A chamada veio de Bamako. Do outro lado da linha estava um antigo colega, agora de regresso à terra natal, depois de uma carreira brilhante nas Nações Unidas. O essencial da sua conversa foi contra a presença maciça de tropas estrangeiras no seu país. São cada vez mais, quer no quadro da missão da ONU - conhecida pelo acrónimo MINUSMA - quer por intervenção da França..Contrariamente às declarações recentes de Emmanuel Macron, que afirmou que a guerra contra o terrorismo no Sahel estaria a ser ganha, o meu amigo falou-me da deterioração da situação no Mali e nos países vizinhos. Ou seja, há mais militares, mas, paradoxalmente, menos segurança..Vejamos as últimas estatísticas da Organização Internacional das Migrações. Contabilizam cerca de 1,7 milhões de deslocados devido à instabilidade e às ações armadas nesta parte do Sahel, sobretudo na zona das três fronteiras, entre o Mali, o Níger e o Burkina Faso - uma região conhecida como Liptako. Estima-se, por outro lado, em cerca de sete mil as vidas perdidas nos últimos doze meses por atos de terrorismo e operações de prevenção e de resposta contraterrorista..São números muito acima da média dos anos anteriores. Mais ainda, uma investigação recente das Nações Unidas mostra que no Mali, desde 2013, se têm cometido crimes de guerra e atrocidades. O relatório, que além de apontar o dedo a terroristas põe em causa forças armadas de certos Estados, caiu num buraco profundo, no Conselho de Segurança, e aguarda debate para as calendas gregas..Liptako é um território vasto, com uma área onde Portugal caberia três vezes e mais. Os fulas, na sua dupla condição de pastores nómadas e de comerciantes itinerantes em longas caravanas, têm tradicionalmente partilhado essas imensidões secas e agrestes com outras etnias..Mas os modos de vida mudaram. O crescimento demográfico acelerado das últimas décadas, a que se junta uma enorme pressão da pecuária - uma multiplicação das manadas e rebanhos -, as chuvas cada vez mais irregulares e escassas, por causa das mudanças climáticas, a pobreza e a ausência de uma administração estatal eficaz contribuíram para um ambiente generalizado de instabilidade social, revolta e conflitos..A corrida ao ouro, que começou a ser explorado intensivamente de modo artesanal, vai para vinte anos, tem atraído novas ondas de violência. Esse é o quadro em que se movem e operam vários bandos armados sob as bandeiras confusas da rede terrorista do Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS) ou, mais a norte, a caminho da fronteira com a Argélia, as gentes afiliadas à Al-Qaeda..O fanatismo religioso serve de desculpa ou baralha-se com o banditismo. Para muitos jovens, a Kalashnikov passou a substituir o bordão do pastor ou a enxada do agricultor, num contexto progressivamente mais árido, imprevisível e perigoso. Dizia-me alguém da região que aderir a um grupo armado é para muitos um ato de autoproteção..Existe aqui um problema enorme que exige fundamentalmente dois tipos de abordagens: uma será política e a outra de combate à desertificação e à pobreza. Mencionarei apenas a parte política, que requer a inclusão de todos, sem discriminações de base étnica. Também significa mostrar publicamente mão firme contra a corrupção, nas instituições militares e na administração do Estado. Inclusão e probidade são duas questões fundamentais, que têm de ser resolvidas pelas elites nacionais..Os parceiros europeus têm fechado os olhos e pretendido que não veem esses problemas. Por exemplo, andam há anos a formar os oficiais das forças armadas do Mali, sabendo perfeitamente que esses oficiais mantêm uma mentalidade tribal e desviam sistematicamente para proveito próprio recursos destinados ao esforço de estabilização do país..É preciso mudar a maneira de agir no Sahel. O diálogo com os países da região deve ser respeitoso. O futuro que está em causa é, acima de tudo, o deles. Não podemos retirar-lhes a direção do processo. Ser mais papista do que o Papa na terra dos outros é uma prática que tem de ser arrumada de vez, numa gaveta do passado. Mas tem de ser um diálogo franco.. Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU