O leitor poderá encontrar descrições do novo Lars von Trier, Antichrist (a concurso em Cannes), recheadas de detalhes mais ou menos escabrosos e, como as televisões gostam de dizer, "polémicos". Da degradação do espaço conjugal até momentos brutais de Sadomasoquismo, o catálogo de possibilidades é vasto. Não que eu queira simplificar: Antichrist é mesmo um filme perturbante e irá, inevitavelmente, dividir os espectadores. Mas conviria não o bloquear no ruído gratuito com que, tantas vezes, passou a ser tratado o cinema..Em boa verdade, Antichrist parte de uma desarmante sinceridade : num mundo virtual em que a exposição dos factos passou a ser regida pela obscenidade global da Internet (reforçada por muitos estilos de informação televisiva), acusar Lars von Trier de produzir "imagens eventualmente chocantes" será um triste cinismo. De facto, a sua estratégia criativa não é alheia ao desespero de autores dos limites humanos como William S. Burroughs, na literatura, ou Francis Bacon, na pintura..Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe, o casal de Antichrist, vive uma experiência de luto (do filho) que não pode ser descrita por nenhum padrão realista. Von Trier coloca-se deliberadamente no domínio da fábula, aí onde os elementos naturais (incluindo alguns espantosos animais que povoam o filme) surgem como construções simbólicas de um mundo primitivo. E primitivo, não apenas porque tudo se passa num lugar de nome Eden, mas também porque homem e mulher são herdeiros angustiados do historial de Adão e Eva e, em particular, da continuada rebeldia do feminino. Se nada mais houvesse, Cannes 2009 ficaria na história por causa deste filme.