No Brasil há lista de espera para pulseira eletrónica

Amigo de Temer furou a fila. Fabricantes não dão conta da procura. Poderosos da Lava-Jato cumprem pena em mansões e fazendas.
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No dia em que Rodrigo Rocha Loures, o amigo do presidente da República Michel Temer apanhado a fugir de um restaurante com uma mala cheia de dinheiro, foi preso, o Palácio do Planalto tremeu: detido numa cela sem condições mínimas e com a mulher grávida de oito meses, o assessor especial e amigo íntimo de Temer poderia decidir contar tudo o que sabe aos investigadores em troca da liberdade. Mas, semanas depois, o mesmo Planalto respirou de alívio: as autoridades permitiram que Loures cumprisse pena em casa, desde que vigiado por uma tornozeleira eletrónica (em Portugal chama-se pulseiras eletrónicas). O caso, porém, levantou enorme controvérsia em torno do uso e distribuição do equipamento.

Soube-se mais tarde que, à medida que as investigações da Operação Lava-Jato e de centenas de outras ações policiais menos mediáticas prosperam, as tornozeleiras eletrónicas tornaram-se um bem com mais procura do que oferta - e um objeto de desejo para toda a população carcerária brasileira. Então como é que o amigo de Temer obteve o produto tão facilmente? "Pela primeira vez na minha gestão, desde março de 2016, recebi um pedido do Departamento Penitenciário Nacional [sob a tutela do Ministério da Justiça] nesse sentido", disse ao jornal O Globo Victor Gragalzew Junior, superintendente de administração penitenciária de Goiás a quem foi requerida, com urgência, uma tornozeleira para Loures.

O potencial delator de Temer passou assim à frente de um traficante de maconha, de um grupo de empresários que lesou centenas de clientes em pacotes de viagens e de um marido que ameaçou a mulher de morte, entre outros cerca de quatro mil presos na fila de espera pelo equipamento. "Há indícios claros de favorecimento indevido", disse à revista Veja o promotor público Fernando Krebs, que entrou com pedido na justiça para recolher a tornozeleira de Loures.

Enquanto os contornos políticos e jurídicos do caso aguardam os trâmites, há consequências económicas: apesar da crise generalizada no Brasil, os fabricantes de tornozeleiras celebram. Na cidade de Campinas, a maior produtora de um dispositivo que funciona, grosso modo, como um GPS de automóvel, investiu pesado numa máquina que pode fabricar mil unidades por dia. Em Manaus, uma concorrente produz 50 mil ao ano e vem multiplicando a faturação. O problema é que os clientes - os 26 estados do Brasil - atrasam os pagamentos das tornozeleiras por causa da tal crise e deixam o produto, tão procurado, parado em armazéns. O Rio de Janeiro, por exemplo, não paga há 15 meses. Piauí e Goiás, o estado que se dispôs a oferecer uma tornozeleira ao homem do presidente, são os outros principais devedores.

Entretanto, há tornozelos e tornozelos: os mais famosos clientes das tornozeleiras são, como agora Loures, alguns dos condenados da Lava-Jato, a quem é permitido no máximo afastar-se 50 metros de casa. Mas nalguns casos essas residências são de luxo: por exemplo, Delcídio do Amaral, o ex-senador do PT condenado por ter sido gravado a tramar a fuga do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, usa a tornozeleira na sua vastíssima fazenda na região do Pantanal, no Mato Grosso do Sul. Cerveró, que desviou no mínimo 35 milhões de euros da petrolífera, está proibido de sair de um condomínio verdejante de nove casas num bairro nobre de Petrópolis, no Rio, onde é vizinho do ex-colega de emprego Paulo Roberto Costa, que segundo a acusação roubou 100 milhões de euros da empresa. Fernando Baiano, o operador que arrecadava fundos para o PMDB de Temer e Loures na Petrobras, vive com a tornozeleira, é verdade, mas numa penthouse de 800 m2 na exclusiva Barra da Tijuca, no Rio. E ainda há o caso do próprio Loures, que pôde graças a um pedido especial de um órgão governamental trocar uma penitenciária suja em Brasília pelo conforto da sua mansão no Paraná.

São Paulo

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