Nos 74 anos de João não houve festa. Está desaparecido há dois meses
João Marinho fez 74 anos no dia 23 de julho, mas desta vez não houve bolo nem velas. O aniversariante não estava presente para festejar e ninguém sabe dele: desapareceu faz esta sexta-feira dois meses, a 9 de junho, quando ia dar uma caminhada e desde então nunca mais foi visto. Não há uma pista, foi como se se tivesse evaporado.
A família desespera com as incertezas. Sara, a única filha, só quer saber o que aconteceu naquele domingo de manhã em Brejos de Azeitão. Não se conforma com a dúvida, ela e a mãe vivem numa angústia que não tem explicação - "ninguém consegue perceber o que estamos a sentir porque poucas pessoas passam por isto."
João tinha tudo preparado para assar as sardinhas compradas na tarde anterior. Disse à mulher, Maria Manuela, que ia ter com o primo, para o acompanhar na caminhada, e que voltaria para salgar o peixe. Mas a família Marinho não se sentou à mesa para comer o peixe assado, nem nesse dia, nem nunca mais.
As perguntas são muitas. "O que eu queria era encontrar o meu pai com vida, mas sei que essa probabilidade é ínfima. Porque está num sítio tão oculto que ninguém o encontra? Se saiu com intenção de voltar, não volta porquê? Se se sentiu mal e caiu para o lado, porque é que ninguém o vê?", questiona Sara, 44 anos, que vive com os pais em Almada.
Normalmente passavam os fins de semana em Azeitão, na casa que Sara comprou há uns anos. Foi daqui que João desapareceu, no fim de semana prolongado do 10 de junho. Saiu para ir ter com o primo - que é como se fosse um irmão para Maria Manuela, já que viveu muitos anos na casa dos seus pais. Mas como no dia anterior não tinha dado garantia que ia à caminhada, António saiu sem esperar por ele.
Quando João chegou à casa dos primos - a uns 400 metros da casa da filha - passavam cerca de 15 minutos das 9 da manhã. O diálogo com a prima, Maria José, mulher de António, terá sido mais ou menos assim, conforme a filha o reproduz:
- Não disseste nada e o António foi andado...
- Ele disse para onde ia?
- Disse que ia até ao Minipreço...
- Vou ver se o vejo.
João terá dito a Maria José que ia pela nacional, não pelo caminho de dentro. Ela viu-o partir nessa direção, mas da sua casa não consegue garantir se foi mesmo por aquela estrada. O que se sabe é que João deixou em casa os óculos e o telemóvel. Era normal que isso acontecesse, a caminhada em regra durava cerca de uma hora.
Levou, como também era hábito, a carteira com os documentos de identificação, os cartões bancários e o passe. E dinheiro, que a filha não consegue precisar se seriam 20, 40 ou no máximo 80 euros. Os cartões nunca foram usados, as contas não foram movimentas, não há registos de utilização do passe nos transportes.
Nada fazia prever este desfecho para aquele domingo. Sara garante que o pai, que tem um historial depressivo, estava numa fase boa. A família tinha regressado na segunda-feira anterior ao desaparecimento de um passeio aos Açores, onde visitaram São Miguel e o Pico. João estava bem-disposto, veio cheio de planos para fazer umas obras na casa, mudar a prótese dentária - assegura a filha.
"Passou duas vezes pelo desemprego e foi na primeira vez que teve a primeira depressão, mas se nem nessas situações se foi embora, porque é que o faria agora?" Sara faz questão de sublinhar que se antes houve alguma tendência para isolamento, agora não era isso que se passava com o pai, embora não fosse homem de se entreter nos cafés. "Tinha consciência que quanto mais se fechasse mais deprimido ficava."
Voltemos a 9 de junho. Pouco passava das 11 horas quando as duas mulheres começam a estranhar que ainda não tivesse regressado para tratar do peixe, como tinha prometido: "A minha mãe disse logo que algo de ruim tinha acontecido, teve um mau pressentimento."
Ligar-lhe para o telemóvel não fazia sentido - tinha ficado em casa. Sara já o vasculhou para ver se encontrava algum indício, uma mensagem estranha, alguma chamada. Mas nada. Era ela, aliás, que apagava os registos que o pai já não queria no telefone.
