O 25.º fotograma por segundo que (quase) ninguém vê

Em película ou digital? Para o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento tanto faz. Perto do Freixial, Loures, há uma equipa que faz um trabalho invisível para conservar e preservar qualquer tipo de filme
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Bobina tirada da caixa, Filipe Lopes coloca a película na enroladeira da esquerda, pega numa espécie de fita branca, rodeia a película exterior, cola a ligação entre os dois materiais e identifica o filme e a bobina (normalmente são seis bobinas para guardar cada filme). Entre as enroladeiras, uma mesa de luz sobre a qual começa a desenrolar as 24 imagens por segundo do filme O Vestido Cor de Fogo, que transfere para a enroladeira da direita.

"É sempre assim cada vez que a cópia de um filme sai do Arquivo. O Filipe faz a revisão de toda a película e assinala qualquer anomalia, que depois fica registada na base de dados. E quando regressa o trabalho é repetido", explica Rui Machado, subdiretor da Cinemateca e responsável pelo Arquivo Nacional de Imagens em Movimento. Uma tarefa minuciosa, mas que os 15 anos de prática de Filipe Lopes fazem parecer fácil.

Este é um dos muitos trabalhos invisíveis que todos os dias é feito no ANIM, desde a sua criação em 1996. E foi certamente o que fez a Mundo Espelho Cinema, de Gustav Deutsch, hoje exibido às 18.30 na Cinemateca, em Lisboa, filme que inicia o ciclo "A Criação com os Arquivos", iniciativa com que arranca uma série de atividades que assinalam os 20 anos da criação do ANIM.

6 de outubro é o dia oficial da inauguração destas instalações construídas de raiz no Freixial, localidade do concelho de Loures, numa área murada de 18 hectares. "Uma das datas mais importantes para a Cinemateca e para o cinema português", defende Rui Machado. Porque foi a partir de 1996 que Portugal passou a ter um centro de conservação digno desse nome. Um centro que permite conservar e preservar todo o património cinematográfico português." Um património que, destaca, é "muito perecível, muito frágil, desde a película de nitrato à película de acetato até ao digital que ainda é mais frágil". Concretizando: a criação do ANIM permitiu concentrar num único espaço, com "condições de excelência a nível de climatização para preservação de películas", não só todos as imagens em movimento (filme, vídeo e digital) como uma equipa e equipamento adequados para a conservação e restauro desse património.

A construção dos três edifícios que formam o ANIM foi, por si só, uma mais-valia. Pensados para esta função, "o setor da conservação tem aqui condições únicas para guardar os filmes, em cofres climatizados e com grande fiabilidade nas condições necessárias". Inicialmente foram construídos quatro cofres, num total de 770 m2, repletos de estantes, com temperaturas entre os 4 e os 12 graus e com níveis de humidade relativa de 30%. E assim que as portas se abrem, sente-se o fresco que percorre os enormes corredores formados por estantes em que, tal como os livros nas bibliotecas, as caixas com as bobinas de película se sucedem, todas identificadas com uma espécie de quota. Com 37 107 obras catalogadas, nem poderia ser de outra forma.

Já em 2010, foram construídos mais cinco cofres, passando o espaço de armazenagem de filmes de acetato para os 1800 m2.

Um espaço diferente recebe as películas de nitrato. Produto altamente inflamável, esses materiais estão depositados num edifício que, visto de fora, parece um bunker. Construído numa espécie de cratera escavada numa área situada a uma distância de segurança do edifício principal, é formado por 56 pequenas celas, cada uma armazenando entre 150 e 200 bobinas, com portas corta-fogo e um sistema de segurança que, em caso de fogo, abre uma espécie de alçapão para o exterior, permitindo a saída dos gases provocados pela queima da película. Para além, claro, da temperatura e humidades controladas, tal como nos outros cofres de armazenagem.

