Nova Lei de Bases da Saúde em risco de ficar na gaveta

Parlamento. Sem qualquer entendimento quanto à possibilidade de gestão privada de unidades do Serviço Nacional de Saúde - recusada por Bloco de Esquerda e PCP -, o PS já admite o chumbo da lei de bases para o setor. Partidos ainda não voltaram à mesa das negociações e não admitem mais recuos.
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De polémica em polémica até ao impasse final: a Lei de Bases da Saúde, um dos diplomas mais emblemáticos da geringonça neste final da legislatura, arrisca-se a ficar pelo caminho. E isto numa altura em que praticamente todo o diploma está aprovado. Mas, com o maior obstáculo guardado para a reta final, a nova lei pode não chegar a sair do papel.

Quatro dias passados sobre o terceiro adiamento das votações da já famosa base 18 (as parcerias público-privadas na saúde), os três partidos da esquerda não mudaram um milímetro as suas posições e não voltaram às negociações. Pelo meio, Carlos César pôs em cima da mesa o cenário de um chumbo da lei remetendo-a, nessa circunstância, para o pós-eleições legislativas. "Voltaremos a insistir na próxima legislatura se esta lei não for aprovada. E voltaremos a insistir depois de pedir aos portugueses mais força para o PS conseguir fazer aprovar leis como esta", afirmou o líder parlamentar socialista aos microfones da TSF. E, frente a frente com o vice-presidente do PSD David Justino, no programa Almoços Grátis, chamou os sociais-democratas ao diálogo: "Esta lei é compaginável com o que o PSD pode pensar sobre estes temas." César disse também que o PS "não dirá agora nim, para depois dizer não ou sim" - "A nossa posição é clara: a iniciativa privada tem lugar no sistema de saúde".

Com a lei quase integralmente aprovada pelos partidos da esquerda (em votação indiciária, que tem de ser depois confirmada em comissão e depois em votação final global), a possibilidade de gestão privada das unidades do Serviço Nacional de Saúde transformou-se num muro até agora intransponível. Mesmo depois das tentativas de aproximação que marcaram o início da semana - o Bloco admitiu retirar as parcerias público-privadas da lei de bases, revogando a legislação atual sobre as PPP, mas remetendo a definição de um novo regime para a próxima legislatura. Na segunda-feira também o PCP apresentou uma proposta ao governo, propondo a gestão pública do SNS, também a revogação da lei que criou as PPP e a criação de um regime transitório para que as atuais se mantenham até ao seu término e admitindo a contratualização com o setor privado ou social se o Estado não tiver capacidade imediata de resposta em algumas áreas. Mais longe que isto o PCP não vai. "Não abdicamos do primado da gestão pública do SNS. Não é uma questão menor, não é um impasse por birra, é um impasse da responsabilidade do PS e do governo que não abandonam as opções políticas que levaram à manutenção das PPP", diz ao DN a deputada comunista Carla Cruz.

No BE também é ponto assente que o partido já foi até onde poderia ir - os bloquistas receberam, aliás, com incredulidade a proposta que o PS avançou na última terça-feira e que acrescentou ao artigo das PPP que estas só poderão existir em "situações excecionais" (a versão anterior já colocava as PPP como uma solução "supletiva e temporária"). Em comunicado, Carlos César chamou-lhe um esforço de convergência. Moisés Ferreira, deputado do BE, chamou-lhe um exemplo da "inflexibilidade" dos socialistas.

Não havendo acordo à esquerda, o PS não encontrará - nesta legislatura - um aliado no PSD. "Esse não é um problema que se ponha agora", diz ao DN David Justino. "O PS nunca tomou qualquer posição de articulação connosco, não estou a ver que haja condições para fazer isso agora", sublinha o vice-presidente social-democrata, sublinhando que a Lei de Bases da Saúde "não é só um artigo" - "esta é uma reforma de interesse nacional, há outros aspetos que podem ser melhorados". Ou seja, o PSD até admite que a lei é negociável, mas não no contexto atual. Do CDS não haverá qualquer apoio: "Temos uma lei que é uma manta de retalhos, omissa em áreas relevantes e sem visão de modernidade, com erros graves. Não terá o nosso apoio", garante a deputada Isabel Galriça Neto.

