"No Reino Unido posso fazer coisas que em Portugal só os médicos podem fazer"
Depois de Portugal, o Reino Unido será o país onde trabalham mais enfermeiros portugueses, recrutados pelo NHS muito devido ao prestígio de que gozam em terras de sua majestade a rainha Isabel II e que ganhou atualidade com o agradecimento do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, ao enfermeiro Luís Pitarma, que o tratou enquanto esteve internado nos cuidados intensivos, devido a complicações decorrentes da infeção por covid-19. Segundo estimativa da ordem que representa estes profissionais de saúde, dos 18 mil que trabalham fora do país, mais de metade estarão na Grã Bretanha, apesar de o Brexit já ter levado alguns a regressarem.
Não foi o caso de Rui Costa, 33 anos, que está Wolverhampton, no Newcross Hospital, desde 2014. A cidade, perto de Birmingham, onde Rui vive, é conhecida pelo seu clube de futebol, que tem como treinador principal um compatriota, Nuno Espírito Santo. Mas embora a sua estreia como enfermeiro tenha acontecido no mundo do futebol - na equipa médica do União de Leiria, em 2011 - não foi o clube inglês que levou à transferência do enfermeiro para o Reino Unido, e sim o NHS, serviço nacional de saúde britânico, que em 2014 recrutou uma série de enfermeiros portugueses para reforçar os seus quadros de pessoal.
Rui, natural de Tábua, foi um deles. Depois de passar pelas equipas médicas do União de Leiria e do Tourizense e sem ver perspetivas de ingressar no Serviço Nacional de Saúde, ao qual se candidatou, o enfermeiro viu no recrutamento que o Newcross Hospital fez no Porto, em 2014, a oportunidade de evoluir profissionalmente.
Em seis anos, passados na área da traumatologia e ortopedia, fez uma série de cursos e formações, proporcionados pelo NHS, e chegou a "band 7" (a carreira de enfermagem no serviço nacional de saúde inglês está organizada por bandas/bands, sendo a 9 a máxima), o que significa que é enfermeiro especialista, pode prescrever medicação e fazer avaliação clínica de doentes, nomeadamente cardiorrespiratória e neurológica. E é isso que o faz não pensar voltar a Portugal tão cedo.
"Aqui somos valorizados, há progressão na carreira, formação contínua, muito melhor remuneração e, além disso, aqui um enfermeiro pode fazer muito mais. Eu posso fazer avaliação clínica e prescrever medicação, o que em Portugal está reservado aos médicos. A verdade é que neste momento, se voltasse, não sei onde encaixaria as minhas competências", diz.
A valorização não só financeira como profissional de que os enfermeiros, e os portugueses em particular, gozam no Reino Unido é uma das principais razões. "Trabalho com cirurgiões com 40 anos de carreira, que respeitam a minha posição, opinião e trabalho. Em Portugal existe um fosso maior entre equipas médicas e de enfermagem".
Sobre a boa fama que os enfermeiros portugueses têm naquele país, Rui Costa atribui-a à melhor formação e maior proatividade. "A licenciatura portuguesa é de quatro anos e muito mais exigente enquanto a inglesa é de apenas três e somos mais proativos e desenrascados, faz parte do nosso genoma e valorizam muito isso aqui. No NHS tem que se ter treino para tudo, estão sempre a dar formação e os portugueses fazem todas as formações que podem. Não consigo confirmar com certeza, mas empiricamente diria que os enfermeiros portugueses no Reino Unido progridem mais depressa na carreira".
A pandemia de covid-19, que obrigou hospitais e profissionais de todo o mundo a entrar em modo "emergência" e a adotar planos de contingência para a combater, levou à transferência de Rui Costa, que tem treino de suporte básico de vida, para os cuidados intensivos do Newcross Hospital dedicados à resposta à covid-19 e ele, que lida no dia a dia com pacientes de traumatologia, diz que nunca tinha vivido nada desta dimensão.
"Estou a tratar doentes covid em fase aguda e é muito pesado, todos ligados ao ventilador. É uma experiência indescritível. Enquanto profissionais estamos preparados para lidar com a morte, mas a nossa aprendizagem foi feita para dar vida e quando entro na UCI, todo equipado, olho à volta e o que vejo são 40 ou 50 pacientes, não há um que esteja consciente, estão todos entubados. Na UCI, a taxa de mortalidade é de 50 por cento. Estamos todos a fazer o melhor possível, mas não é fácil", diz, convencido de que os que estão na linha da frente vão precisar de apoio muito em breve.
