Quando entramos não vemos um restaurante, mas sim uma espécie de linha de montagem de refeições para entregar a quem mais precisa. O É Um Restaurante, da associação Crescer, foi realmente um restaurante na verdadeira aceção da palavra entre o seu lançamento em outubro de 2019 e março de 2020, quando Portugal e o mundo foram assolados pela covid-19. Mas mesmo com as mudanças a que a pandemia obrigou o É Um Restaurante continua a ser único: quem lá trabalha vem de uma situação de sem-abrigo ou grande vulnerabilidade..David Jesus é o chef executivo do projeto. Formou-se na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa há dez anos e passou pelas cozinhas do Penha Longa Resort, Sublime Comporta e Eleven, entre outras. Até que em setembro de 2019 decidiu mudar de vida. "Se eu tenho de fazer 12, 13 horas por dia para agradar a alguém ou porque queria praticar alta-cozinha, também posso fazer isto para ajudar outras pessoas, pensei 'este é o projeto que eu vejo que é a minha cara' e decidi parar essa parte da alta-cozinha de luxo e ajudar o próximo, dando formação e apoiando no dia-a-dia e tentando passar o pouco conhecimento que tenho", explica ao DN..O É Um Restaurante nasceu de uma parceria entre a Crescer, a Câmara Municipal de Lisboa e vários parceiros. A ideia inicial da autarquia era abrir um refeitório para pessoas em situação de sem-abrigo ou de grande vulnerabilidade, mas a Crescer tinha outra ideia em mente. "A associação ficou com o espaço, mas começou a construir um projeto e pensou que em vez de dar o peixe, vamos dar uma cana e vamos ensinar estas pessoas a pescar, vamos dar formação e uma profissão a estas pessoas em vez de meter comida na mesa", conta David Jesus..E assim o É Um Restaurante abriu portas junto à Avenida da Liberdade em outubro de 2019 e por lá já passaram duas turmas de formandos. Cada um deles tem 800 horas de formação: pessoal (ministrada pela Crescer), em técnicas de restauração na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e depois passam para o restaurante. O Instituto do Emprego e Formação Profissional paga parte da bolsa de formação.."Criámos uma carta em conjunto com o chef Nuno Bergonse e com a primeira turma, em que todos nós provámos e demos ideias. Eram quase petiscos, comida de conforto, era a nossa base, uma base também portuguesa e uma base a pensar na partilha. Estas pessoas que estão connosco - da primeira, da segunda turma, das próximas turmas - todas elas partilharam comida na rua ou em alguma situação da sua vida. Então resolvemos começar por aí", afirma o chef David Jesus. "Apesar de dizer na carta que nós éramos um projeto que queria empregar pessoas em situação vulnerável, tentávamos não falar nessa parte. Tentávamos servir boa comida, bons vinhos, ter um serviço simpático, que as pessoas se sentissem confortáveis neste espaço. Só no fim, por vezes, quando notávamos que havia mais disponibilidade por parte do cliente, explicávamos o conceito todo e as pessoas achavam espetacular, porque não estavam à espera da qualidade de serviço e de comida num projeto social deste género.".No primeiro ano do É Um Restaurante, das 47 pessoas que integraram a formação, 11 já estão a trabalhar, seis foram encaminhadas para estágios num dos restaurantes parceiros, 21 receberam tratamentos estomatológicos e 22 aderiram a consultas de especialidade. Nenhuma se encontra a dormir na rua..Amélia Almeida, de 42 anos, faz parte da segunda turma, e encontrámo-la a fazer o que descobriu gostar: de volta dos tachos. Por causa da pandemia, grande parte da sua formação já foi com o restaurante de portas fechadas. Mas não deu a experiência por perdida. "Eu gosto de cozinhar, sinto-me bem, e senti-me bem aqui a fazer comer para o pessoal da rua, porque eu também já estive na rua, porque já passei necessidades. Eu conheço esses meios todos e para mim foi uma benesse, uma dádiva, eu poder contribuir com o pouco que eu sei, porque é o máximo que posso fazer por eles. É estar aqui a fazer aquilo que me ensinaram para eles, para eles terem comida quente, um conforto. Chegámos a ir dar, nós pessoalmente como voluntários, e ver o ambiente... também choca, não é? A gente ver aquilo que já passou. E a mim parte-me o coração.".Com um passado de toxicodependência, mas sem consumir já faz uma década, Amélia sentia-se como se tivesse parado no tempo. Até que em 2017 resolveu agarrar o seu destino: tirou o 9.