánchez no qual seria o vice-primeiro-ministro. Sánchez, que no passado apelidara o Podemos de "populista", soube da proposta pela boca do monarca..Agora, Sánchez terá de engolir alguns sapos, nomeadamente depois de ter dito que "não dormiria tranquilo" com ministros do Podemos no seu governo. Na noite eleitoral, e diante da ascensão da extrema-direita, Iglesias respondeu-lhe: "Acho que se dorme pior com 50 deputados do Vox do que com ministros do Podemos.".Quem vai ocupar que cargos só se saberá dentro de dias, mas parte-se do princípio de que Iglesias, de 41 anos, será vice-primeiro-ministro. E Sánchez terá mais um sapo para engolir. Depois das eleições de abril, o líder socialista garantia que o "principal obstáculo" a um acordo era ter Iglesias no Conselho de Ministros..Podemos pré-Sánchez.O Podemos nasceu oficialmente em janeiro de 2014, a partir do movimento dos indignados. Este tinha saído às ruas a partir de 15 de maio de 2011 contra as políticas do governo socialista de José Luis Zapatero, que, em plena crise, tinha resgatado vários bancos. "Não nos representam", gritavam os manifestantes, referindo-se aos dois grandes partidos que se revezavam no poder, PSOE e PP..As eleições de 20 de novembro de 2011, no rescaldo dos protestos, não alteraram esse statu quo. Sem Zapatero, que deixara a liderança socialista e com Alfredo Pérez Rubalcaba, o PSOE perdeu as eleições e o PP de Mariano Rajoy conseguiu uma maioria absoluta..Após as europeias de 2014, Iglesias, licenciado em Direito e doutorado em Ciências Políticas, que tinha sido um dos fundadores do Podemos e acabava de ser eleito eurodeputado, reagia à queda dos socialistas lamentando que as "elites do partido" tivessem "traído" os eleitores e acusando o PSOE de ser "um dos partidos da casta". Os seus avós tinham sido históricos socialistas. .Seria preciso chegar às eleições de 20 de dezembro de 2015 para se assistir ao fim do bipartidarismo em Espanha, já com Pedro Sánchez, licenciado em Ciências Económicas e doutorado em Economia e Empresas, ao leme da candidatura socialista. O ex-deputado na Assembleia de Madrid que tinha dado o salto para o Congresso de Deputados, casado e pai de duas filhas, foi o primeiro secretário-geral eleito pelo voto direto dos militantes..Na campanha, Sánchez colocou o PSOE como única alternativa ao PP. "Pablo Iglesias é um personagem político que mente mais do que fala.".O primeiro embate no Congresso.O Podemos estreou-se no Congresso de Deputados com a conquista de 20,7% dos votos, elegendo 69 deputados e ficando a apenas 21 do PSOE, que teve 22%. O fim do bipartidarismo confirmou-se com a eleição de 40 representantes do Ciudadanos, que nascera como oposição aos independentistas catalães mas saltara as fronteiras da Catalunha com o objetivo de ser a terceira via de todos os eleitores espanhóis..A vitória coube a Mariano Rajoy, líder do PP, que perdeu, contudo, a maioria que tinha (passou de 189 para 123). Ao não conseguir negociar um acordo para ser novamente investido primeiro-ministro, deixou a porta aberta para que o socialista o fizesse. Sánchez negociou um acordo de investidura com o Ciudadanos, liderado por Albert Rivera..Uma traição à esquerda que Iglesias não perdoou, votando contra a investidura do socialista. No debate tinha avisado: "O destino quis dar-lhe a possibilidade de liderar um governo histórico que corrigisse as desigualdades. Mas preferiu escutar a voz dos poderosos", disse para Sánchez, acusando-o de capitular à laranja mecânica (Ciudadanos). "Deixe de obedecer aos oligarcas, senhor Sánchez, deixe de escutar os cantos que o levam ao naufrágio", acrescentou Iglesias..Da tribuna, Sánchez respondeu: "Não é preciso serem tão duros com o PP, só basta que não votem como eles", lançou, apelando à abstenção do Podemos que teria sido suficiente então para governar. "Senhor Iglesias, não é que não se possa, é que vocês, sinceramente, não o querem", acrescentou o líder socialista..No debate, Iglesias irritou ainda os socialistas quando disse que o ex-primeiro-ministro Felipe González tinha o passado "manchado de cal viva", numa referência aos Grupos Antiterroristas de Libertação que estiveram ativos durante o seu governo e que sequestraram, torturaram e assassinaram etarras..A negativa do Podemos ao governo de Sánchez, apoiado pelo Ciudadanos, obrigou a repetir as eleições a 26 de junho, com Rajoy a melhorar a sua prestação, diante da queda dos socialistas e do Ciudadanos. O Podemos, já aliado com a Esquerda Unida, piorava também a prestação, com a esquerda a não conseguir impedir o PP de conseguir a investidura com a abstenção do PSOE..Sánchez preferiu deixar o próprio Congresso do que votar com Rajoy, depois de a direção do partido o ter forçado a demitir-se a 1 de outubro ao querer pactuar com o PP: "Não é não", repetiu o socialista. Os militantes socialistas, mais uma vez chamados a eleger o secretário-geral em junho do ano seguinte, apostaram novamente em Sánchez, que regressou triunfante após ter sido dado como politicamente morto..A moção de censura.O regresso à liderança do PSOE, em contracorrente com o que desejavam os barões socialistas mas com o apoio das bases, marcou uma mudança de postura de Sánchez e uma aproximação ao Podemos, que viria a concretizar-se na moção de censura que afastaria Rajoy do Palácio da Moncloa..Sánchez e Iglesias reconheciam então que PSOE e Podemos eram aliados imprescindíveis se queriam alcançar os seus objetivos. Sem o líder socialista no Congresso dos Deputados (tinha renunciado ao lugar), coube ao líder do Podemos assumir parte da oposição a Rajoy, apresentando uma primeira moção de censura sabendo que não ia ganhar. Na lei espanhola, a moção de censura é apresentada por quem irá assumir depois o cargo e Iglesias sabia que nunca seria aceite..Em plena crise dentro do Podemos (que culminaria na saída do amigo e fundador Íñigo Errejón), Iglesias foi negociando com outros partidos (nomeadamente os independentistas catalães) a hipótese de aprovarem uma moção de censura apresentada por Sánchez. Esta acabaria por se concretizar a 1 de junho de 2018, com Iglesias a alegar que trabalhou mais por ela do que o próprio Sánchez..Nessa altura, já tinha havido outro abraço entre ambos, depois de se ouvirem gritos de "sí, se puede" (Sim, pode-se) no hemiciclo..Sánchez reconheceu, no seu livro de memórias apresentado em fevereiro de 2019, Manual de Resistência, a melhoria das relações. "A minha relação com Iglesias é agora muito mais do que normal, é fluida e cordial com cumplicidade", dizendo que o oposto acontecia então com Rivera. "Nessa maior sintonia e no reconhecimento mútuo de méritos políticos, sem dúvida que se encontra o começo de uma melhoria na relação que resultou no triunfo da moção de censura de 2018", acrescentou. Mas o pior ainda estava para vir..No mesmo livro, o líder socialista não esquecia o bloqueio anterior. "Eu queria e devia entender-me com Iglesias, mas os seus desplantes, a tensão interna que me gerou, fazem-me recordar aquele provérbio árabe: podes arrastar um cavalo até à beira do rio, mas nem 50 homens o podem obrigar a beber", escreveu, acusando o líder do Podemos de estar demasiado obcecado com a estratégia para ultrapassar o PSOE (que as sondagens chegaram a dar como possível em 2016)..Depois da moção de censura, durante o governo de Sánchez, o Podemos atuou como o "sócio preferencial" do PSOE e ambos os partidos conseguiram até aprovar um Orçamento do Estado e medidas como o aumento do salário mínimo..O nascimento dos gémeos de Pablo Iglesias e a decisão de dividir a licença de paternidade com a companheira, a número dois do partido, Irene Montero, afastaram o líder do Podemos do Congresso e dos olhares públicos em dezembro de 2018, em plena crise política por causa de Errejón - que acabaria por deixar o partido em janeiro..Foi uma das ocasiões em que Iglesias interrompeu a baixa, tendo outra sido para tentar que fosse aprovado o Orçamento do Estado (sem sucesso). Regressaria ao trabalho só no final de março, um mês antes das eleições que Sánchez antecipou para 28 de abril ao ver rejeitado o novo Orçamento..As eleições de abril de 2019.A campanha eleitoral prévia às eleições de abril foi morna nos ataques entre Sánchez e Iglesias. Já então o líder da aliança Unidas Podemos estendia a mão a Sánchez para um acordo pós-eleitoral, queixando-se do silêncio do socialista em relação a um entendimento com o Ciudadanos..Sánchez agradecia a colaboração de Iglesias, mas reiterava a necessidade de uma "maioria ampla" no Congresso, lamentando a negativa que à partida Rivera lhe dava. O líder do Ciudadanos dizia-se arrependido do acordo para a investidura de 2016, que nunca chegou a concretizar-se..Os problemas viriam a surgir depois das eleições. Na primeira reunião a dois, diante da negativa à partida de PP e Ciudadanos, Sánchez falava num "encontro positivo e construtivo" e numa "vontade renovada de cooperação e entendimento" com Iglesias. Mas a insistência deste em fazer parte do governo esbarrava na rejeição do outro em aceitá-lo..As diferenças tornaram-se visíveis