"No Conselho da Europa somos todos iguais, não importa se é a Rússia, a Turquia, a Noruega ou Portugal"
Veio a Lisboa para a cerimónia de entrega do prémio Norte-Sul. Este ano os vencedores distinguiram-se na luta contra a pena de morte e no combate às alterações climáticas. O que levou o Conselho da Europa a escolher estes dois temas?
No que se refere à pena de morte, este é um assunto de importância fundamental para toda a Europa, para todos os nossos Estados-membros. Orgulho-me de dizer que a pena de morte está abolida nos 47 Estados-membros. Não se pode ser membro do Conselho da Europa se praticar a pena de morte. Essa é uma das razões pelas quais a Bielorrússia não é membro, para além de outras relacionadas com a atual situação no país, que é muito difícil. Quanto às alterações climáticas, também é uma questão fundamental para a Europa neste momento. Por isso foi brilhante terem escolhido estes dois temas para os vencedores do prémio. Muita gente na Europa sente que a questão das alterações climáticas é aquela que temos mesmo de resolver agora. E no Conselho da Europa também estamos a trabalhar nesta matéria. Em primeiro lugar, temos o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que desenvolveu uma importante lei sobre direitos humanos e ambiente. Também fizemos uma publicação que junta toda a legislação sobre este assunto, uma espécie de manual para a levar ao público em geral. Estamos também a rever uma convenção sobre o combate às crises ambientais. E temos peritos dos 47 países a negociar uma recomendação do comité de ministros, que junta os embaixadores de todos os Estados-membros, sobre Direitos Humanos e ambiente. Espero que essa recomendação possa ser adotada no próximo ano. A mais longo prazo, há propostas para fazermos uma convenção estruturante que defina os princípios fundamentais e seja uma plataforma para a cooperação ambiental entre os vários governos. Sobre a questão da pena de morte, ainda não a resolvemos e é preciso recordar isso aos governos.
O clima é um assunto que está na ordem do dia e do qual todos falam, mas sente que na Europa por vezes nos esquecemos que é preciso lutar contra a pena de morte?
Sem dúvida. Por vezes aqui na Europa esquecemos o quanto somos privilegiados. O sistema que construímos na Europa é único - protege os direitos fundamentais de todos os cidadãos. Temos a Convenção Europeia dos Direitos Humanos que define claramente os direitos fundamentais, os seus direitos humanos e os meus. Mas além disso, temos um tribunal que garante que esta convenção protege os indivíduos e é implementada em todos os países europeus. Isto não existe em mais nenhum sítio do mundo. Fazemos ainda a monitorização dos países e oferecemos assistência a quem precisa. A Convenção Europeia está aí para nos proteger a todos. E é um sistema dinâmico, em que vão aparecer novas convenções em assuntos-chave. É todo um sistema de convenções que nos protege hoje. Mas, por vezes, as pessoas não sabem e dão esta proteção como garantida. O mesmo se passa com a pena de morte. Há alguns grupos políticos que querem voltar a discutir o assunto, há pressões nesse sentido em alguns países. Mas é uma questão de importância fundamental para todos nós na Europa. Não podemos recuar nesta grande conquista dos nossos tempos.
Veio também a Portugal para o Fórum Lisboa. Este ano o tema foi a desinformação e como a pandemia veio aprofundar esta desinformação e os discursos de ódio, alimentados também pelas redes sociais. É um desafio que exige a cooperação de todos os membros do Conselho da Europa?
Temos procurado lidar com a questão. Temos a campanha contra o discurso de ódio e temos tentado encorajar os Estados-membros a lidar com este problema. Neste momento queremos centrar-nos na parte ligada à Internet porque tem havido muitos abusos on-line no que se refere ao discurso de ódio. É essencial lidar com este problema e temos várias iniciativas nesse sentido.
A tecnologia evolui tão rapidamente que as leis dos países não estão a conseguir responder à mesma velocidade para travar os abusos cometidos na Internet?
