Novo romance de Ian McEwan em modo Brexit

Os Beatles regressam, robôs fazem sexo, Alan Turing está ativo e Thatcher perde as Falkland. Quatro entre vários episódios de muitas "avarias cronológicas" com que Ian McEwan seduz os leitores em <em>Máquinas Como Eu</em>.
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A dado momento, Adão revela que foi comprar dois fatos, três camisas e dois pares de sapatos. É a resposta que dá a Charlie, que notou a sua mudança de estilo. Adão justifica, "estava farto de usar as tuas calças velhas" e outras peças de vestuário emprestadas. Já o leitor vai a dois terços do novo romance de Ian McEwan quando chega a esta parte e pouco mais o espantaria em Máquinas como Eu, a história de um inglês que investe todas as suas economias na compra de um robô avançado em plena década de 80 do século passado.

Não é a primeira vez que McEwan investe em temas de atualidade, deixando de lado histórias de intimidade em que é perito, enquadradas em enredos muito particulares, como fez em A Praia de Chesil, ao explorar questões que estão na agenda como a das alterações climáticas em Solar. Agora, insiste em ir mais longe na surpresa que um romance deve provocar e ataca um dos mais preocupantes temas da atualidade: o da inteligência artificial. Mas é preciso dizer que, apesar de ser uma leitura muito sedutora, não se torna um romance distinto do que se está a produzir por aí, nem faz que McEwan deixe de ser previsível; é mais uma espécie de Brexit literário, hesitante entre manter-se ou sair da zona de conforto criativo do autor.

A capa do romance com um rosto de homem - depois percebe-se que é um produto artificial - não indicia logo o (des)enlace literário a que Ian McEwan se propôs durante os vários meses de escrita de Máquinas como Eu. Onde irá manipular a história como nunca e de uma forma que faz entender o quanto o leitor menos especializado ou culto pode ser enganado pela imensa informação disponibilizada pela internet.

A ação do romance decorre nos anos 1980, quando a tecnologia é capaz de pôr à venda 25 seres mecânicos - com os nomes Adão e Eva - e o protagonista é um dos felizes contemplados com uma dessas máquinas. Um robô masculino, porque não chega a tempo de adquirir um de outro sexo. O narrador começa por afirmar que o momento da aquisição da máquina é "a concretização de um mito da criação" ou "o Santo Graal da ciência" e define-se como "um apoiante precoce e ávido desse alvorecer" tecnológico.

A partir desse início da narrativa em que o comprador do robô é obrigado a ler 400 páginas de um enfadonho manual de instruções e a programar a personalidade da criatura, vão surgindo as manipulações históricas a par da descoberta das potencialidades de um companheiro artificial. McEwan fá-lo de uma maneira sub-reptícia...

Chega a página em que o seu herói escuta o novo disco dos Beatles, banda que voltou a reunir-se após doze anos de separação com um disco intitulado Love and Lemons. Não é por acaso que o faz, pois a banda de John, Paul, George e Ringo demonstra como o revivalismo é um erro e que os músicos serão incapazes de domar as forças da natureza musical ao fazerem-se acompanhar de uma orquestra sinfónica com 80 elementos depois de um sucesso no tempo certo.

Chega a página em que recupera Alan Turing, o grande iniciador da inteligência artificial e a quem se deve a possibilidade de sonhar com o robô Adão. Então, o leitor convive com o cientista, enformado numa outra existência além da de putativo condenado publicamente pela sua homossexualidade, e o protagonista reúne-se com ele para se demonstrar a complexidade dessa tecnologia.

Chega a página em que altera a história da ocupação das ilhas Falkland pela Argentina e que as forças militares britânicas partem para a América do Sul. McEwan recupera a figura de Margaret Thatcher e a sua decisão de recuperar as agora Malvinas, enviando uma frota para o efeito. Ao contrário do que foi a realidade, os argentinos provocam uma vergonhosa derrota militar aos britânicos.

Chega a página em que o robô é utilizado pela namorada do protagonista para a sua própria satisfação sexual, transfigurando-o no "primeiro cornudo" da tecnologia - um lado pouco explorado - e dando argumentos aos piores receios de que a inteligência artificial irá alterar a sociedade de uma forma que ainda não se pode imaginar e, principalmente, que os seres artificiais utilizarão a inteligência bem diferente da que milénios de civilização deu à humanidade.

Chegam as páginas em que Ian McEwan perturba o leitor com os piores receios quanto à concorrência das máquinas - o que é trivial nesta temática -, mesmo que teime em dar-lhes um mínimo de características positivas e a possibilidade de serem úteis. Tanto que a Londres do livro está ocupada por máquinas, como as que substituem os funcionários da limpeza em greve.

Avariar a cronologia

É neste ângulo de sensibilização para o novo cenário que a inteligência artificial criará no planeta que McEwan aposta bastante. Percebe-se que terá sido uma investigação grandiosa para escrever este romance, porque elabora e refere muitos pensamentos sobre as premissas da inteligência artificial que devem servir aos leigos como aviso e porta de entrada neste assunto. Talvez o pensamento científico mais ousado que Ian McEwan põe nas páginas esteja na 187, quando da conversa de Charlie com Turing, em que surge um prognóstico do cientista: "Tínhamos aprendido que era um erro tentar imitar servilmente a inteligência humana. Portanto, há mais do que uma inteligência." Esta avaliação confirma que o autor estudou o assunto, até porque a pré-história tecnológica em que o cientista viveu - apesar da sua impressionante visão antecipadora - ainda estava longe de certos problemas que o futuro trará.

Por outro lado, o facto de Ian McEwan avariar a verdadeira cronologia dos acontecimentos é um dos pontos altos do romance ao trazer de volta John Lennon (1940-1980), ao pôr em ação Alan Turing (1912-1954) ou ao expor a governação de Margaret Thatcher (1923-2013), referir o interesse de um grupo político extremista em fazer o Reino Unido sair da União Europeia...

Máquinas mais interessantes

Este regresso de Ian McEwan está a ser aplaudido pela crítica, principalmente após um último romance em que a unanimidade foi mais negativa do que positiva. Em Numa Casca de Noz havia a intenção de fazer uma comédia inspirada num momento shakespeariano, mas o resultado final era mais burlesco e um tiro ao lado de coisa nenhuma. Daí que a opinião internacional especializada ficasse muito agradada com Máquinas como Eu. Os seus compatriotas disseram que desde Amesterdão não se lia algo tão bom ao que o autor acostumou os leitores, destacando a característica de um humor constante. Os norte-americanos consideram que McEwan está mais cerebral neste livro e que é capaz de manter o leitor numa zona de desconforto. A mais acutilante e certeira, no entanto, é a que afirma que neste romance a personagem mais interessante é o robô e não o casal humano. Juízo que decerto agradará aos fãs de um futuro cada vez mais próximo, quando as máquinas se tornarem mais interessantes do que esta humanidade robotizada.

Máquinas Como eu

Ian McEwan

Editora Gradiva

319 páginas

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