Rentabilizar o laboratório

Estes espaços são apenas dois dentes da "roda dentada" que é o trabalho de arquivo, como o classifica Rui Machado. "Todos os setores estão interligados e dependem uns dos outros", sublinha. "A primeira fase é a prospeção: como Portugal não tem um regime de depósito legal, é obrigação da Cinemateca fazer uma prospeção ativa para saber onde estão os filmes e trazê-los para cá, apesar de continuarem a pertencer aos seus proprietários", explica. Este é um dos trabalhos que, verdadeiramente, não se vê, mas que tem uma consequência direta, claro, o enriquecimento do património que conta já com mais de cem mil materiais identificados e classificados.

Pouco visível também é o trabalho de Sara Moreira a quem cabe responder aos pedidos de apoio que chegam do exterior, "quase todos ligados a investigações académicas". E se há pessoas que pedem para ver um determinado filme (existindo para isso salas de visionamento, seja de película ou filmes digitais), há outros que solicitam imagens de temas tão diferentes quanto as aparições de Fátima, chapéus de senhora ou tomate, enumera Sara Moreira.

O setor da identificação é o que primeiro contacta com os filmes que chegam ao ANIM. Aqui veem--se filmes, identificando as características técnicas dos próprios materiais, primeiro, passando-se depois à sua catalogação, momento em que é elaborada uma extensa ficha com dados relativos aos atores, realizador, quem possui os direitos, sendo tudo incluído na base de dados. Algo que também só passou a existir com a criação do ANIM.

E onde por vezes há descobertas surpreendentes: "Em 2000, houve um depósito do antigo crítico de cinema, Henrique Alves Costa. Entre a sua coleção de latas de filmes identificámos um pedaço, com oito minutos, de nitrato, que não tinha qualquer identificação. Conseguimos identificar o ator - Emil Jannings, e pelas restantes personagens chegámos ao filme: era The Patriot, de Ernst Lubitsch, de 1928", conta Rui Machado. Um filme mudo que ganhou o Óscar da Academia para Melhor Argumento e foi ainda nomeado para Melhor Atriz, Melhor Realização, Melhor Filme e Melhor Direção de Arte, sendo estes oito minutos "o maior pedaço conhecido no mundo desse filme".

Uma das vertentes principais da atividade do ANIM passa pelo laboratório, "onde se fazem novos materiais fílmicos ou digitais de forma a prolongar no tempo a duração dos filmes". Aí existem duas máquinas: uma que faz cópias de película para película e outra que faz cópias de película para digital. E, desde há um ano, e após um investimento de cerca de 30 mil euros, o ANIM até já dispõe de uma máquina que "através de um sistema de lasers volta a gravar ficheiros digitais em película", explica Tiago Ganhão.

Por isso mesmo, Rui Machado não hesita em classificar o laboratório como "um setor fulcral, com uma potencialidade enorme, porque em toda a Europa é um dos poucos que tem a possibilidade de fazer trabalhos em película e digital". Razão pela qual o ANIM é procurado pelas congéneres espanhola, francesa, suíça e até colombiana para fazer trabalhos de restauro e cópias digitalizadas. Daí que esteja a trabalhar no sentido de encontrar um novo enquadramento legal para o laboratório, que permita contratar pessoas especializadas nesta área: "A contratação de qualquer novo técnico rapidamente iria ser compensada pelos trabalhos que iria fazer para fora. Embora o laboratório tenha também uma grande função interna, pode fazer-se uma divisão de trabalho, interno e externo, com retorno financeiro para a Cinemateca."

No próxima quinta-feira, só um conjunto de convidados vai poder conhecer de perto todo este universo. Bem como as milhares de peças relacionadas com a produção de filmes, desde câmaras de filmar, projetores, cartazes, que Teresa Parreira cataloga e conserva o melhor possível. Mas para novembro e dezembro estão previstas visitas guiadas para quem se queira inscrever. Basta estar atento às datas que a Cinemateca vai anunciar em breve.

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