Inês Henriques é campeã Europeia e Mundial dos 50 km marcha, uma prova que só existe porque mulheres como ela lutaram para que a distância fosse reconhecida pelas federações internacionais. Desde os Jogos Olímpicos de 1932 que os homens correm a distância, mas só em 2017 essa oportunidade foi dada às mulheres após uma batalha que se arrastou pelos tribunais e que a atleta recorda aqui a pedido do DN.."Para mim isto foi um grande desafio. Quando o Jorge Miguel, o meu treinador, soube que a Federação Internacional de Atletismo iria certificar o primeiro recorde do mundo dos 50 km marcha, começou a tentar saber mais, mas sem me dizer nada. Passado algum tempo chamou-me à parte e disse-me: "O que é que achas de tentar os 50 km?" Como eu nunca me senti inferior a nenhum homem... Nós mulheres fazemos as coisas de forma diferente, mas também fazemos. Em minha casa, a minha mãe sempre fez o trabalho de qualquer homem. É o meu exemplo. E eu, como sempre treinei com os homens e nunca me senti inferior, agarrei este desafio com muita energia..No ano passado estabeleci o recorde do Mundo dos 50 km em Porto de Mós (15 de janeiro de 2017 - 4:08.25). Pouco depois estávamos a lutar para que a prova fosse incluída nesse ano nos Mundiais de Londres. A Federação Internacional deixava-nos ir lá, mas não teríamos direito a medalhas e tínhamos de ter o mesmo mínimo dos homens (4:06.00), o que era injusto. Eu só queria que me deixassem participar e mostrar ali, perante o mundo, que nós mulheres também conseguíamos cumprir a distância e com qualidade. Aí, o advogado da norte-americana Erin Taylor-Talcott foi fundamental. Levou esta questão ao Tribunal Arbitral do Desporto e eu associei-me à causa. Estive a treinar sempre, sem saber que ia. Só a duas semanas dos Mundiais é que confirmaram que iria haver a prova e que teríamos direito a medalhas como os homens. Venci, bati o recorde do mundo e foi fantástico..Posteriormente conseguimos o mesmo para os Europeus de Berlim. Também não estava previsto, e foi preciso entrarmos com uma ação no Tribunal Arbitral do Desporto para que a Associação Europeia de Atletismo aceitasse a prova. Se isto não acontecesse, estaríamos a voltar atrás e não poderia ser. Se tínhamos a prova nos Mundiais, tínhamos de tê-la nos Europeus. No ano passado nos Mundiais éramos sete atletas, no Mundial de Nações já éramos 30 e neste Europeus tivemos 19, à partida. Isto é um sinal que nós queremos fazer a prova. Sinto-me recompensada porque outras mulheres estão a lutar por isto..Nos Europeus de Berlim ganhei a quatro homens. Foi engraçado porque eu ia no segundo grupo dos homens, e eles estavam incomodados por eu estar ali. Provavelmente estraguei-lhes a prova e eles estragaram a minha. Eu sou muito certa no ritmo, mas cada vez que me aproximava deles, eles aceleravam e eu ia na onda. Naquele grupo todos rebentaram porque não me queriam lá ao lado, deviam sentir-se inferiorizados..A próxima batalha é estarmos nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2020. É uma luta que nós vamos conquistar. Nós temos de lutar para estar, não é só treinar. Eu tenho de treinar todos os dias e ainda tenho de lutar por um direito que todos nós devíamos ter: a igualdade de oportunidades..Sem dúvida nenhuma que isto me deu uma nova vida e uma nova energia. Fazer os 50 km marcha aos 38 anos é como se fosse uma jovem a treinar para esta distância, já bati o meu recorde dos 10 km e este ano fiz a minha terceira melhor marca de sempre aos 20 km. Esta distância prolonga a minha carreira e vai ao encontro do que eu queria. Não consigo viver sem o atletismo porque amo o que faço. "A minha irmã às vezes vai comigo de bicicleta, vê-me a fazer os 40 km e fica surpreendida que no final eu esteja a rir-me. Esta é uma luta que vai ficar na história e será uma história muito bonita.". Testemunho recolhido por Miguel Henriques