Já passava do meio-dia quando Sara decide ligar para a casa dos primos António e Maria José. "Vimos logo que tinha acontecido alguma coisa." Sabendo que o pai não tinha ido dar a caminhada, veste-se e faz de carro o percurso que ele poderia ter feito, pela nacional e pelo caminho alternativo. Foi ainda em direção da Bacalhoa. Mas nada.
António também vai à procura do primo. Ligam para hospitais. No hospital da Arrábida dizem-lhes que não podem dar informações por telefone. Vão lá. E mais uma vez, nada.
A mãe está em casa, em absoluta aflição. Sara decide passar pela GNR para comunicar o desaparecimento do pai, mas dizem-lhe que não vão registar a queixa porque João pode ter desaparecido voluntariamente. Pede ao guarda para fazer chegar a foto do pai às patrulhas, para o caso de verem alguém a deambular desorientado.
Quando regressa a casa decide que não pode ficar de braços cruzados e começa a bater os caminhos a pé, já a entrar na zona de mato. Os vizinhos também ajudam. Cerca das 18 horas volta à GNR de Azeitão, quer saber se deve dar parte a outras forças policiais. "Passado este tempo, acho que não tinha feito diferença nenhuma fazer queixa naquela dia ou no outro. As forças de segurança esperam que estes casos se resolvam sozinhos", critica.
Depois da ida à GNR, entra nas antigas instalações da Aerset (Associação Empresarial da Região de Setúbal), que estão ao abandono. Mas não encontraram qualquer vestígio de João. Às 21.30 Sara volta a ligar para a GNR e desta vez o guarda que a atende diz-lhe que já devia ter feito a comunicação. Volta ao posto e é-lhe garantido que a informação sobre o desaparecimento do pai vai diretamente pela a PSP e para a Polícia Judiciária.
Foi uma noite passada em claro. Como muitas outras que se seguiram. "Dormimos muitas vezes quatro horas por noite, com a ajuda de fármacos." Quando se deita tem no pensamento o pai - "o que é que lhe aconteceu?"; quando acorda não é muito diferente e questiona-se: "será que é hoje que vou saber o que aconteceu?"
De manhã volta à GNR, respondem-lhe que até à hora de almoço poderão dizer qualquer coisa. Afinal, não havia nada para dizer. Os cães pisteiros vêm no dia seguinte ao desaparecimento, à tarde. "Não foram à minha casa, não cheiraram qualquer peça de roupa do meu pai. Disseram-me que os cães detetavam odor humano e não específico de uma pessoa. Ora se estamos numa zona residencial, odor humano há por toda a parte."
É no dia que é informada pela GNR que vão encerrar as buscas - quarta-feira - que Sara Marinho vai à PJ de Setúbal. Um inspetor assegura que o processo não chegou formalmente à secção dos desaparecidos, que podia estar ainda para distribuição. Mas aconselha-a a ir ao tribunal e fazer um requerimento ao Ministério Público para que o caso fosse tido como processo-crime, de forma a que a investigação decorresse com todos os preceitos inerentes - desde o levantamento do sigilo bancário às comunicações.
Até hoje nada se descobriu sobre o desaparecimento de João. Ao DN, a Polícia Judiciária afirmou que continua a investigar e que foram tomadas "as providências adequadas para levar a investigação a bom termo, em conjunto como Ministério Público e a GNR". E garante que, "até ao momento, não há suspeitas de crime".
Mas pela cabeça da família passam todas as hipóteses. O desespero de não saberem o que aconteceu leva Sara a pensar num vasto leque de possibilidades: "Desconfia-se de tudo, mas de pessoas não consigo desconfiar em concreto. Será que o tentaram assaltar? Será que viu qualquer coisa que não devia? Será que o atropelaram e largaram corpo noutro sitio qualquer? Será que por uma má palavra o agrediram? Sentiu-se desorientado e entrou no mato? Será que caiu num poço, mas sem qualquer indício como é que se pode pedir a alguém para dragar um poço?"
