Do outro lado do Canal da Mancha, não é apenas o Partido Conservador que está a implodir ou o governo da sra. Truss que está de saída, 44 dias depois de ter chegado. Se olharmos com atenção, o que se passa no Reino Unido corresponde à última página da vida do sistema político britânico como o conhecemos desde o início do século anterior. Venha o sr. Sunak ou regresse o sr. Johnson, as sondagens não mentem: 12 anos depois, Inglaterra quer ser novamente governada pelo Partido Trabalhista. A essa certeza junta-se a probabilidade de antecipar as eleições - agendadas para janeiro de 2025, mas inevitáveis após a soma de descalabros tory ‒, que o eventual comeback de Boris só reforçará..O ex-primeiro-ministro, alvo de um inquérito parlamentar em curso por ter mentido à Câmara dos Comuns, passou o dia de ontem a recolher apoios e a garantir que já tem as 100 assinaturas de deputados necessárias para ser candidato à liderança e voltar a Downing Street. Curiosamente, não as mostra, o que levanta duas hipóteses: ou não as tem (o que dada a sua recente saída e tendência para a inverdade, não surpreenderia) ou tem mas não as mostra, porque muitos dos MP"s que pedem o seu regresso são os mesmos que pediram a sua saída há quatro meses. Os 12 longos anos de poder conservador na Grã-Bretanha fazem com que os tories não consigam fazer política - nem políticas, já agora - sem caírem na deslealdade a figuras (que apoiaram e desapoiaram) e a ideias (que defenderam e contrariaram). Isso sente-se, diariamente, da contagem de apoios à sucessão de Truss até às votações de leis do Ambiente. É um partido exausto: de governar e de si próprio..Além da incoerência a que a crise tem forçado todos os que governam (vejam o contraste entre o PS que fez campanha em janeiro e PS que apresentou o seu Orçamento em outubro), os Conservadores sofrem a incoerência de quem governa há demasiado tempo, com linhas ideológicas muitas vezes antagónicas. A fratura no partido tory, com menos de 20% em sondagem e uma notória incapacidade de consenso interno, faz de Keir Starmer, hoje líder da oposição, o próximo primeiro-ministro do Reino Unido. Mas será muito mais do que isso - e esse é o ponto deste texto..Com a obliteração política dos conservadores, a futura supremacia parlamentar labour permitirá a Starmer implementar reformas constitucionais que alterarão profundamente a estrutura do sistema político britânico. No congresso de setembro, os trabalhistas aprovaram uma proposta de reforma do sistema eleitoral para uma representação mais proporcional, menos maioritária. Gordon Brown, ex-primeiro-ministro, está a coordenar o paper do partido para uma revisão constitucional que inclui uma assembleia das várias nações e regiões do Reino Unido e que pondera abolir a Câmara dos Lordes..O importante no insucesso de Liz Truss não é tanto o que o provocou - uma escandalosa incompetência -, mas o que ele provocará. Três bandeiras tradicionalmente propriedade dos conservadores (o unionismo, a boa gestão económica e o reformismo) estão, neste momento, na mão dos trabalhistas. E o futuro do Reino Unido também..Mais interessante do que paralelismos simplistas entre a sra. Truss e os nossos liberais, é isso que nos deveria fazer pensar por cá. Que metamorfoses nas propostas dos vários partidos suscitará esta crise? Qual o papel dos que antes defendiam a redução do Estado num tempo em que ele está a ser empoderado um pouco por todas as sociedades livres? Que ideias têm os que confirmam a urgência de reforçar os serviços públicos, além de aumentar um esforço fiscal já gigantesco? No que resultará essa modificação de pensamento nos equilíbrios do nosso sistema partidário?.Seria um erro julgar que a realidade política seguirá imune a uma mutação tão significativa. Quando os problemas e as soluções se transformam, os seus protagonistas também mudam..E nós também atravessaremos esse Canal..Falta saber com quem.. Colunista