Nobel da Paz Narges Mohammadi representa todas as mulheres iranianas

Comité Nobel Norueguês distinguiu a ativista iraniana "pela sua luta contra a opressão das mulheres no Irão e pela sua luta para a promoção dos Direitos Humanos e a liberdade para todos" um ano após a morte de Mahsa Amini ter desencadeado os maiores protestos de sempre no país. Detida, não poderá receber o prémio a 10 de dezembro.
Publicado a
Atualizado a

Vinte anos depois de o prémio Nobel da Paz ter sido entregue à advogada iraniana Shirin Ebadi, "pelos seus esforços pela democracia e os direitos humanos", e um ano após a morte da jovem Mahsa Amini às mãos da polícia de costumes ter desencadeado protestos históricos no Irão, o Comité Nobel Norueguês volta a pôr o foco no regime de Teerão. A ativista iraniana Narges Mohammadi, que é vice-presidente da organização fundada por Ebadi e está presa, é a vencedora do Nobel da Paz de 2023 "pela sua luta contra a opressão das mulheres no Irão e pela sua luta para a promoção dos Direitos Humanos e a liberdade para todos".

O anúncio foi feito esta sexta-feira pela presidente do Comité Norueguês, Berit Reiss-Andersen, que começou por citar o mote dos protestos do último ano no Irão: "Mulher, vida, liberdade", dizendo que "expressa de forma apropriada a dedicação e o trabalho" da ativista iraniana de 51 anos. "Mulher: ela luta pelas mulheres contra a discriminação sistemática e a opressão. Vida: ela apoia a luta das mulheres pelo direito de viverem vidas plenas e dignas. Liberdade: ela luta pela liberdade de expressão e pelo direito à independência e contra as regras que exigem que as mulheres cubram os seus corpos", disse a presidente do Comité Norueguês.

Numa entrevista publicada mais tarde no site oficial, Reiss-Andersen foi questionada sobre o que mudou no Irão entre o galardão de Ebadi e o agora de Mohammadi. "A situação fundamental para as mulheres não mudou. Mas há uma diferença. Sinto que a intensidade das demonstrações do último ano e como os participantes são ainda mais jovens, mostram tanta coragem, isso dá-nos esperança de que há uma mudança profunda no caminho", afirmou. Nos protestos, reprimidos com violência pelo regime, morreram mais de 500 pessoas e milhares foram presas.

A própria Ebadi reagiu em declarações à Reuters, congratulando Mohammadi e "todas as mulheres iranianas" pelo prémio, que disse "vai chamar a atenção sobre as violações dos direitos das mulheres na República Islâmica, que infelizmente provou que não pode ser reformada". O prémio surge precisamente dias depois de uma adolescente ter sido hospitalizada após um confronto com a polícia dos costumes no metro de Teerão, por não estar a usar o véu islâmico. Armita Geravand, cujo caso traz à memória o de Mahsa Amini, está em coma. As autoridades iranianas negam a responsabilidade.

Ainda em relação ao facto de 20 anos depois o Comité Nobel voltar a focar-se no Irão, onde nada parece ter mudado, Reiss-Andersen lembrou: "Foram precisos três prémios Nobel da Paz antes de o apartheid cair na África do Sul". Referia-se ao bispo Desmond Tutu, vencedor em 1984, e a Nelson Mandela e Frederik de Klerk, que dividiram o prémio em 1993, um ano antes das eleições que marcaram o fim oficial do regime de segregação racial. "A paz não é um conserto rápido. Por vezes desenvolve-se durante décadas. Mas este movimento único que nasceu no ano passado no Irão é um vencedor justo do Nobel da Paz", reforçou, destacando que o galardão é também das "centenas de milhares de pessoas que se têm manifestado contra o regime iraniano.

Narges Mohammadi é a 19.ª mulher a ganhar o Nobel da Paz em 122 anos de história, sendo também a quinta pessoa a receber o galardão estando detida. Nascida em 1972 (sete anos antes da Revolução) no norte Irão, numa família da minoria azeri, a ativista estudou Física, trabalhou como engenheira e foi colunista em vários jornais. Envolveu-se com o Centro de Defensores dos Direitos Humanos, a organização fundada por Shirin Ebadi, em 2003, sendo atualmente a sua vice-presidente.

Em 2011, foi detida pela primeira vez pelos seus esforços para ajudar ativistas presos e as respetivas famílias, segundo o Comité Nobel. No seu livro, Tortura Branca, que é uma coleção de entrevistas a outras mulheres detidas, contou contudo que foi detida pela primeira vez ainda na universidade. Em 2013, após ser libertada, envolveu-se numa campanha contra a pena de morte no Irão, voltando a ser detida em 2015. A partir de então, dedicou-se a denunciar o uso de tortura e agressão sexual contra os presos, nomeadamente as mulheres. A última vez que foi presa foi a 16 de novembro de 2021, sendo então condenada à solitária pela quarta vez na sua vida.

