"No islão do Alentejo, a poesia, os cultos do vinho e da mulher tinham um papel grande"
Muita gente associa-o ao Festival Terras sem Sombra e ao Alentejo. No entanto, esta entrevista é em Lisboa, numa casa que foi da sua mãe, e sei também que nasceu em Lisboa. Afinal, sente-se lisboeta ou alentejano?
Sou lisboeta mas sou descendente pelos quatro costados de alentejanos. Nasci em Lisboa por razões clínicas, mas o Alentejo foi sempre a luz dos meus olhos.
De que zonas do Alentejo são os familiares?
Isso é curioso porque sou uma espécie de síntese dos quatro Alentejos. Hoje o que chamamos Alentejo central e que chamávamos Alto Alentejo, de Évora e do seu hinterland, que é a região da minha mãe mas que também tinha ligação ao que chamamos hoje Alto Alentejo, Portalegre, Elvas, Campo Maior, e por outro lado muito o Baixo Alentejo, com epicentro em Beja, e o Alentejo litoral, onde não há uma capital bem definida. Como historiador não me dediquei à genealogia, mas tenho algumas pessoas de família que conhecem muito bem as raízes genealógicas e estas chegam a zonas muito diferentes do Alentejo e a áreas limítrofes do Algarve, o Vale do Tejo e também Andaluzia e Extremadura.
Viveu no Alentejo enquanto criança? O Alentejo não é só terra dos antepassados, é também terra a que sempre teve ligação?
Desde criança. O meu pai terminou o curso de Engenharia e foi mobilizado para Angola, a minha mãe acompanhou-o e eu fui criado nos primeiros anos pelos meus quatro avós. As minhas vivências estão intrinsecamente ligadas ao Alentejo.
Onde no Alentejo?
A minha vida foi muito distribuída. Mora, Santiago do Cacém, Sines, Odemira, Évora e um pouco de Beja. Os meus avós já não estavam na sua vida ativa e íamos circulando por estes lugares onde existiam propriedades de família.
A sua família era da burguesia alentejana?
Eles designavam-se por lavradores, há quem diga latifundiários, no fundo uma aristocracia rural que estava muito embrenhada nos destinos do próprio território e que no meu caso o casamento dos meus pais associou duas casas agrícolas. O meu pai chamava-se Eduardo Falcão e a minha mãe, Maria de Lurdes Mexia. Considerei sempre o Alentejo como uma espécie de território natural. O meu pai era engenheiro agrónomo, especializado em hidráulica agrícola. Depois de fazer a licenciatura, fez uma formação e foi funcionário do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, mas quando eu tinha 6 anos ele decidiu voltar ao Alentejo e dedicar-se à sua carreira de funcionário público e compaginá-lo com o apoio aos meus avós na sua casa agrícola. Deixei de ser um menino urbano e fui transplantado para o Alentejo.
No Alentejo, as tais terras sem sombra, seja em Ferreira do Alentejo, ou em Beja, ou em Elvas, é onde se sente em casa?
Sinto-me sempre em casa. Conheço muita gente e tenho sempre um parente ou alguém amigo que nos acompanha e nos acolhe. Quando estive em Olivença passou-se uma espécie de epifania porque algumas pessoas de lá eram minhas parentes, espanhóis, e o próprio presidente da Junta da Extremadura é meu parente, não muito distante. Isto é curioso porque mostra que o Alentejo é um território feito de grandes continuidades. As épocas históricas foram-se sucedendo, mas grande parte da população manteve-se fiel a este espaço e, portanto, o sangue não mudou muito. As ideias podem ter mudado, tendências e vogas que se implantaram, mas mantivemo-nos muito fiéis às nossas próprias essências.
A sua mulher, a Sara Fonseca, que é muito, muito a alma do Terras sem Sombra, não é alentejana, pois não, mas parece.
A Sara não é alentejana, não. Adotou aquela região como sua, como aliás muitas pessoas da equipa do Terras sem Sombra e de outras equipas anteriores que estavam presentes no terreno.
O que é que caracteriza este festival, além de ser sempre no Alentejo e agora um pouco em Espanha?
