Estamos a sofrer como cães, mas continuamos a lutar", disse, na sua última mensagem de WhatsApp a um colega, o jornalista espanhol Roberto Fraile, 47 anos, assassinado, na passada segunda-feira juntamente com o seu companheiro de reportagem, David Beriáin, de 43, e o ativista irlandês Rory Young, numa reserva natural do Burquina Faso. Os factos são conhecidos: os dois jornalistas espanhóis, integrados num comboio militar de 40 soldados que patrulhavam o parque natural de Arly, junto à fronteira com o Benim, foram vítimas de uma emboscada da Frente de Apoio para o Islão e para os Muçulmanos, vinculada à Al Qaeda e com base no vizinho Mali, que, aliás, reivindicou a autoria do atentado na internet..Beriáin e Fraile estavam a trabalhar num documentário sobre a caça ilegal na região do Sahel enquanto fonte de financiamento de organizações terroristas e conheciam bem os perigos a que estavam expostos. Como ao longo desta semana testemunharam diversos jornalistas que com eles trabalharam, há muito que seguiam o mote de outro repórter mítico, Ryszard Kapuscinski, no livro-reportagem Mais um Dia de Vida, Angola 1975: "É incorreto escrever sobre as pessoas sem passar um pouco pelo que elas estão a passar.".David Beriáin, nascido em Artajona, Navarra, em 1977, cedo começou a sua carreira de correspondente internacional, primeiro num estágio na Argentina (no jornal El Liberal). De regresso a Espanha, trabalhou depois no La Voz de Galicia, para o qual cobriu a segunda guerra do Iraque, mas também em conflitos no Afeganistão (nomeadamente onde operavam tropas espanholas), Congo, Líbia e Sudão, tendo sido um dos poucos repórteres autorizados a entrar num acampamento das FARC, na Colômbia. Já em televisão, ficaria célebre a sua reportagem do desastre nuclear de Fukushima, em 2011. No Voz de Galicia, o seu antigo colega Paco Sanchez recordou quão cedo David começou a sofrer ameaças dos poderes instituídos: "Nos últimos anos de curso estagiou no El Liberal, principal diário da cidade mais antiga da Argentina, Santiago del Estero. Ao terminar, ingressou na redação. Rapidamente se tornou incómodo para o governador daquela província e começou a receber mensagens intimidatórias. Tinha só 22 ou 23 anos. Um dia contou-me que lhe tinham pedido uma entrevista e acedeu a encontrar-se com alguém num bar. O seu interlocutor contestou os seus artigos enquanto, sem olhar para ele, desenhava num guardanapo. No final, entregou-lhe o desenho: era a planta detalhada da casa onde David vivia." Como não se resignou ao silêncio, acabou por voltar a Espanha e foi aí que começou a trabalhar na secção internacional do La Voz de Galicia..Em 2012 fundou a sua própria produtora de documentários, a que deu o nome de 93 Metros, explicando que essa era a distância que separava a casa da sua avó do mercado e da igreja, o pequeno mundo em que ela se movia. Numa entrevista à revista da Universidade de Navarra, em que se formara, dizia: "Chamamo-nos assim porque não esquecemos nunca que às vezes a história maior está no lugar mais pequeno. Fazemos histórias grandes, épicas, dessas que importam, em lugares exóticos. O que se passa é que para os imbecis como eu torna-se mais evidente contar uma história quando tudo explode ao nosso redor. Não há histórias pequenas, há olhos pequenos. À minha mãe bastaram 93 metros para encontrar a sua verdade. Eu já andei por mais de 93 países e ainda não consegui fazer nada." Assinou então um conjunto de documentários de grande sucesso que foram transmitidos pelo canal Discovery com o nome genérico de Clandestino (em que se incluíram episódios sobre a caça ilegal de rinocerontes por causa do tráfico do seu corno, a que algumas culturas atribuem poderes medicinais, ou sobre o exército perdido da CIA), mas também foi atrás da dura vida dos pescadores de percebes na costa galega com uma reportagem intitulada Perceberos..Seria, aliás, através da produtora 93 Metros que os destinos de David Beriain e do operador de câmara Roberto Fraile se cruzariam, juntando-os em parceria como autores de vários documentários, quase sempre no fio da navalha. Roberto, nascido no País Basco em 1974, escapara à morte em 2012, em Alepo, Síria, quando foi metralhado. Segundo os colegas, estava perfeitamente consciente dos riscos que corria: "Nós, os que estamos metidos nisto, sabemos com que podemos contar." Licenciado em Geografia e História pela Universidade de Salamanca, pai de dois filhos, "era", segundo escreveu Luís de Vega no El País, "raro vê-lo intranquilo ou nervoso. O medo nunca se sobrepunha ao profissionalismo. Era-o até à exaustão. Aguentava semanas e semanas em missões duríssimas sem uma queixa e dava ânimo aos companheiros quando a moral fraquejava ou a coisa se complicava. Nesses momentos apertados, era capaz de atirar um golpe de humor que aligeirava tensões. E se alguém tinha que tratar do colega que apanhou covid no meio de uma reportagem, aí estava ele, como ocorreu no final do ano passado na Colômbia"..Sobre a parceria dos dois, Alberto Rojas escreveu no El Mundo: "Ambos formavam uma equipa de lenda. Juntos realizaram os melhores documentários da televisão atual. Convém esclarecer que não eram os melhores pelas suas manchetes, às vezes atropeladas, nem pela qualidade das imagem, nem por uma montagem mais ou menos artística. Eram os melhores porque o seu trabalho estava cheio de verdade, algo que começa a escassear. Nos seus documentários na selva, David sempre levava a camisa suja e suada. Não era um ator.".Avessos a tornarem-se eles próprios notícia, seguiam mundo fora mas não esqueciam o que deixavam em Espanha. Antiga estagiária da Voz de Galicia, hoje jornalista do El Pais, Natalia Junquera testemunhou neste jornal os tempos em que lhe cabia receber as mensagens de David Briáin, sempre enviado para um qualquer cenário de guerra: "David telefonava-me para ler as suas crónicas, que eram sempre perfeitas: com todos os dados e a emoção que faz falta para que a milhares de quilómetros o leitor compreenda exatamente o que significam. Combinávamos títulos, davamos o OK ao texto e punhamo-nos a falar durante horas de outras coisas. Tanto fazia que estivesse no Afeganistão, no Iraque ou prestes a meter-se num acampamento das FARC: resolvido o jornalismo, começava o consultório sentimental. David tinha muitas coisas boas, mas a melhor, sem qualquer dúvida, era um bom par de orelhas. Como os bons jornalistas - nunca conheci um melhor -, ele queria entender e para isso há que saber escutar." Segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras, em 2020 foram assassinados 50 jornalistas em todo o mundo. Por terem visto ou escutado demais..dnot@dn.pt