Gonçalo Cordeiro Ferreira já pensa na reforma. O médico de 63 anos vem de uma extensa linhagem de pediatras e comemora, neste ano, três décadas de carreira. É diretor da Área de Pediatria Médica no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, médico no Hospital Dona Estefânia e presidente da Comissão Nacional da Saúde Materna, da Criança e do Adolescente. No currículo acumula vários cargos públicos, apesar das reticências em expor-se. Nos próximos tempos não quer dar mais entrevistas para não impor a sua presença ou opinião, diz numa das salas do hospital, onde trabalhou quase toda a vida. Mas antes aceitou falar sobre as urgências sobrelotadas, os recursos humanos e o futuro da pediatria.."As urgências são um enorme consumidor de recursos" e "não estão a servir para aquilo que foram feitas", lamenta o pediatra, que defende que nas urgências hospitalares só deveriam estar os casos mais graves. Todos os outros, na sua ótica, seriam atendidos nos centros de saúde ou em casa, vigiados pelo telefone. Desta forma, os médicos não despenderiam tantas horas com a urgência e passavam mais tempo a acompanhar os seus pacientes. Para Gonçalo Cordeiro Ferreira, os problemas da saúde "não se resolvem injetando pessoas, nem aumentando a oferta. Resolvem-se restringindo a procura e redistribuindo-a"..Há falta de pediatras nas urgências, uma carência extrema no Alentejo e no Algarve. O que se passa com a pediatria em Portugal? Nós temos de reformar a forma como atendemos as crianças. Vai ser impossível termos pediatras se continuarmos a ter esta completa loucura de acessos indiscriminados à urgência. Se tivermos os médicos a fazerem urgência, então não os temos a fazer as outras coisas, que até são mais importantes. Precisamos é de ter pessoas a atender os doentes que estão internados, porque esses são os mais graves, e pessoas que façam consultas aos doentes que são referenciados para os hospitais. Quando a maior parte dos médicos têm um horário de 40 horas com 18 horas para o serviço de urgência, o que é que estamos a dizer? Que a urgência vale metade da importância e que, numa semana, há três dias em que estão a dar consultas e a ver os seus doentes internados. O espírito de equipa hospitalar fica cada vez mais diminuído. As pessoas não se encontram. Repete-se aquilo que é péssimo na urgência: uma pessoa um dia vê um médico, no outro dia vê outro. Não há continuidade. Não é a quantidade que faz a qualidade. Esta história dos milhões [no Orçamento do Estado de 2020] é muito bonita, mas se não forem bem aplicados não vão servir de nada..Além do reforço orçamental, a ministra anunciou ainda a contratação de 8400 novos profissionais de saúde até 2021... Mais pessoas? Abriram cinco vagas para o [Hospital] Garcia de Orta e foram preenchidas zero. E isto vai continuar a acontecer, porque as pessoas têm medo..Têm medo de quê? Medo de irem para os sítios e ficarem isoladas. Se soubessem que ia para lá [para o mesmo hospital] um grupo de cinco em conjunto até poderiam escolher. Não querem ficar sozinhas. Isto vai acontecer um pouco por todo o lado, não tenho dúvidas..Já está a acontecer. A urgência do Garcia de Orta não foi a única a encerrar. Nós não podemos ter urgências com 200 a 300 pessoas. Se nós olharmos para os hospitais que têm a triagem de Manchester (o que corresponde a metade), entre janeiro e outubro do ano passado, houve um milhão e trezentas mil urgências. Os vermelhos e os laranjas (que são aqueles que de facto tinham de vir e ser atendidos rapidamente) representam 6% do total. Podemos considerar que os amarelos também deveriam ser vistos nesse dia, mas provavelmente não em contexto hospitalar, mas sim nos centros de saúde. Assim estaríamos a falar de 37% das pessoas. E o resto poderia ser visto noutro dia..Isto é uma enorme inutilidade. Se olharmos aqui para a Estefânia é a mesma coisa. As grandes urgências dos hospitais pediátricos internam 3% dos miúdos que vão às urgências. Às vezes, podemos ir aos 6% se considerarmos o SOS, que são de curta duração. E isto tem-se mantido ao longo dos anos. As urgências são um enorme consumidor de recursos, da paciência dos pais e não estão a servir para aquilo que foram feitas. Os diagnósticos devem ser feitos pelos médicos que acompanham as crianças, porque o diagnóstico não se faz à primeira, nem à segunda, tem de se acompanhar [o doente]..O Hospital do Litoral Alentejano tem um pediatra no quadro em idade de reforma e outro com um contrato de prestação de serviços, cumprindo-se o resto da escalas com clínicos gerais. Isto pode representar um risco para as crianças que são ali atendidas? Não é um problema, porque alguns clínicos gerais já têm muita preparação. Para ver estes doentes - que não têm de ser vistos no próprio dia - a preparação de alguns clínicos gerais chega e sobra. Mas o problema não é esse: porque é que os clínicos gerais não estão a fazer urgências nos centros de saúde? Cada macaco no seu galho. Isto chama-se organização dos cuidados. Não precisávamos de equipas tão grandes e durante tanto tempo. Isso implica um investimento considerável nos cuidados de saúde primários, haver mais médicos de família, horários diferenciados e alargados. Os ingleses não deixam ir esta gente toda para as urgências. Por cá, ou por incúria ou por facilitismo político, fomos deixando que as pessoas fossem onde quisessem. Em situações de crise, o sistema rebenta. E vai continuar a rebentar..Portanto, qual é a importância que devemos dar às noticias sobre as ausências nas escalas de urgência? No Garcia de Orta, em Torres Vedras, em Chaves, no Alentejo, no Algarve... Nós temos de dar muita importância a isto. Aqui há uns anos eu não acredito que nenhum diretor de serviço de urgência e nenhum conselho de administração encerrassem, de repente, o que quer que fosse. Hoje é uma prática corrente, qualquer um que não tenha recursos fecha, sem dar cavaco. Mas as pessoas não o fazem de ânimo leve ou para chamar a atenção. Fazem-no porque não podem mesmo mais. Pela mesma razão, se há uns anos alguém fizesse uma coisa destas, no dia a seguir o conselho de administração era demitido. Hoje em dia, o que faz a tutela? Nada. Deixa. Porque sabe que não tem lá os recursos de que precisa. Mas isto não se resolve injetando pessoas, nem aumentando a oferta. Resolve-se restringindo a procura e redistribuindo-a..Isso quer dizer que não há falta de pediatras? Nunca houve tantos pediatras como agora, porque nunca houve tanta formação de pediatras. Simplesmente esses pediatras estão dispersos. Há os que já não fazem urgências, há os que trabalham nos hospitais privados e depois há sítios onde de facto faltam pediatras, que é no interior do país. Aí é realmente uma desgraça. E há sítios onde não se percebe bem o que se passa, como no Algarve. Supostamente teria todas as condições para ser atrativo, mas não é. Querem médicos no Algarve, querem professores, arranjem-lhes condições de alojamento e paguem-lhes para isso..No Dona Estefânia, em dezembro de 2018, houve uma ameaça de demissão coletiva dos chefes de equipa, por falta de profissionais. Mudou alguma coisa? Nós funcionamos aqui como uma espécie de último reduto. É um hospital pediátrico muito especializado, temos três unidades de cuidados intensivos, duas neonatais, o centro das doenças infecciosas e epidemiológicas. São casos graves, nós precisamos de nos virar muito para dentro e estamos a virar-nos muito para fora, com as urgências falsas. Temos de investir na literacia para resolver esta dependência das urgências. Nós sabemos como é a nossa população: acha que qualquer espirro esconde uma pneumonia ou um tumor. Temos de aumentar a literacia dos pais, provavelmente muitos dos casos nem precisam de ir aos cuidados de saúde primários. Claro que isto tem de ter algum suporte, ter algum contacto com um médico assistente por telefone, por e-mail..Combater as urgências sobrelotadas com literacia.A educação para a saúde na escola pode ter um papel decisivo? Devíamos começar na escola. A mudança na população tabágica em Portugal deu-se sobretudo de filhos para país. Os filhos foram dizer aos pais que não deviam fumar, porque houve uma série de campanhas nas escolas. Mas tem de haver outras medidas, porque nós ainda temos uma escolaridade baixa. Temos também um número de estrangeiros muito alto, que na maioria das vezes têm pouco apoio na comunidade e procuram muito a urgência. Para melhorar a saúde das crianças, é preciso mudar mentalidades, literacias, mas também condições laborais e condições nas creches. Nós vivemos numa sociedade em que os pais passam cada vez menos tempo com os filhos, porque estão a trabalhar e têm de os deixar nas creches. Passam 10 a 12 horas nas creches. E a maior parte dos estudos feitos mostram que, mesmo as oficiais, têm más condições de ventilação, crianças a mais para o espaço. O que é que lhes acontece? A doença..A ideia que apresentou há uns