Hoje até é mais do que um festival. Podemos dizer que é a temporada artística que faltava ao Alentejo porque começa em janeiro e termina em julho e volta em setembro/outubro. É uma iniciativa que procura construir o Alentejo como um destino de arte e natureza. Assenta em três pilares: a música, o que designamos por música erudita, mas também o património cultural e cada vez mais a salvaguarda da biodiversidade. É um festival itinerante que circula por vários concelhos do território e que tem a particularidade de não serem necessários bilhetes e de todas as atividades serem de acesso livre.
Dê-nos um exemplo de um fim de semana típico do Terras sem Sombra.
Um fim de semana característico seria como aquele que realizámos em Elvas. Começámos por visitar, no sábado à tarde, o Santuário do Senhor Jesus da Piedade, depois visitámos o Museu de Arte Contemporânea de Elvas, guiados pelo seu fundador, António Cachola. Depois houve um concerto na ex-catedral de Elvas e no dia seguinte visitámos, com peritos portugueses e espanhóis, um trecho do rio Guadiana para perceber a dinâmica do jacinto-de-água. Foi numa altura importante porque o Exército espanhol tinha acabado de limpar uma grande extensão do rio e Portugal ensaiava uma outra técnica de salvaguarda daquele trecho, que foi também muito bem-sucedida.
Também há a particularidade de o Terras sem Sombra ter sempre um país convidado. Neste ano foram os Estados Unidos. Isso também traz uma dimensão cosmopolita ao Alentejo?
O Alentejo hoje personifica-se como um dos territórios mais interessantes da Europa. Porque por um lado conseguimos manter a nossa herança, o nosso património cultural e ambiental com altos índices de preservação, mas abrimo-nos a uma inovação aceite de uma maneira muito coerente e que está, mês a mês, a mudar a fisionomia deste território. É, desse ponto de vista, um laboratório social e um palco para compreender a Europa que estamos a construir: muito assente nas regiões mas num diálogo entre regiões. No nosso caso, numa relação intensa com a vizinha Extremadura. O Terras sem Sombra apostou na internacionalização como uma das chaves que faltavam aos territórios de baixa densidade e o Alentejo tem todas as condições para o fazer, até porque isso corresponde a uma matriz cultural sua. Na época romana saiu do Alentejo um grande contingente de produtos que alimentavam o Império Romano. Chegavam até nós influências desde as púnicas, até aquelas que eram ainda tradição etrusca. Esta vocação internacional é muito forte na nossa região. Por outro lado, o Alentejo tem um grande interesse pelo outro. A alteridade, para nós, é um dado quotidiano, não há grandes problemas de integração e, sobretudo, há uma reação muito positiva à diferença. A diferença representa estímulo intelectual, afetivo e social.
São capazes de levar um grupo de ciganos húngaros a tocar em Ferreira do Alentejo e um grupo coral de negros da Geórgia a Vila de Frades, e tudo isto funciona com normalidade absoluta.
O Alentejo, pela sua grande paixão pela música, é muito recetivo a experiências culturais desta natureza. O facto de termos criado este modelo, que já dá provas de funcionamento, de termos um país convidado que dá uma coerência à programação, mostra que é possível estender pontes. Uma das lições que podemos tirar no Alentejo é que é um território onde podemos estabelecer laços e onde há espaço para todos.
Quem não o conhecia do Terras sem Sombra teve oportunidade de o ver nas televisões no incêndio de Notre-Dame, em Paris, a comentar o que estava em risco a nível patrimonial. Explique-me a sua formação académica.
Uma coisa que assumi aos 15 anos foi a influência dos professores no ensino secundário, que frequentei no Alentejo, mas o facto de ir quase todos os dias ao Museu Municipal de Santiago do Cacém e conviver com a pequeníssima equipa do museu deu-me consciência, muito cedo, de que queria ser historiador. E mais tarde percebi que queria que fosse na área da história da arte. O historiador de arte é historiador na sua formação global mas existe um conjunto de dimensões de carácter plástico, estético, filosófico, sociológico e psicológico que são fundamentais para completar a formação das ciências históricas de base. O que faço profissionalmente é no âmbito da história da arte, depois completei estudos na área da arquitetura.
A sua licenciatura é em História, mas o seu doutoramento tem a componente de Arquitetura.
Acabei por fazer estudos em Arquitetura. Essencialmente o meu trabalho foi direcionado para a área dos museus. Sou conservador de museu, é uma profissão que ainda existe mas que está um pouco esquecida. Fala-se na figura do museólogo e do curador, mas o antepassado mais direto é o conservador de museus, e ainda hoje nos quadros da função pública essa profissão existe.
Chegou a ser conservador de museus?
Sim. A minha vida profissional foi quase toda no âmbito dos museus. Comecei por trabalhar no Museu de Évora, depois na Casa dos Patudos, nos museus municipais de Alpiarça, um sítio a que continuo ligado, depois no Museu Calouste Gulbenkian e mais tarde tive a oportunidade, como responsável pelo departamento do património histórico e artístico da diocese de Beja, de organizar e montar oito museus, constituindo uma pequena rede museológica
No distrito de Beja?
Beja e Setúbal. Museus como Santiago do Cacém, Beja, o Museu Episcopal e o Museu do Seminário, o Museu de Arte Sacra de Moura, museus de Castro Verde, de Sines, de Grândola, de Cuba...
Esses museus têm um papel importante na conservação, mas trazem mesmo visitantes? Estamos a falar de localidades pequenas com pouco turismo e estamos a falar de uma temática muito fechada.
Os museus não se limitam ao acolhimento de público. São instituições muito completas na medida em que têm a obrigação de conservar o património, depois de o investigar e divulgar. E têm de o fazer em estreita relação com a comunidade que servem mas também com um público um pouco mais abstrato. É uma instituição admirável. Os museus modernos são uma criação do século XVIII, mas remontam à Idade Média.
Desses museus que ajudou a organizar, há um que se destaque?
Um museu que neste momento já não existe, o Museu Episcopal de Beja, que foi o resultado de muitos anos de investigação e trabalho e também de um grande envolvimento da comunidade, porque grande parte das peças do acervo resultaram não só de instituições públicas ou da própria igreja, mas de peças que foram cedidas por particulares. Voltando atrás, do ponto de vista profissional, preparei-me para ser conservador de museus, depois quando se está no terreno temos de fazer muitas outras coisas e acabei por me especializar no inventário do património arquitetónico e artístico. Além disso, tive de ter um trabalho estratégico na área da salvaguarda. Era tal o caos em que encontrámos o património religioso no Baixo Alentejo que foi necessário durante anos e anos fazer de tudo um pouco.
É errado dizer que o Alentejo é uma terra de pouco cristianismo?
O Alentejo é o território da religiosidade profunda, da religiosidade associada à sua dimensão antropológica e, por outro lado, onde o cristianismo mas também o judaísmo e o islão deixaram marcas profundas.
Nas pessoas? Na cultura?
Deixaram marcas até na cultura imaterial, mais do que na material, e além disso moldaram a nossa personalidade sobretudo numa vertente ecuménica em que de alguma maneira o alentejano tende a dispensar intermediários na sua relação com o sagrado e ao mesmo tempo é muito respeitador desta dimensão espiritual.
Dispensa a Igreja?
A Igreja e outras mediações. Há uma relação direta bastante mais completa do que se pode imaginar.
O alentejano é crente mas dispensa o padre, o bispo...?
Tende a dispensar e muitas vezes isto é visto como um sinal de anticlericalismo, quando na realidade pode ser uma manifestação de uma religião mais arcaica, mais profunda e menos esclarecida, mas com uma grande força.
Há pouco falou do islão. Olhamos hoje para o alentejano e percebemos que o consumo de carne de porco é quase para provar que não é muçulmano, o vinho faz parte do quotidiano... é possível identificar marcas que ficaram desses 500 anos de presença islâmica? No fundo são as mesmas pessoas: eram cristãos, passaram a ser muçulmanos e voltaram a ser cristãos.
E antes de ser cristão eram pagãos, essa palavra que hoje é difícil de entender. Mas no Alentejo até houve uma relação bastante fecunda com estas religiões mais ortodoxas e um fundo de neopaganismo que sempre se manteve. Do islão restam-nos testemunhos muito interessantes. Há uns anos, fazendo trabalho de campo em Santana da Serra, recolhemos um conjunto impressionante de orações antigas, com palavras de difícil identificação. Numa dessas orações fazia-se evocação a uma entidade que não conseguíamos identificar. A falar por casualidade com um arabista ele identificou que era uma das denominações dadas ao demónio na língua árabe. Isto significa que este legado perdurou entre nós de uma forma muito mais viva. O islão do Baixo Alentejo, como do Algarve, era diferente do que hoje conhecemos. Era um islão onde a poesia, a literatura, o culto do vinho e o culto da mulher tinham um papel muito grande. Havia também um legado antigo que perdurou e que o islão adaptou à sua realidade, e daí que tenhamos figuras tão fascinantes como a de Almutâmide, o rei-poeta. Ele nasceu em Beja e foi rei de Silves também. Independentemente da sua terra de naturalidade, é, para nós, uma figura tutelar. Muitas vezes sentimo-nos identificados com as suas palavras quando passamos um fim de tarde em Beja.
Aquele espírito que associamos ao Al-Andaluz é o espírito que está identificado no islão do Alentejo dessa época?
Sim, e um espírito que sobrevive, que ainda não mereceu um estudo pormenorizado - tem sido na vertente arquitetónica e arqueológica mas há muitas outras componentes que importaria explicar.
Há outro episódio da história do Alentejo fascinante que é as populações negras que foram levadas para o vale do Sado, para os arrozais, e que se misturaram de tal forma que hoje é impossível distingui-las, a não ser por um ou outro traço físico, e que culturalmente tornaram-se 100% alentejanos.
Esse é um fenómeno mais recente e mais conhecido. Na realidade, fixaram-se não apenas no vale do Sado mas noutros sítios do Alentejo. Historiadores como Jorge Fonseca têm estudado com pormenor esta realidade e hoje podemos detetá-la não apenas na sobrevivência de determinados dados genéticos mas até nas raízes da religiosidade. Por exemplo, o culto de Santa Efigénia ou de São Benedito de Palermo mostram bem como é que estas comunidades tinham força, poder económico, religioso e social. Na verdade elas fundiram-se, depois, neste grande caldeirão que é a nossa comunidade alentejana atual, mas alguma semiologia sua chegou até aos nossos dias. Por outro lado, há traços interessantes que nos remetem para o judaísmo, que teve uma importância entre nós, até porque não ficaram só algumas das comunidades mais antigas que aqui existiam - sabemos que os judeus precederam os cristão em Mértola e Beja, é um facto devidamente estudado e reconhecido -, mas por outro lado, quando se deu a expulsão em Espanha, muitas dessas famílias acolheram-se no Alentejo e conseguiram, mais ou menos discretamente, sobreviver entre nós. Isso, aliás, chegou aos nossos dias. Eu quando era criança era advertido, meio a sério, meio por brincadeira, para ter cuidado com as crianças de origem judaica porque dizia-se que tinham cauda.
O Alentejo tem essa capacidade de absorver e tornar todos alentejanos, que é uma coisa que também se pode aplicar ao resto de Portugal certo?
Sem dúvida, mas isso no Alentejo nota-se de uma forma muito peculiar, até pela nossa capacidade de assimilar esses novos alentejanos ao nível da língua, da gastronomia e dos próprios ritmos do quotidiano que são, se quisermos, uma deriva direta da natureza.
Essa chegada de populações estrangeiras ao Alentejo continua. Há muitas comunidades estrangeiras que estão a trabalhar na agricultura do Alentejo e, de uma forma ou de outra, vão fazer parte da dinâmica da região. Essas pessoas integram-se bem?
Integram-se muito bem e são, para nós, um contributo fundamental. O Alentejo luta com a dificuldade da sua baixa demografia. Todos os contributos, sobretudo quando pensamos que são pessoas que têm uma preparação académica e profissional elevada, que são pessoas que têm preocupações de ordem cultural e ambiental significativas... Desde o final de 1970 e na década de 1980 muita gente que veio da Europa do norte e ocidental, de países como a Noruega, a Bélgica, os Países Baixos, a Alemanha, o Reino Unido e a própria Irlanda. Temos também um contingente significativo de cidadãos de Leste, mas hoje cada vez mais chegam pessoas de outros continentes. O Brasil, por razões históricas, é muito evidente. O Brasil está a devolver o esforço populacional que nós lhe enviamos nos séculos XVII e XVIII. Tenho um grande orgulho nesta grande descoberta do Alentejo por parte do Brasil porque acho que há uma ponte histórica. Muitos brasileiros estão a fixar-se e há uma integração plena. Mas cada vez mais cidadãos que vêm de países como o Sri Lanka, a Índia, o Paquistão, as Filipinas...
Que vão para a agricultura...
E cada vez mais para serviços. Alguns deles são pessoas com formação na área da saúde, do apoio familiar e que são elementos muitos intervenientes na vida das nossas comunidades.
O que está a investigar agora?
Independentemente de ter sido interrompido o trabalho de salvaguarda do património religioso do Baixo Alentejo, continuei com todas as minhas investigações. Neste momento a minha grande preocupação é conseguir criar o centro UNESCO de Arquitetura e Arte, um conjunto de instrumentos bibliográficos muito importantes para o Alentejo. Há todo um manancial de conhecimento que importa partilhar. Isso era feito de uma forma regular, todos os anos se publicavam quatro ou cinco livros, organizavam-se exposições... havia uma grande difusão do património da investigação que estava na base desse trabalho. Neste momento procuramos continuá-lo através do centro UNESCO. A geração a que eu pertenço e aquela que me antecedeu e a que me sucedeu somos as últimas testemunhas de um Alentejo ainda ancorado na sua ruralidade e no que diz respeito à faixa litoral, muito ancorado nas suas atividades piscatórias tradicionais. Isso significa que temos a responsabilidade de conseguir manter a memória desse património, mas sobretudo ligá-la às novas gerações, evitar que exista um fosso demasiado profundo. Temos concentrado o nosso esforço nesse sentido. O Terras sem Sombra tem sido também uma alavanca neste trabalho.
Já falámos da Sara. Falámos também que estamos na casa lisboeta dos seus pais. Qual é a sua envolvente familiar?
A minha família, que já foi relativamente ampla, tem-se vindo a reduzir. Tenho apenas um filho, que é engenheiro, e como acontece a muitos jovens que têm esta especialidade, meteu um pouco na cabeça que só se podem realizar plenamente se trabalharem na Alemanha ou na Escandinávia, nos Estados Unidos ou no Canadá, e é o que ele tem feito. Trabalha numa multinacional e é feliz na sua profissão.
Tem laços fortes com o Alentejo?
Sim, mas naturalmente...
Que idade tem?
Tem 34. A sua vocação é cada vez mais europeia, já pertence a uma geração para a qual a Europa não tem fronteiras. Depois de eu ter feito a licenciatura, quis continuar os estudos e fui para o estrangeiro com uma bolsa da Gulbenkian, e tive de pedir licença ao Banco de Portugal para poder levar algum dinheiro estrangeiro. Estávamos num país profundamente fechado. Hoje fazemos parte de uma estrutura maior. Nalguns aspetos as coisas facilitaram-se, noutros estão mais difíceis, mas não há dúvida de que houve um salto epistemológico na maneira de conceber a nossa relação com o mundo e o nosso trabalho.
Tem irmãos?
Tenho dois irmãos. Sou o resultado de gerações consecutivas de pessoas que fizeram os seus estudos, depois a sua carreira no âmbito das Ciências Agrárias, no que tem que ver com o mundo rural, e eu saí dessa linhagem. Fui muito influenciado por um tio arquiteto. Sempre houve na minha família um grande interesse pelas questões artísticas, pela literatura e pela cultura internacional.
Diz que a sua família eram lavradores, mas lavradores que fizeram questão de que os seus filhos tivessem formação no estrangeiro e fora da lógica da terra?
É uma tradição muito antiga. Estudando um pouco as velhas bibliotecas de Santiago do Cacém encontrei alguns antepassados meus que na época de Buffon ou de Lineu compraram as obras editadas por estes especialistas. Já existia no Alentejo uma elite esclarecida que acompanhava o progresso científico dentro e fora do país e que procurava trazê-lo para o nosso território. No meu caso acabei por ser uma ave rara, na medida em que tive sempre uma tendência para ficar preso à terra. Rejeitei até ao último momento sair daquele território. Os longos anos em que vivi fora de Portugal usei-os...
Onde é que viveu?
