"Nos carrascos existe humanidade, não é só nas vítimas"
Quando se pergunta ao escritor Itamar Vieira Junior o quanto está a ser difícil passar discreto com o sucesso de Torto Arado no Brasil, o geógrafo nascido na Bahia ri-se com vontade e começa por dizer «Essa pergunta é bem oportuna...» Em seguida, em tom mais sério, concretiza: "A minha vida mudou radicalmente por conta do percurso que o livro fez. Começou tudo em Portugal, com o Prémio Leya, em seguida o livro foi muito bem acolhido no Brasil. Não foi um sucesso imediato, mas foi encontrando leitores aos poucos e depois ao ser mais notado com os prémios Oceanos e Jabuti, as pessoas repararam mais nele." Tanto assim que já chegou à marca inimaginável de 300 mil exemplares vendidos, situação que trouxe grandes mudanças na vida do autor: "Agora, ando na rua e sou reconhecido e são muitos os convites para entrevistas e colaborações que nunca imaginei fazer. Ainda estou a absorver tudo isso.»
É impossível não reconhecer que a literatura brasileira parece ter sido refundada a partir deste romance. Itamar Vieira Junior hesita: "Será?" Acrescenta: "Observo o que se passa, leio os artigos e o que os leitores dizem, e o que tenho visto é que o livro despertou interesse por uma literatura feita mais à margem no país, de regiões diferentes das que são as do Rio de Janeiro e São Paulo, os grandes centros nacionais." No fim, apenas diz: "Acho bom que o livro tenha provocado tudo isso." Vender tantos milhares de exemplares é coisa rara no Brasil e o escritor tem noção do feito: "É difícil, principalmente se o livro é literatura mesmo." Já apurou que nos últimos anos não houve notícia de que isso acontecesse no género da ficção e que o único caso foi o de outro baiano: "Só João Ubaldo Ribeiro, com o A Casa dos Budas Ditosos, teve tantas edições." No entanto, lembre-se, esse sucesso necessitou de vinte anos para chegar a um número semelhante e em tão curto tempo não há memória de situações que se aproximam a não ser com Chico Buarque - que não é da "periferia", como refere.
Como é lidar com as expetativas dos leitores - a crítica tem sido muito simpática com os dois volumes - agora que publica um segundo livro era a grande dúvida: "Cada livro faz um percurso diferente e tento não deixar que isso altere a minha vontade de escrever o que considero como vocação. O que me move na literatura é estar à margem do sucesso público e de crítica e fazer sempre o que é importante para mim enquanto ser humano e artista. Prefiro manter uma certa autonomia em relação a tudo o que está a acontecer e seguir a minha trajetória pelo que mais me atrai: a verdadeira literatura." De qualquer modo, o novo livro já superou os 60 mil exemplares vendidos no Brasil e foi lançado há menos de um ano.
O novo livro, Doramar ou a Odisseia, transformou-se num teste ao seu percurso de um só livro. Foi mais difícil esse confronto para o escritor?
Acho que de certa forma, por não ser um romance e sim narrativas curtas, a receção foi muito boa. Ou seja, Doramar ou a Odisseia tem encontrado leitores e eles têm gostado. Estes textos mais curtos deram-me uma liberdade para experimentar outras formas de narrar e, o que num romance se pode esgotar e tornar o texto pesado, nestas histórias sinto essa liberdade de contar de uma outra maneira, que também me possibilita outras formas de me aproximar do leitor. Só posso dizer que a receção foi muito melhor do que eu esperava.
Insisto, uma situação era o Torto Arado e outra é o Doramar. Os leitores superaram as suas próprias expetativas?
Creio que fica meio a meio. Há aqueles que percebem nestes textos algo muito pessoal e próprio enquanto projeto literário do autor, há outros que gostariam de ver essas histórias mais estendidas. Como foi a experiência anterior de um romance que permite pela extensão uma imersão muito maior. No entanto, acho que os leitores não se dividiram, pois quem aprecia literatura encontra nesta coletânea um conteúdo que não foge ao que foi escrito e descrito no Torto Arado.
Ao distanciar-se do papel do tradicional escritor brasileiro contemporâneo provocou um terramoto de vendas. Qual o significado deste ritual de passagem para um autor desconhecido até há três anos?