Polémica desde início

Os desentendimentos em torno da nova lei de enquadramento para a Saúde não são de agora. A lei de bases foi pela primeira vez a debate no Parlamento em junho do ano passado, pela mão do BE, que transformou em projeto de lei as propostas elaboradas por António Arnaut e João Semedo. Sob a ameaça de chumbo do PS, que então aguardava a proposta de uma comissão de revisão da atual lei de bases, liderada pela ex-ministra da Saúde Maria de Belém Roseira, o BE não levou o projeto a votos. A proposta do governo haveria de ser aprovada em Conselho de Ministros já em dezembro, mas bastante alterada face ao texto proposto pelo grupo de trabalho - o que, aliás, motivou duras críticas de Maria de Belém. Em janeiro deste ano foram a debate a proposta do governo, bem como as do PSD, CDS e PCP.

Os recados de Marcelo

No mesmo mês, em entrevista à agência Lusa, por ocasião do terceiro aniversário sobre a sua eleição, Marcelo Rebelo de Sousa recusou uma lei "fixista" e avisou que, nesta matéria, não deveria haver "grande clivagem entre PS e PSD", para que o resultado seja uma lei "passível de durar para além de um governo". As palavras do Presidente provocaram uma onda de críticas à esquerda, com o PS a admitir reconfirmar o diploma no Parlamento caso fosse vetado por Belém.

Já em abril, o semanário Expresso noticiava que o Presidente vetaria o diploma caso este fechasse totalmente a porta à gestão privada no SNS, um cenário apontado em Belém como "absurdo". Quatro dias depois, Marcelo disse-o de viva voz no programa O Outro Lado, da RTP3: "Uma lei que feche totalmente essa hipótese é uma lei irrealista." Marcelo até apontou soluções: "Mais qualificativo, menos qualificativo - a título complementar, a título supletivo, em circunstâncias excecionais, proporcionalmente - ter uma válvula de escape é uma questão de sensatez."

Uma lei controversa entre socialistas

Os impasses e braços de ferro que têm marcado o processo legislativo da Lei de Bases da Saúde não são um exclusivo das negociações entre o PS e a esquerda - já por diversas vezes este processo deixou a descoberto as divisões entre os próprios socialistas, que já defenderam a manutenção da gestão privada, a proibição da gestão privada e, novamente, a continuação das PPP. No final de abril o BE chegou a anunciar um acordo com o governo que punha fim às parcerias público-privadas, mas acabou desmentido pelo Executivo, que veio dizer que o texto a que se referiam os bloquistas não era mais do que um "documento de trabalho". O BE insistiu, pela voz de Catarina Martins, que tinha em mãos uma proposta que punha fim às PPP. Só que, dias depois, a bancada do PS entregou novas propostas que repunham a possibilidade, ainda que condicionada, de gestão privada no SNS. Pelo meio, o braço-de-ferro foi entre os próprios socialistas, com o grupo parlamentar a fazer recuar a proposta que acabava com as PPP e que chegara aos partidos da esquerda a partir do gabinete da ministra da Saúde. Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, admitiu as divergências: "Existiram várias versões de trabalho, algumas delas não foram consensuais dentro do governo e do PS e foi comunicado, nomeadamente aos parceiros, que essas posições tinham sido alteradas."

O embate entre bloquistas e PS

O episódio pôs a Lei de Bases da Saúde com entrada direta na já longa lista de desentendimentos entre socialistas e bloquistas nesta legislatura. Catarina Martins disse que o Bloco estava "chocado" com o volte-face dos socialistas. Dias depois foi a vez de Ana Catarina Mendes, secretária-geral adjunta do PS, dizer ao Expresso que estava chocada, mas era com a divulgação pública dos documentos. Pelo meio, António Costa tentou pôr água na fervura num debate quinzenal de alta tensão. Nada feito. Para o BE, sem a proibição das PPP a lei "fica igual ao que a direita sempre defendeu" - e não terá o voto do Bloco. Também o PCP, pela voz de Jerónimo de Sousa, classificou a proposta socialista como inaceitável e uma "surpresa" numa altura em que as negociações até davam "resultados positivos".

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