"Agora somos muitos, porque as equipas foram reforçadas, mas o staff vai diminuir e as situações que temos para tratar todos os dias são muito pesadas. Não tenho dúvidas de que a curto prazo existirão casos de stress pós-traumático a precisar de suporte. Por causa dos equipamentos de proteção não sabemos bem quem é quem, comunicamos sobretudo com os olhos, mas nunca foi tão importante a entreajuda. Nunca precisámos tanto uns dos outros", desabafa o enfermeiro, que diz ter enorme orgulho na forma como Portugal tem lidado com a pandemia.
"Ainda hoje estava a almoçar e a ver o noticiário português e enchi-me de orgulho. As medidas foram bem aplicadas, na altura certa, logo de início, e fico muito feliz com isso".
No Reino Unido não aconteceu o mesmo e o enfermeiro teme a evolução da pandemia no país onde trabalha. "Aqui a população não está a ser testada massivamente e apesar dos apelos para ficarem em casa, bem vejo as pessoas com as crianças no parque em frente a minha casa, que está selado. Vão na mesma. Eu só vou às compras de duas em duas semanas e devo dizer que sou dos únicos que usa máscara. É um pouco revoltante".
Sofia Fontes, 27 anos, de Vila Nova de Gaia, partilha dos receios do compatriota e colega de profissão e hospital. "Manager" das urgências do Newcross Hospital, viu diminuir, desde que a pandemia se instalou, para mais de metade a afluência ao serviço, mas aumentar drasticamente a gravidade dos casos atendidos.
Chegada ao Reino Unido no mesmo ano que Rui, em 2014, não teve qualquer experiência profissional em Portugal. Acabou o curso e foi trabalhar para fora, aconselhada pela mentora de estágio, dada a dificuldade de arranjar emprego no país.
"Juntei-me a uma agência de recrutamento e comecei a fazer entrevistas ainda antes de acabar o curso. Assim que acabei, vim. Muito poucos colegas tinham trabalho no SNS, era muito difícil entrar e os que tinham estavam descontentes com as condições de trabalho, o salário e a dificuldade de progredir na carreira. A valorização profissional e possibilidade de formação contínua foi o que me atraiu aqui", diz.
Partir não custou, a perspetiva de um país e de um trabalho novo eram um desafio aliciante. A "ficha só caiu depois" de lá estar. O inverno, os dias pequenos e as saudades da família pesaram, mas adaptou-se e neste momento voltar não está no horizonte da enfermeira, que vive em Wolverhampton e de dois em dois meses vai a Portugal visitar a família (agora não, devido à situação de pandemia, o que lhe tem causado alguma ansiedade).
No mesmo nível profissional que Rui - "band 7" -, Sofia optou pela gestão e é responsável pela organização do serviço de urgências do hospital. É a seu cargo que está a organização de turnos, o controlo do fluxo de doentes e gestão de atendimentos e internamentos, assim como a criação e gestão dos cubículos de isolamento e da adaptação do serviço à pandemia de covid-19, que é um desafio quotidiano.
"O facto de este vírus ser novo e tão desconhecido leva a que estejamos em constante adaptação e mudança do serviço. Há novas orientações e guidelines todos os dias. A covid-19 implicou o acréscimo de cinco enfermeiros por turno, tanto de dia como de noite, para dar resposta a estes doentes que quando chegam ao hospital já vêm em estado mais agudo, além da gestão dos equipamentos de proteção e criação de circuitos para controlo de infeção", diz, adiantando que apesar de o número de número de doentes nas urgências ter descido para menos de metade, "os casos são de maior gravidade e a inspirar mais cuidados".
Sobre a boa opinião que os ingleses têm dos enfermeiros portugueses, concorda com Rui Costa: "a nossa formação de base é superior e muito mais exigente, somos mais independentes, dominamos mais técnicas, estamos mais capacitados", diz. No entanto, acrescenta outra razão: "As diferenças culturais também têm importância. Os portugueses são mais dados, mais sorridentes e mais cuidadosos e o toque terapêutico é fundamental. Os ingleses são mais frios, mas quando entram no hospital e estão do outro lado, como doentes, valorizam esses cuidados".
Boris Johnson, o primeiro-ministro do Brexit, valorizou.