Eu não sou capaz de fazer uma comparação porque, embora já tivesse publicado dois livros antes, eles eram um trabalho artesanal como o que muitos autores fazem. Autores que depois não veem o seu livro circular entre os leitores ou encontrar uma grande editora que os possa divulgar. Pensando nesse tempo, o que vejo é que era um amador... o percurso que estes dois livros estão agora a fazer obrigaram-me a pensar na escrita além da vocação e da paixão e deram a possibilidade de me sentir como alguém que pode ser um autor profissional e com a possibilidade de realizar um projeto literário que é um projeto de vida e uma carreira. É dessa a forma que a receção aos livros se repercute em mim, fazendo sentir o peso que resulta de estarem a encontrar público, de como estão a percorrer o mundo, afinal Torto Arado já tem traduções contratadas para mais de vinte países.
Ou seja, perdeu o direito à sua vida anterior.
Essa, de facto, acabou. Perdi uma parte do que é passar pela vida de forma anónima e tudo o que faço hoje tem um certo peso. Por exemplo, fiz uma coisa despretensiosa no começo do ano enquanto lia a biografia do ex-Presidente Lula e coloquei um post nas redes sociais que ganhou uma dimensão tão grande que chegou à imprensa e tornou-se notícia. Isso não aconteceria se não tivesse havido o livro e os prémios que vieram. Agora, o que faço tem sempre uma certa relevância e a que as pessoas dão importância, o que não é de todo bom - posso garantir. Ter uma vida anónima é algo que não se deve perder.
Lembro-me de ver a foto de Lula com Torto Arado entre mãos e a legenda "Estou lendo". Foi a confirmação de que os políticos não quiseram ficar de fora?
É verdade e até um outro ex-presidente, Michel Temer, que está noutro campo político, também recomendou esse livro. O que mostra que o romance não dialoga só com uma parte da sociedade e, de alguma forma, furou essa bolha e comunica-se com leitores de diversos espectros da política e do pensamento. Isso foi inesperado.
Essa receção criou alguma rivalidade com os autores que foram ultrapassados pelo fenómeno?
Eu sempre sou grato a todos os autores que me ensinaram e tenho percebido que a maioria lidou comigo de maneira afetuosa. Isso aconteceu em Portugal, onde iniciantes e veteranos foram muito simpáticos; no Brasil, como vivo numa região que historicamente faz parte da periferia, isso pode incomodar alguns autores que já estão nessa estrada há bastante tempo e ainda não conseguiram esse lugar. Mas, de uma forma abrangente, sinto-me bem acolhido por todos. Recebi carinho de pessoas muito importantes para mim, como do Milton Hatoum, um autor que é uma grande referência minha e acolheu os livros de uma maneira tão afetuosa que permitiu ultrapassar as diferenças e ver que estamos no mesmo lugar.
O Torto Arado abriu um caminho literário. Já existem seguidores deste registo?
Tenho lido a respeito disso e acho que à exceção de Chico Buarque, Torto Arado foi o primeiro livro em muitos anos no Brasil que começou a figurar nas listas de best-sellers do jornal O Globo e da revista Veja. Nas últimas semanas, tenho percebido o interesse por outros autores brasileiros, como a Carla Madeira e o Jefferson Tenório, ou seja, passaram a integrar essas tabelas também. Creio que o livro despertou um interesse maior pelo que é escrito no país. Torto Arado está ao lado de livros como Orwell, o que mostra que despertou o interesse das pessoas pela nossa literatura contemporânea.
Não há imitadores do estilo?
Não tenho visto nada muito semelhante, mas se isso acontecesse iria ficar muito honrado. Se as pessoas vislumbrarem naquela história algo a ser seguido não me importarei nada.
Recupera alguns contos anteriormente publicados em A Oração do Carrasco (2017). Foi preciso reinventar-se ou o registo já estava estabelecido?
Eu gosto da ideia de ter a capacidade de me transformar e tenho isso sempre em mente. Escrevi o romance num dado momento e aquela história era muito verdadeira em mim, por isso persegui aquele caminho. Em relação a Doramar, há histórias escritas antes e depois do romance, mas costumo pensar cada texto como independente do livro anterior e como preciso sempre de chegar ao âmago do que me interessa sei que cada livro vai chegar ao fim à sua maneira, contando as suas próprias histórias. Cabe-me ter a sensibilidade para entender como é que cada história deve ser contada.
O próximo livro manterá este registo ou haverá uma mudança?