"Narges Mohammadi é uma mulher, uma defensora dos direitos humanos e uma lutadora pela liberdade. A sua luta corajosa pela liberdade de expressão e o direito à independência acarretou enormes custos pessoais. O regime no Irão já a deteve 13 vezes, condenou-a cinco vezes e sentenciou-a a um total de 31 anos de prisão e 154 chicotadas", lembrou o Comité Norueguês. Está atualmente detida na famosa prisão de Evin, onde estão todos os presos políticos iranianos, por "espalhar propaganda".

Nazanin Zaghari-Ratcliffe, cidadã iraniana e britânica que esteve detida na mesma prisão até março de 2022, disse à BBC estar feliz pela amiga. "Faz-me chorar. Ela fez tanto por todas nós em Evin. Narges é uma inspiração e um pilar para as mulheres na ala feminina de Evin pela sua luta destemida contra as violações dos direitos das mulheres, o uso do confinamento em prisão solitária e as execuções no sistema judicial no Irão", afirmou. "Este prémio pertence a cada uma das mulheres iranianas que, de uma forma ou de outra, foram e continuam a ser vítimas da injustiça no Irão", acrescentou.

Apesar de detida, quando as manifestações começaram em setembro do ano passado após a morte de Mahsa Amini (por alegadamente não estar a usar o véu islâmico da forma correta), Narges Mohammadi expressou a sua solidariedade e organizou ações entre os detidos. "As autoridades prisionais responderam impondo ainda mais restrições, proibindo-a de receber visitas ou chamadas", contou Reiss-Andersen. "Ainda assim, conseguiu fazer passar um artigo que o New York Times publicou no aniversário da morte de Mahsa Amini", intitulado "Quanto mais nos prendem, mais fortes nos tornamos".

Este mesmo jornal citava um comunicado que Narges Mohammadi teria emitido já depois de ser conhecido o prémio, prometendo ficar no Irão e continuar o seu ativismo, mesmo se isso significar passar o resto da vida na prisão. "Nunca deixarei de lutar pela realização da democracia, da liberdade e da igualdade", disse, segundo o New York Times. "Certamente, o Prémio Nobel da Paz tornar-me-á mais resiliente, determinada, esperançosa e entusiasta neste caminho e acelerará os meus passos", acrescentou. "Ao lado das corajosas mães do Irão, continuarei a lutar contra a discriminação implacável, a tirania e a opressão baseada no género por parte do governo religioso opressivo até à libertação das mulheres", concluiu.

A família de Narges Mohammadi, que vive no exílio em Paris, prestou-lhe homenagem. "Estou muito, muito orgulhoso da minha mãe, muito feliz", disse Ali Rahmadi, o filho de 17 anos, numa conferência de imprensa ao lado do pai e da irmã gémea. Há oito anos que não vê a mãe. Tagui Rahmani, o marido da ativista que também já esteve detido, diz que o prémio é para todos os que lutam no Irão. "As suas vozes não serão silenciadas", afirmou, defendendo que o prémio Nobel "irá dar-lhes mais força para se expressarem".

O facto de Narges Mohammadi estar detida implica que não poderá estar na entrega do prémio, a 10 de dezembro, em Oslo. O Comité Norueguês apelou a Teerão para que faça o correto e liberte a ativista. O prémio, além de uma medalha em ouro e um diploma, é de 11 milhões de coroas suecas (cerca de 950 mil euros).

A escolha de Narges Mohammadi para o Nobel deste ano foi aplaudida um pouco por todo o mundo - de Washington a Bruxelas, passando por Lisboa, mas não em Teerão. "Soubemos que o Comité Nobel atribuiu o Prémio da Paz a uma pessoa que foi considerada culpada de reiteradas violações da lei e que cometeu atos criminosos. Condenamos esta ação tendenciosa e política", disse o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, Nasser Kanani.

Para o secretário-geral da ONU, António Guterres, este Nobel é um "lembrete importante" de que os direitos das mulheres enfrentam um "forte retrocesso" no Irão e noutros lugares do mundo. "Este Prémio Nobel da Paz é um tributo a todas as mulheres que lutam pelos seus direitos arriscando a sua liberdade, a sua saúde e até as suas vidas", acrescentou o português.

O presidente norte-americano, Joe Biden, pediu a libertação imediata da galardoada. "Este prémio é um reconhecimento de que, embora atualmente esteja detida injustamente na prisão de Evin, o mundo ainda escuta a voz de Narges Mohammadi pedindo liberdade e igualdade", disse em um comunicado. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, escreveu no Twitter que o prémio "reconhece a luta corajosa e nobre das mulheres iranianas que desafiam a opressão" e que "inspiram as mulheres em todo o mundo".

susana.f.salvador@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt