No país dos feijões mágicos
No mundo, discute-se os movimentos das tropas de Putin e a crescente tensão na Ucrânia, as imagens e os efeitos da erupção do vulcão em Tonga, a personalidade e as ideias da nova presidente do Parlamento Europeu, as festas e o futuro político de Boris Johnson, o resultado do tie break no jogo de Novak Djokovic contra o governo australiano e a ciência, além do impacto e do significado da variante Ómicron do coronavírus.
No Brasil civilizado, todos esses assuntos internacionais, assim como as estratégias, as alianças e as sondagens da pré-campanha das eleições mais tensas da história do país, marcadas para 2 de outubro, também se discutem.
Mas no Bolsonaristão o tema é outro: feijões mágicos podem ou não curar até os casos mais graves de covid-19?
Tudo começou em maio de 2020. O pastor Valdemiro Santiago de Oliveira, milionário líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, denominação cristã evangélica especializada em milagres com cerca de 5 mil templos espalhados por 24 países, lançou no momento mais trágico da pandemia um vídeo surpreendente no YouTube.
Segundo o também televangelista, escritor e cantor de 58 anos, até os casos mais graves de covid-19 podem ser curados através de sementes de feijão. Sucede que essas sementes milagrosas estão todas na posse dele e custam o "propósito" (eufemismo usado na Igreja Mundial para dinheiro, grana, massa, pilim, cacau, guito) de mil reais (mais ou menos 160 euros). Quem quiser, no entanto, pode investir apenas 500, 200 ou 100 reais nos feijões convenientemente vendidos com a inscrição "sê tu uma bênção", o slogan da igreja, e criados no laboratório teológico-farmacêutico de Valdemiro.
Valdemiro, convenhamos, tem um currículo invejável para aquilo - enganar o povo - a que se propôs fazer na vida: foi por 18 anos membro da Igreja Universal do Reino de Deus, de onde saiu em 1998, em rutura com a direção do bispo Edir Macedo, para fundar a Mundial.
Edir, por sua vez, é o dono da TV Record, igreja que frequentemente produz notícias negativas contra o rival Valdemiro, muitas delas assinadas pelo popular jornalista do canal Marcelo Rezende. Quando Rezende foi diagnosticado com um cancro, do qual viria a morrer em 2017, o dono da Mundial regozijou-se. "O demónio está comendo fígado e pâncreas dele, foi castigo de Deus", disse Valdemiro, o cristão.
O pastor Valdemiro e o bispo Edir estão, porém, de acordo numa coisa: o apoio a Bolsonaro. "Porque é a primeira vez que o Brasil tem um presidente que gosta da obra de Deus", disse o primeiro, cujas dívidas fiscais vêm sendo perdoadas pelo governo.
O mesmo governo que ainda não se pronunciou oficialmente sobre a eficácia dos feijões mágicos de Valdemiro, mesmo já tendo sido intimado nesse sentido duas vezes - a primeira em 2020, pouco depois do vídeo, e a outra já em 2021 - por juízes de São Paulo após investigação do Ministério Público.
"O juízo determinou que a União [governo do Brasil] informe em site do Ministério da Saúde, em carácter contínuo, de forma cuidadosa e respeitosa, neutra, se há ou não eficácia comprovada do artefacto (sementes de feijão/feijões) no que tange à covid-19", lê-se na decisão.
O ministério chegou a desmentir a eficácia do feijão em nota mas depois... retirou-a.
Os evangélicos são um dos supostos pilares eleitorais de Bolsonaro, o presidente cuja credibilidade política não vale um feijão.
Jornalista, correspondente em São Paulo