Já estou a trabalhar nessa história e está em boa parte escrita. Sinto que é diferente, embora tenha a ver sobre essa relação de homens e mulheres com a terra, tão brutal como é a desse Brasil agrário. São outros personagens, que vivem trajetórias em nada iguais às anteriores, mas que se complementam. São histórias que divergem e eu gosto assim, até porque quando se começa a escrever um livro não se tem uma ideia do caminho que ele irá seguir, só à medida que se vai avançando é que cada história faz a sua escolha muito própria. E esse caminho não é o autor que decide mas sim a própria história que o vai apontando, que diz por onde se deve ir para chegar ao lugar pretendido.
Uma das principais linhas de Torto Arado mantém-se em Doramar: a do branco vencedor e que impõe as regras. Isso não muda?
Essa é uma situação que está por resolver no Brasil. A história das pessoas negras são bastante distintas em África, na Europa ou na América, e a nossa história tanto foi forjada pela diáspora africana como tem um sentimento muito diferente do que foi vivido no próprio continente africano. O peso das relações coloniais criou um legado brutal, uma herança que no ano do bicentenário da independência do país ainda existe porque o Brasil não soube resolver essas desigualdades. Que são muito marcadas pela questão racial e por uma sociedade que foi ao longo do tempo racializada por inúmeros processos que ficaram muito claros na maneira que se vive ainda hoje no que respeita à vulnerabilidade das pessoas negras. Como ainda são alvo do Estado ou da polícia, por exemplo. Se me perguntarem se essa história nunca mudará, respondo que está a alterar-se e, nos últimos tempos, de uma forma bastante rápida, mas ainda há muito por fazer. Se é impossível resolver numa década os problemas com tanto tempo eu digo não, mas as pessoas estão mais dispostas a olhar para o passado e para as feridas e pensar num país com uma sociedade nova. E a literatura tem esse poder maravilhoso, até costumo dizer que a minha religião é a literatura, porque é nela que tenho fé. Um leitor - viva em que país for, seja um homem branco - é colocado num outro lugar e na pele da personagem e vive tudo o que ela está a viver, seja o racismo sobre a pessoa negra, sobre o indígena, ou sobre muitas outras pessoas que são também vulneráveis.
Num artigo recentemente publicado no New York Times é descrito com um dos "escritores negros" de sucesso. Revê-se nessa paleta de cor ou os norte-americanos seriam incapazes de o classificar desse modo se fosse descendente afro-americano e vivesse nos Estados Unidos?
Eu penso que como é um artigo escrito por um jornalista americano isso tem um peso muito forte, mas no contexto essa referência faz toda a diferença que seja utilizado dessa forma. Eles perceberam que num país estruturalmente racista como o Brasil, é notável que autores com origens negras estejam a fazer este percurso de sucesso. Como a Djamila Ribeiro, não na área de ficção mas na do ensaio e da filosofia, que também se tornou best-seller nos últimos anos. Essa perceção é algo novo, porque se pensarmos nos escritores negros brasileiros, eles foram historicamente deixados à margem, mesmo tendo a envergadura de Lima Barreto ou Machado de Assis, que sofreram durante muito tempo esse apagamento por conta das suas origens. Perceber essas mudanças é importante, tal como ver que o país tem mudado e as pessoas discutido e problematizado as origens da população no espectro dos negros e pardos, em que me incluo. Até porque não nos vemos mais como uma minoria e sim como um segmento grande da sociedade e a pergunta é porque não o ocupamos. É dessa forma que vejo o artigo no New York Times, fala para estes contextos, daí que não me afete de forma nenhuma. Talvez daqui a 20 anos - estou a ser muito otimista - isso possa acontecer, mas em todo este processo de reafirmação e redução das desigualdades hoje é importante falar assim.
O romance Torto Arado está a ser traduzido em várias línguas. Como irá ser lida a luta pela terra, a escravidão ou a violência da paisagem do sertão nordestino, por esses leitores estrangeiros?
Eu não tinha esperança sequer que o livro vencesse o Prémio Leya porque fala de uma realidade muito particular, até mesmo dentro do Brasil, e imaginei sempre que o romance não iria despertar o interesse do júri por isso. Era uma história muito nossa, mas no seu percurso ele atraiu muitas editoras estrangeiras - espanhola, búlgara, italiana, turca, chinesa, holandesa, coreana... - e isso fez-me pensar sobre o que desperta o interesse nos editores estrangeiros. No fundo, a explicação é ser uma história que é universal. Ninguém, portugueses, brasileiros e todos os outros leitores, são pessoas que prescindam da terra e de certos sentimentos que a literatura oferece, levando-nos a lugares inimagináveis. Além de que o desejo por liberdade e contra a exploração é global.