De certa forma sim. Temos a Convenção de Proteção de Dados, a Convenção sobre Cibercrimes que estamos a atualizar com um novo protocolo. Temos trabalho a ser feito nesta área. E não estamos sozinhos, a União Europeia também está a desenvolver iniciativas nesta área. Temos de trabalhar juntos, Estados e várias organizações internacionais, para resolver um problema que tem escala global. Tudo isto veio contrariar as expectativas que tínhamos em relação à Internet quando surgiu esta ferramenta magnífica que nos deu acesso a tanta informação, mas cujos aspetos negativos estamos agora a ver.
Que papel tem um pequeno país como Portugal no Conselho da Europa?
Portugal tem um papel muito importante. Eu admiro Portugal por estar na linha da frente no combate pelo multilateralismo.
O nosso passado e a relação privilegiada que mantemos com países nos vários continentes ajuda?
Sim, sim. Isso vê-se na ONU - nem preciso de elaborar, têm o secretário-geral António Guterres -, viu-se durante a vossa presidência do Conselho da União Europeia e vê-se no Conselho da Europa. Portugal assumiu a liderança, por exemplo, na luta contra a pena de morte. É sempre Portugal que se chega à frente e levanta as questões durante os debates. O mesmo se passa no Pompidou Group, que lida com o combate às drogas e toxicodependência na Europa, e é presidido por Portugal. Vê-se na Comissão de Igualdade de Género - um assunto importante na Europa neste momento - que é liderada por Portugal. Há muitos exemplos do papel importante de Portugal no Conselho da Europa e em vários aspetos do nosso trabalho. Todos beneficiamos disso. No Conselho da Europa temos um princípio: somos todos iguais. Cada Estado-membro tem uma voz, tem um voto, não importa se é a Rússia, a Turquia, o Reino Unido, a Noruega ou Portugal. Somos todos iguais. E temos de o ser! Porque estamos a lidar com questões em que não pode haver tratamento preferencial de nenhum país.
Já voltamos a esse equilíbrio delicado de gerir 47 Estados-membros, mas estávamos a falar de desafios à Europa e não podemos deixar de falar da crise migratória. Como é que a Europa pode lidar com a chegada destas pessoas às suas fronteiras e evitar que os seus vizinhos as usem como arma política?
É um enorme desafio para toda a Europa. Temos lidado com toda esta crise dos refugiados recentemente, de forma contínua e em várias fronteiras. No Conselho da Europa o nosso papel é lembrar aos Estados-membros que no momento em que um refugiado ou migrante põe o pé em solo europeu, está sob proteção da Convenção Europeia. Não é preciso ser cidadão europeu para ter essa proteção. Há padrões para lidar com estes refugiados e é isso que temos de recordar aos Estados-membros. Não temos nenhum papel na receção aos refugiados, nem no controlo fronteiriço - essas questões estão a cargo de outras instituições. O nosso dever é lembrar aos nossos membros que têm de lidar com estas pessoas de acordo com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que há padrões a aplicar. Temos também um representante especial do secretário-geral para as migrações e refugiados que tem viajado muito. Esteve na Grécia, nos campos de refugiados e falou com as autoridades gregas, esteve também na Turquia. É um assunto que está na agenda da organização.
Imagino que as reações dos países aos vossos alertas sejam diferentes...
Sim, porque há países com perspetivas diferentes. Mas o que nós queremos é mais solidariedade europeia. Porque esta é uma situação muito difícil para a Grécia, para Itália, para a Polónia, Lituânia e para muitos outros países que estão a lidar com esta pressão.
O Conselho da Europa foi fundado em 1949 com o objetivo de promover os direitos humanos, a democracia e o Estado de Direito na Europa. Tem 47 Estados-membros. Como é que se equilibra uma organização que acolhe, só para dar alguns exemplos, desde a Islândia à Turquia, da Rússia ao Montenegro?