º ano, tirou um curso de jardinagem e até um de geriatria, mas esta última experiência não correu bem - "tive uma depressão porque não gostei da maneira como tratam os idosos, foi complicado, é complicado trabalhar em lares". Até que um dia se cruzou com Américo Nave, o diretor executivo da Crescer, que lhe contou como podia entrar no projeto do É Um Restaurante. "Ressuscitei para a vida, eu estava encalhada. Fazia uma formação, acabava a formação e ia para casa, estancava. Arranjava um trabalho um mês ou dois, tinha algum dinheiro na mão, já dava para o tabaco, estancava", conta..Com o seu período de formação quase a acabar, Amélia Almeida mostra boa disposição em relação ao futuro, apesar de não saber o que este lhe reserva. "O meu futuro? Se eu soubesse dizia-lhe os números do euromilhões, não acha? Assim ganhávamos todos", afirma. "O meu plano é trabalhar. Nem que seja a lavar pratos. Ficar em casa já não é opção", garante, num tom mais sério..Com a chegada da covid-19 a Portugal em março, o número de reservas começou a baixar, tanto de clientes portugueses como de turistas. As opções eram fechar portas e apostar no take-away ou fazer comida para quem realmente precisa. Apostaram na segunda. "Começámos, numa fase inicial, a fazer 300 refeições por dia, chegámos às 500, 600, sete dias por semana, com 19 formandos, e a associação a fazer a distribuição, porque a associação já sabia onde estavam estas pessoas e quais eram as pessoas que necessitavam de alimentação. Até que em agosto deixámos de poder continuar com tantas refeições, porque o nosso número de formandos diminuiu, felizmente conseguimos colocá-los, e o nível de doações também baixou bastante, deixámos de ter tantos apoios", afirma o chef David Jesus, adiantando que atualmente apenas 10% a 20% dos alimentos que confecionam têm origem em donativos. "A média agora é entre 230 e 250 refeições, cinco dias por semana, de segunda a sexta-feira.".As refeições que David Jesus, Amélia e os restantes formandos preparam são entregues pela Crescer na Pousada da Juventude do Parque das Nações (onde a câmara instalou desde o início da pandemia um centro de emergência) e no Cais do Gás, um local onde há muitas pessoas identificadas. "E depois temos pessoas identificadas pela Crescer que vêm buscar refeições à porta do restaurante", acrescenta o chef executivo do É Um Restaurante..O plano é continuar a confecionar estas refeições, mas já a pensar na reabertura do restaurante e na terceira vaga de formandos. Para isso contam com os 30 mil euros do primeiro lugar da edição de 2020 do Prémio AGIR da REN, atribuído em meados de dezembro ao É Um Restaurante. "Vamos aplicar esse financiamento na nova turma, tanto a nível de fardas como de produtos que sejam necessários para a formação. Vamos aplicar também esse prémio na requalificação do espaço, que teve um desgaste imenso, para podermos voltar a abrir no verão, espero eu. E vamos ter de usar esse prémio na operação, para mantermos a nossa iniciativa viva", explica David Jesus, resumindo em poucas palavras a importância do projeto. "Eles hoje em dia sentem que são muito mais válidos e têm mais coragem, têm mais confiança em si mesmos e já sorriem e já querem trabalhar. Apenas querem o seu salário, querem ser independentes financeiramente e querem ter uma habitação. Todos os que passaram por aqui nós conseguimos colocá-los nessa situação, o que torna tudo muito gratificante, tanto para nós como para eles."