a cada novo encontro: primeiro queriam trabalhar num governo de "cooperação", depois falaram em "posições afastadas" e finalmente surgiu a ameaça do Podemos em votar contra o governo de Sánchez. No quinto encontro, a duas semanas do debate de investidura, o desencontro era total: os socialistas falavam da "falta de lealdade", alegavam que o Podemos punha os nomes à frente do conteúdo, que Iglesias insistia em ser vice-primeiro-ministro..A situação descambou a partir daí, com Sánchez a rejeitar de qualquer maneira ter Iglesias no seu governo, a criticar quando este quis pastas que seriam responsáveis por mais de metade do Orçamento do Estado. E a lembrar que Sánchez nem controlava o partido, logo não seria de fiar..No dia da primeira votação no debate de investidura, o Podemos absteve-se (inicialmente ia votar não, como fez Irene Montero porque votou antecipadamente ao estar em casa na fase final de uma nova gravidez). Iglesias deixava ainda aberta a porta às negociações que podiam decorrer no espaço de 48 horas, antes da segunda votação, em que Sánchez só precisava de maioria simples (mais votos "sim" do que "não")..Mas não houve acordo e a segunda votação terminou com nova abstenção do Podemos. "Se para ser primeiro-ministro tenho de renunciar aos meus princípios, não serei primeiro-ministro agora", lamentou-se Sánchez, que à última hora rejeitou a proposta feita já no palanque por Iglesias. Este disse que o partido renunciava à pasta do Trabalho, mas queria ficar com as políticas ativas de emprego.."Tenho aspirações a presidir ao governo, mas não a qualquer preço nem qualquer governo. É preciso um governo coerente e unido, não dois governos num governo", disse..Sánchez tinha passado o dia ao ataque. "Devo dizer que entre as forças de esquerda a investidura devia ter estado garantida desde o primeiro dia", lamentando que se esfumasse "a histórica oportunidade" de incorporar no governo "uma força de esquerdas à esquerda do PSOE". E acusou Iglesias diretamente de só pensar em cargos: "Nunca houve problemas de programa que impedissem o acordo", o problema "foram os ministérios". Sánchez teria oferecido quatro, incluindo um vice-primeiro-ministro (que não fosse Iglesias)..O líder do Podemos, na sua intervenção, acusou Sánchez de nunca tratar o seu partido com respeito. "É muito difícil negociar em 48 horas o que não se quis negociar em 80 dias", num tom sombrio. "Aceitámos tudo o que nos pediram, até um veto pessoal sem precedentes. Só lhes pedimos uma participação proporcional aos nossos votos", explicou..Novas eleições.Desde o primeiro momento, Sánchez disse que não iria ceder em setembro àquilo que não tinha cedido em julho, pelo que nem sequer se realizou novo debate de investidura ao final dos dois meses do prazo previsto e foram convocadas novas eleições para 10 de novembro..E a campanha ficou marcada pelos novos ataques entre ambos. Iglesias, por exemplo, qualificou de "eleitoralista" a exumação da "múmia" Franco, criticando o "espetáculo" que rodeou a trasladação dos restos mortais do ditador do Valle dos Caídos para um cemitério nos arredores de Madrid..E acusou sempre Sánchez de querer um resultado para poder ter pactos com outras forças políticas. A campanha foi feita sempre lançando a dúvida sobre um eventual pacto pós-eleitoral com o PP. Antes já tinha acusado Sánchez de mentir, admitindo que tinha sido um "erro" confiar no "mentiroso" - devolvendo o ataque feito por este ainda em 2015..Sánchez respondeu, apelidando o Podemos de "uma alegada esquerda que une os seus votos à direita e à extrema-direita para impedir uma e outra vez um governo progressista"..No debate, Iglesias voltou a estender a mão a Sánchez, mas este respondeu que o líder do Podemos já impediu um governo progressista em quatro ocasiões. "Se Iglesias não está no governo, o senhor Iglesias não aceitará esse governo", disse..Depois das eleições em que ambos perderam representantes (PSOE três e Podemos sete), aquilo que até agora tinha sido impossível está a ponto de acontecer. Menos de 48 horas depois, Sánchez e Iglesias assinaram um pré-acordo de governo e mostraram-se cordiais, com o socialista a agradecer ao líder do Podemos e este a prometer-lhe lealdade..Falta ver como se concretiza na prática o acordo (ainda não se sabe quem ocupará que cargos) e quanto tempo durará esta nova lua-de-mel à esquerda, que precisará de alguma abstenção para poder governar a Espanha. A confirmar-se será a primeira vez que há uma coligação de governo em Espanha desde o regresso da democracia, em 1976.