Em primeiro lugar temos de olhar para o Conselho da Europa como uma plataforma para o diálogo. E nisso é único, porque é pan-europeu. É como disse: vai da Islândia a Vladivostok e do Norte da Noruega até Chipre. É uma plataforma essencial de diálogo sobre assuntos fundamentais para a sociedade - proteção dos direitos humanos, democracia e Estado de direito, a forma como todo o nosso sistema judicial funciona. Neste sentido é um grupo diverso mas temos algo em comum e isso reflete-se na forma como todos os Estados-membros concordam com os direitos fundamentais e princípios na Convenção. E também na forma dinâmica de desenvolver novas convenções noutras áreas. A nossa diversidade no Conselho da Europa é também a nossa força. Porque quando este grupo diverso concorda numa coisa, é um documento muito sólido.
Como é que lidam com a Rússia sobretudo num momento como este que vivemos agora com todas as tensões em torno da Ucrânia?
Depois de 2014, da anexação ilegal da Crimeia pela Rússia e dos desenvolvimentos no Leste da Ucrânia, não há dúvida que a situação no Conselho da Europa tem sido mais tensa e complexa. Dito isto, a Federação russa é um membro de pleno direito do Conselho da Europa, participa ativamente em todo o trabalho intergovernamental da organização, em todos os comités de peritos, em todas as reuniões do comité dos ministros, na assembleia parlamentar. Claro que, como todos os países, a Rússia pode ser sujeita a críticas. É assim que funcionamos no Conselho da Europa. Estamos numa posição em que podemos confrontar-nos uns aos outros, levantar as questões que nos preocupam e fazer críticas. Mas também trabalhamos para ajudar os Estados lidarem com falha que identifiquem. Há um ano o secretário-geral esteve na Federação russa e teve uma série de encontros, eu também estive lá numa visita bilateral no mês passado. Há um grande interesse por parte da Federação russa para desenvolver a cooperação em áreas específicas e no Conselho da Europa também. É importante manter esta plataforma de diálogo e cooperação com todos os Estados da Europa. O princípio fundamental é que o Conselho da Europa devia ajudar, ser uma plataforma para o diálogo, também nestes assuntos difíceis. Podemos oferecer a nossa experiência, a nossa perícia a Estados-membros que precisem. Em vários deles temos um gabinete, um plano de ação com programas e projetos específicos de cooperação. Não nos limitamos a criticar, também oferecemos a nossa perícia.
Sem hesitar em criticar quando algo está mal, mas tentando concentrar-se no terreno comum?
Ambos, sim. Há sempre um certo grau de consenso, mas por vezes é preciso confrontar e criticar. É o papel da organização e fazemo-lo regularmente.
Rússia e Turquia são os principais pontos de tensão?
Quanto à Federação Russa, há certos assuntos, como já disse, que têm sido levantados - a legislação sobre agentes estrangeiros é muito problemática que se refere à sociedade civil, aos media, há um caso agora muito importante que tem a ver com o julgamentos opositor Alexei Navalny. Quanto à Turquia, tem havido problemas com alguns julgamentos importantes. Temos o caso contra o defensor dos direitos humanos Osmar Kavala. Recentemente o comité dos ministros decidiu que o próximo passo é recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para saber a sua opinião se as autoridades turcas executarem o julgamento contra Kavala. É uma medida muito forte que só foi usada uma vez antes. Portanto, há alguns desafios com os quais estamos a lidar no Conselho da Europa. Ao mesmo tempo há diálogo com as autoridades turcas e com as autoridades russas, como há com todos os Estados-membros.
Com Joe Biden na presidência, a relação com os EUA está mais próxima?
Sim. Vemos agora que os EUA voltaram a comprometer-se com o multilateralismo, com a cooperação internacional. E esse é o nosso cerne. Os EUA são um país observador no Conselho da Europa e estão ativamente envolvidos em certos aspetos da cooperação. Contribuem ativamente, por exemplo em áreas como o combate ao cibercrime, a inteligência artificial, Internet governante, anti-corrupção, etc. Com Biden esta cooperação foi re-energizada.
helena.r.tecedeiro@dn.pt