anos para a criação de um Observatório da Criança chegou a ter algum efeito prático? Não. O nosso mal também é termos alguns dados que nos faltam. Os dados estão a ser recolhidos pelas SPMS [Serviços Partilhados do Ministério da Saúde], mas depois não são divulgados. Era importante ter uma estrutura formal, como o tal observatório, onde esses dados fossem entregues e tratados. Nós não sabemos qual é a idade média dos rapazes e das raparigas no fim da adolescência, não sabemos qual é a idade média do aparecimento da primeira menstruação às raparigas e isso é muito importante, porque a partir desse momento estão em idade fértil. Não sabemos o número de cáries dentárias. Estes números estão escondidos. Há coisas que têm de mudar, mas isso só é possível com transparência..Como é que olha para o futuro da pediatria, em Portugal? Os políticos e os jornalistas falam muito em equipas multidisciplinares, mas se já é difícil contratar um médico e um enfermeiro, é impossível contratar um técnico de saúde. As finanças são completamente surdas quanto aos pedidos de contratos de psicólogos, terapeutas da fala, técnicos de imagiologia. É uma luta, é um cansaço. Vamos deixar o terreno muito armadilhado para quem vier, porque não vamos ter nem dinheiro, nem organização, nem pessoas para chegar às duas frentes dentro dos hospitais: as urgências indiscriminadas e os internamentos. Como o que faz as pessoas iradas é a resposta das urgências, as fichas estão todas as ser colocadas neste imediatismo. Os políticos têm tendência a ser imediatistas, mas os estadistas veem para além dos ciclos políticos. Estou convencido de que nós vamos perder parte destes bons indicadores que já conseguimos alcançar [mortalidade infantil, materna...] e vai ser muito difícil recuperá-los, porque o comboio não passa duas vezes. E só à custa dos nossos recursos vai ser muito difícil, porque o entusiasmo foi-se.."As pessoas com amor à arte começaram a não querer fazer bancos".De onde vinha esse entusiasmo? De uma geração que tinha muita vontade de contribuir para a sociedade, mas as gerações mudaram. Esta é mais individualista. Não é uma critica, é o que acontece. A nova geração preocupa-se muito com a sua vida e com a da sua família, enquanto a minha geração descurava um pouco até a família por causa da profissão. Ao mesmo tempo, a troika expôs a fragilidade do sistema. Os profissionais de saúde foram obrigados, no caso dos enfermeiros, a trabalhar mais e a ganhar menos, e no caso dos médicos, a ganhar menos por via das horas extraordinárias e começaram a ter mais impostos. As pessoas com uma determinada idade e com amor à arte e aos doentes começaram a não querer fazer bancos. E cada vez vai haver menos vontade..Passaram 30 anos desde que terminou o internato, não foi? Sim. Acabei o curso em 1980 e acabei o internato em 1990, aqui [no Hospital Dona Estefânia]..E por cá ficou? Tive aqui durante algum tempo e até fiz um concurso para o lugar de assistente do quadro na unidade de gastrologia. Depois fui para o serviço de pediatria do Hospital Amadora-Sintra, quando abriu. A professora Maria do Céu Machado convidou-me para ser o responsável da ala de pediatria. Muito trabalho, muita urgência, rapidamente se tornou o segundo hospital com mais urgências na região de Lisboa e foram anos de grande aprendizagem. Saí [da Estefânia] em 1996 e voltei em 2003. Fui convidado para voltar e chefiar o serviço de pediatria. E por aqui tenho estado... até mudar..Vai mudar de hospital? É para ver se me convidam (risos). Estou a brincar. Não nos podemos eternizar nas posições e devemos partir para outras aventuras. Provavelmente, a minha próxima aventura será a reforma..Está a planear a reforma para breve? Falta mais [tempo] do que eu queria. Ainda me faltam três anos, mas tal como as coisas estão não vejo a reforma como uma coisa má. Vejo-a como uma oportunidade de ir fazer outras coisas. Se houvesse outras condições e outro tipo de estrutura, poderia pensar em ficar até ao fim da idade legal [70 anos], mas também é mau uma pessoa eternizar-se. Há sempre gente que pode e deve substituir-nos, com vantagens, e por isso é preciso preparar o terreno..E o terreno está preparado? Está sempre preparado. Se me acontecesse alguma coisa hoje haveria alguém que faria isto amanhã melhor do que eu. De imprescindíveis está o cemitério cheio, como dizia o outro. Mas claro que o terreno da saúde em Portugal é um terreno duro, com pouca fertilidade.