Alguns dos contos estão muito próximos da atualidade. Era necessário ao autor olhar também o presente ou é apenas um piscar de olhos à história de um século XX brasileiro que ainda demora em chegar ao fim e passar para o XXI?
... Ou que deu um salto muito deficiente para o século XXI e deixou uma parte do corpo atrás. Nestas narrativas de Doramar há de tudo, desde a mulher escravizada que viveu esse horror na pele, da empregada doméstica que vive essa exploração vivida anteriormente. Era necessário abarcar nestas histórias algo que já aparece em Torto Arado, em que o passado se repercute no nosso presente. Um passado que ficou por enfrentar e ressurge de uma forma muito contundente. Daí essa mistura de histórias em que não se identifica o tempo mas que se aproxima dos dias atuais, como se os personagens vivessem uma linha temporal diferente mas movidos pela mesma humanidade e também por tudo aquilo que consistiu na degradação das suas vidas. É impossível falar apenas no hoje, para mim era importante falar do passado e de como o atual reverbera o antes.
Em a A Oração do Carrasco não resiste a evocar o assassinato de Martin Luther King, de John Lennon. É uma resposta à colagem que lhe atribuem aos autores regionalistas dos anos 30 ou a influência do contemporâneo?
O olhar contemporâneo permite compreender melhor os processos históricos que nos trouxeram até aqui se houver essa vontade de investigar a nossa humanidade. Nesse conto, há várias alegorias que poderiam referir-se à repressão policial ou como se sofre às mãos do Estado. Quero sempre confrontar o imaginário com o que é mais palpável e que se mantém como referência através de personagens reais.
Essas alegorias surgem porque continuam relacionadas ao autoritarismo do presente?
Com certeza, vivemos um período muito duro e nefasto no Brasil, onde o autoritarismo entrou na nossa jovem democracia e ocupou as instituições de governo de uma maneira muito forte. Tudo isso terá provocado em mim uma vontade de falar de um desejo de reprimir que percorre a história da humanidade, bem como de eliminar o outro, e que não é só do nosso Presidente, nem nos abandonará rapidamente. Precisamos de entender o que sustenta tudo isto, até porque nos carrascos existe humanidade, não é só nas vítimas.
O empoderamento das mulheres domina a narrativa. Não terá a ver com a espuma dos dias mas é um espelho sociológico que até há pouco outros autores se recusavam ver?
Acho que há uma referência muito particular de mim a propósito desta vivência com as mulheres, porque o Brasil ainda é um país muito machista e desigual não só entre as pessoas brancas e não brancas mas também entre homens e mulheres. Eu sempre percebi a imensa força nas mulheres que, a despeito de toda a violência, ainda conseguiam viver de uma maneira muito forte. Isso deixou uma marca em mim, que toma conta do que escrevo, como será o caso do livro em que estou a trabalhar. Creio que o futuro será mais feminino.
No conto Alma escreve "nunca pude apagar de mim o sofrimento que não vivi". É autobiográfico?
De alguma forma sim, porque carregamos as jornadas dos nossos antepassados no nosso ADN em todas as escolhas que eles fizeram, não estamos aqui impunemente. Não é um fardo, antes o que chamamos História. Pode-se não querer saber da própria história, mas ela está, inevitavelmente, inscrita no nosso corpo e vida.
O título remete-nos para um dos grandes clássicos gregos, a Odisseia. Muitas destas personagens podiam conviver com as de Homero numa dimensão da tragédia?
Certamente e essa era a minha intenção. Muitos autores escreveram a partir da Odisseia, que considera a vida como uma grande jornada, e ao trazer essa tese para estas histórias quis dizer que uma vida por mais pequena que pareça é sempre uma grande jornada. A de Doramar dá-se num autocarro, numa viagem que se repete entre o emprego e os arredores, e não precisou de atravessar o mar - o mar dela é o caos urbano. Ou seja, uma vida por mais insignificante que pareça tem sempre grandes histórias.
Itamar Vieira Junior
Editora D.Quixote
197 páginas
Amanhã nas livrarias