Perguntas e mais perguntas que Sara faz todos os dias. Recusando sempre a hipótese de o pai se ter afastado por vontade própria ou de ter posto termo à vida, já verificou que não há seguros de vida.
"Uma pessoa quando se suicida não tem a preocupação de que o corpo não seja encontrado. Também não aceita a hipótese que alguns aventam de ter fugido com outra mulher. "Isso não faz sentido, o meu pai era obcecado pela minha mãe, o máximo de tempo que estava longe de nós era hora e meia, duas horas, e depois se se quisesse afastar o meu pai dizia-nos. Vivíamos os três para os três", refere.
Era às segundas e quarta-feiras que João Marinho se afastava mais tempo da mulher. Apanhava os transportes de Almada para Lisboa e ia encontrar-se com o irmão Francisco para, juntos, visitarem o irmão mais velho, Serafim, internado num lar no Restelo.
Francisco, 67 anos, é o mais novo dos oito irmãos e não se conforma com o que aconteceu. Tinham estado juntos quatro dias antes, numa dessas habituais visitas e nada indicava a tragédia que estava para acontecer. "Não se sabe se está vivo, se está morto, se está a sofrer. É indescritível o que estamos a passar. Estamos de rastos."
Longe vão os tempos em que os cinco irmãos rapazes vieram à vez de Gandarela de Basto (Celorico de Basto) para tentar uma vida melhor em Lisboa e chegaram a viver todos na mesma casa. João começou como moço de recados numa mercearia, depois foi para a restauração e ainda andou uns anos embarcado no Vera Cruz, até cumprir o serviço militar em Angola.
Casa com Maria Manuela depois da Guerra Colonial, em 1973. Começa então a trabalhar como cobrador de uma empresa de eletrodomésticos e depois entra para os serviços administrativos de uma firma de bebidas, que viria a falir quando a filha Sara andava na faculdade.
Com o desemprego, bate-lhe à porta a primeira depressão. Consegue novamente trabalho, também nos serviços administrativos de uma empresa de construção civil, mas a crise trouxe-lhe o mesmo desfecho. Depois do segundo desemprego, João acabou por se reformar. Há cerca de um ano teve um tumor que ficou tratado mas o obrigou a retirar uma corda vocal e lhe deixou dificuldades na fala.
Mas agora parecia estar bem. Francisco conta que o irmão João vinha encantado com os Açores. Até veio de lá carregado com um queijo para lhe dar - que afinal acabaria por saber que também se vendia no continente. "Éramos muito chegados, éramos os mais ligados, havia uma coisa comigo e com ele. Eu aconselhava-me com ele, ele aconselhava-se comigo."
Agora, quando vai visitar o irmão mais velho ao lar, olha sempre pelo canto do autocarro, para ver se João está à sua espera. Só que não está. "Já não temos esperança nenhuma, são muitos dias."
Francisco conta que o irmão é de poucas falas, mas não lhe conhece inimigos que pudessem ser responsáveis pelo seu desaparecimento. Só quer que apareça, vivo ou morto, para pôr termo à "aflição" e "desorientação" em que a família vive.
Tal como o tio, Sara deita-se e levanta-se a pensar no mistério que levou ao pai a desaparecer sem deixar rasto. "Ter sido levado por alguém era o melhor dos cenários, mas ao fim de 60 dias não me parece viável. Sabemos que há tráfico humano, mas o meu pai tinha 73 anos. Quanto a dinheiro, somos mais classe média que há, o meu pai ganhava pouco mais de 600 euros de reforma. Depois penso que pode ser encontrado e já ter sido mexido pelos animais, que o corpo tenha estado exposto às intempéries. Ou penso que alguém o pode ter metido no lixo e fico a pensar como funcionam os carros do lixo..."
Esta sexta-feira cumprem-se dois meses sobre o desaparecimento de João Marinho. A mulher teve desde o primeiro dia um mau pressentimento. Nas 24 horas do dia, a filha Sara experimenta vários sentimentos, da esperança ao desespero: "Sinto que tenho um buraco nas costas. É como se todos os dias perdesse mais um bocado de mim."