Durante oito anos vivi em Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos. Como conservador tive oportunidade de estagiar em alguns museus e, por outro lado, consegui também integrar-me no mundo académico espanhol, o que me permitiu ter esta mundividência. Isto depois levou-me a procurar trazer para o trabalho que faço em Portugal essas realidades e estar atento a uma escala global. Muitas vezes temos a tendência para, perante um problema, improvisar, e a verdade é que grande parte das questões que se impõem no património cultural já estavam equacionadas noutras geografias. Um problema que estamos a enfrentar e que é dramático: o património religioso vive uma crise profundíssima. Grande parte dos nossos equipamentos religiosos correm o risco da redundância, ou seja, deixam de ser necessários no quotidiano para as suas funções tradicionais, que são o culto, a devoção e a assistência. O que fazer-lhes? Se não tivermos uma estratégia bem pensada, vamos enfrentar uma catástrofe nos próximos anos.
Choca-o que uma igreja possa vir a ser transformada num teatro ou numa livraria?
Não me choca. Choca-me, no entanto, que se meta a cabeça debaixo da areia e se procure empurrar um problema para um futuro que vemos incerto. A Igreja Católica está a viver uma crise sem precedentes, uma crise que considero de crescimento. Estamos numa encruzilhada, temos a possibilidade de nos fecharmos sobre nós próprios, e nesse caso vamos ficar redundantes, ou temos a coragem de nos abrir aos outros e aceitar que as regras do jogo, hoje, são diferentes. Os sinais dados por este Papa extraordinário apontam no sentido do acolhimento da diferença e na capacidade do diálogo, um bocadinho a uma escala universal. E por outro com uma atenção aos problemas objetivos da sociedade atual: sobrepopulação, mau uso de recursos, alterações climáticas, desigualdades que se vão acentuando. Isto permite pensar que o fenómeno espiritual vai ser muito necessário no futuro.
Está a imaginar que as igrejas que hoje estão vazias podem vir a ter um futuro na sua função tradicional?
Podem vir a ter. Mas falando das igrejas físicas, o património é de uma dimensão tal em países como nosso... Estamos a falar de cerca de 70% do universo do património cultural português. É um património cristão mas não é a Igreja o seu único detentor, também é propriedade do Estado, dos municípios, das regiões, de particulares e até de empresas. Não se pode compreender a história de Portugal e da Europa sem este património e que este património tem uma voz ecuménica, porque sob o património cristão temos o património judaico e islâmico. Estudando as igrejas de Mértola, encontram-se pessoas de idade e outras nem tanto que dizem "logo à tarde vamos à missa à mesquita". Compreende-se bem aqui...
Têm noção de que a atual igreja já foi uma mesquita...
E antes de ser mesquita já tinha sido uma igreja, e antes disso uma capela palatina, e ainda antes talvez um templo romano, seguramente um templo de culto imperial. Cá temos as grandes continuidades. O grande problema que se põe no Alentejo é quando os decisores que estão no terreno não compreendem a lógica da continuidade.
Quando fala de decisores não fala só de políticos, mas também da hierarquia da Igreja?
E também de empresários que se estabelecem entre nós, que olham para o território mas não compreendem a sua dinâmica social mais profunda. O facto de sermos poucos no Alentejo levou-nos a conseguir ter uma maneira de nos entendermos, de nos respeitarmos. Uma coisa que me orgulha no trabalho que fiz nos últimos 30 anos foi ter tido sempre um grande apoio de instituições que não seriam óbvias. Por exemplo, os municípios mais ligados ao PCP ou ao PS, a própria maçonaria que está implantada no nosso território, e depois pessoas que assumidamente declaram a sua condição de agnósticos, não crentes e ateus. Todos me disseram "se for para salvar um património regional, conte connosco". E todos estiveram no momento certo em que foi preciso um impulso. Fizeram parte da solução e não do problema. Isto é uma lição de tolerância que não consigo esquecer. Tive de fazer uma coisa que me mereceu enormes críticas mas que era da maior justiça: quando montei um destes museus e dediquei um espaço à época contemporânea, coloquei lá uma insígnia maçónica que foi encontrada entre o espólio pessoal de uma antigo cónego.
É um homem crente. O que é a religião na sua vida?
Por tradição familiar, sou católico. Sou crente mas sou crente numa linha de abertura. Penso que há muitas maneiras de se chegar a um determinado sítio e devemos respeitar essas diferentes opções. Por outro lado, penso que a espiritualidade, quando se vive fora de uma grande cidade, é uma coisa que emana da própria natureza. Mas compreendo também que haja pessoas que tenham ideias diferentes das minhas.
O respeito pelo outro, pela diferença: isto é uma maneira muito alentejana.
A noção da justiça social, uma certa tendência igualitária e, por outro lado, um bocadinho de bom humor.
Um lavrador também pode ter consciência social?
Convivendo com o quotidiano dos meus avôs, percebi cedo que ser lavrador, no Alentejo da tradição, implicava ter uma sensibilidade apurada para os problemas da terra, uma compreensão profunda dos segredos da natureza e uma consciência social diferente da de quem geria um banco ou mandava numa fábrica. A solidariedade não é, aí, uma palavra vã.
Além do Terra sem Sombras, como resume o que faz hoje, as tais investigações incluídas?
A transição de 2016 para 2017 trouxe uma mudança inesperada à minha vida. No Alentejo, a equipa do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, já com uma bela experiência de 33 anos de trabalho no terreno, estava a dar passos decisivos. Tinha-se acabado de devolver ao culto a Sé de Beja, antes uma quase ruína, requalificada com o apoio de peritos de arquitetura e engenharia das universidades do Porto e de Aveiro, sob a orientação de Augusto Costa, Miguel Marreiros e Aníbal Costa. A obra correu bem, tão bem que até me deram, na Alemanha, o título de Dombaumeister (algo como arquiteto conservador da catedral, segundo a denominação transposta pelo cabido de Beja). Finda a campanha da Sé, labutava-se afincadamente, em parceria com o Ministério da Cultura e os municípios, para evitar que soçobrassem dois edifícios classificados, a Basílica Real de Castro Verde e a Igreja de Santa Maria, de Serpa, ambas peças de referência do património nacional. Tinha sido possível obter para isso a colaboração de projetistas com larga experiência, liderados, respetivamente, pelos arquitetos João Favila Menezes e Paulo David. Eis quando entrou em funções um novo bispo em Beja. Uma das suas primeiras decisões, senão a primeira, foi a de extinguir o Departamento do Património e terminar a colaboração, que datava de há décadas, com a Cultura e o Turismo, as universidades e os politécnicos, a Gulbenkian...
Nota-se certa mágoa sua...
Não foi preciso grande tempo para se perceber o sentido desta repentina mudança, assim como o desejo de "insulação" face à sociedade envolvente. Regressei a Lisboa, voltando ao trabalho nos museus e no património cultural. São áreas em que me sinto como peixe na água e onde há projetos interessantes, em termos de inovação e trabalho em equipa. Quanto ao que ficou para trás, impressionou-me um bocadinho não só a estratégia de enclaustramento imposta na Diocese de Beja, fazendo tábua rasa da abertura desenvolvida, ao longo de muitos anos, pelos anteriores responsáveis, mas também a inexistência de um plano B para prosseguir a inventariação, a salvaguarda ou a dinamização do património do Baixo Alentejo. Estamos a falar de um território extremamente sensível deste ponto de vista e onde o apreço pela identidade é notório.
Mas a vida continuou.
Quase ao mesmo tempo em que isso ocorria, devido a uma coincidência que me assombrou, fui convidado por instituições museológicas de Espanha, França, Bélgica, Alemanha e Holanda para a vice-presidência, com a "pasta" das relações internacionais, de Europae Thesauri [associação europeia de museus], que tem sede em Liège. Um repto para alguém, como eu, que enquanto investigador, professor ou gestor trabalhou quase sempre na fileira dos museus e dos monumentos. E, alguns meses mais tarde, noutras circunstâncias, chamaram-me para representar Portugal no Comité Internacional dos Lugares de Religião e Ritual, recém-formado pelo ICOMOS [Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios, organismo consultor da UNESCO e da ONU]. Identifico-me bastante com os ideais da UNESCO, uma das instituições mais credíveis na área da mobilização da cidadania, pelo que aceitei também este repto. A partir das fileiras da interculturalidade, é possível construir pontes deveras úteis, em benefício de territórios de baixa densidade. Tenho aprendido imenso com estas experiências, que obrigam a sair da caixa e a dialogar com a diferença.