Nikos Kazantzakis, um intelectual de alma selvagem
"Ensina-me a dançar. Ensinas?" Anthony Quinn, na pele do inesquecível Zorba, responde a Alan Bates: "Dançar? Disseste dançar? Anda, rapaz." Então entra a música de Mikis Theodorakis e o resto já se sabe. Dançam. Zorba ri, transborda vida. A última cena do filme Zorba, o Grego, de Michael Cacoyannis, a partir da obra homónima do escritor grego Nikos Kazantzakis (1883-1957) é talvez uma boa porta para a sua extensa obra.
O documentário A obra, acima de tudo, exibido na quinta-feira na Fundação José Saramago, revela um retrato do escritor através de um mosaico composto por vários testemunhos. Um deles, Georgios Stasinakis, presidente da Associação Internacional de Amigos de Kazantzakis, diz: "Kazantzakis queria ser como Zorba. Mas não podia. Ele era um intelectual. Mas no fim, se se lembrar do livre ou do filme, ele tira o casaco e dança. É aí que acontece a fusão entre Zorba e Kazantzakis."
O encontro real com George Zorba, um camponês mais velho, mineiro, de grande sabedoria e com quem Kazantzakis estabeleceria uma relação de forte amizade, foi determinante para o escritor.
No filme, produzido pela televisão pública grega EPT, ouvimos Kazantzakis nas suas próprias palavras, a que dedicou a sua vida. Diz que não é um intelectual. Antes, "uma alma selvagem".
Quem foi então aquele homem que escreveu poesia, romances, ensaios filosóficos, guiões, livros de viagens, e traduziu clássicos como A Divina Comédia de Dante ou o Fausto de Goethe? O pintor Roussetos Panayotakis descreve-o como "uma corrente elétrica". "Andava sempre com um chapéu de chuva e um livro ou jornal debaixo do braço", diz ainda, trazendo à memória a sua imagem.
Nikos Kazantzakis nasceu em Creta durante o período de revolta contra o Império Otomano. Viveu uma vida repleta, com incontáveis viagens, que alimentaram a sua escrita, aguçando o seu olhar dirigido ao Homem como igual na essência em cada canto do mundo. Todavia, talvez nada como a Grécia natal tenha alimentado as suas histórias.
"Ele abria as asas por todo o mundo e usando apenas lendas locais, que normalmente diriam algo apenas para ao nativos de Creta, como o capitão Michalis ou Zorba, o Grego, conseguia enfatizar os aspetos universais, e criar um universo acessível a toda a gente, em todo o lado", afirma o escritor Nikos Chrissos.
"No universo romancesco, nomeadamente no Cristo Recrucificado, há um conjunto vasto de personagens-tipo que também são universais mas sem nunca deixarem de ter uma componente muito evidente de ligação à terra cretense. Aliás, Kazantzakis é primeiro que tudo cretense, e depois grego e universal", diz ao DN o neohelenista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa José António Costa Ideias.
"As personagens são universais, sobretudo na tentativa de conquista da liberdade, que é tão importante para Kazantzakis, é por isso que é tão importante o aspeto coletivo. Ele dá grande relevo às massas, ao coletivo. mesmo no teatro há essa dimensão", continua o também presidente da seção portuguesa da Associação Internacional de Amigos de Kazantzakis desde 1998.
Autor de obras como Cristo Recrucificado, O Bom Demónio, Liberdade ou Morte, A Última Tentação de Cristo (adaptada ao cinema por Martin Scorsese) ou Carta a Greco, publicadas em Portugal por editoras como a Portugália e a Ulisseia, sobretudo em traduções a partir do francês, hoje é praticamente impossível encontrar Kazantzakis em Portugal.
O panorama poderá mudar num futuro próximo, resultado de um projeto de tradução de Costa Ideias com a editora E-Primatur.
Por agora, é difícil aos leitores portugueses terem acesso ao tom de inquietude que domina e atravessa a obra do escritor grego, tom que muitas vezes tem Deus no centro.
A esse propósito, Georgios Stasinakis foca o protagonismo da liberdade na sua vida e obra: "Liberdade em todos os aspetos: política, religiosa, social, económica. A liberdade era algo mais do que uma teoria para ele. Deus era liberdade."
Kazantzakis aproximou-se do socialismo, mas pedia tanto a bolcheviques como a fascistas que eliminassem o seu nome dos seus livros: "É absolutamente contra a minha natureza pertencer a um gangue ou a uma multidão."
"Há nele uma tentativa em parte conseguida de síntese. Kazantzakis percorre várias linhas, várias áreas, aproxima-se de várias correntes, como o Cristianismo, mas também o Budismo, o Marxismo... Essa ânsia de conhecimento e de liberdade leva-o a contactar e até abraçar pontualmente estes ideiais", afirma Costa Ideias.
Na dimensão espiritual do autor, explica ainda o neohelenista, está em causa não tanto a "religião no sentido convencional do termo", organizada, mas "uma procura incessante pelos limites do próprio homem". Rejeitado por alguns cristãos, a relação com a Igreja foi, aliás, problemática até ao final da sua vida.
Depois de recusarem que o seu corpo estivesse na capela da Arquidiocese de Atenas, Kazantzakis foi levado para Creta, onde o arcebispo celebrou a missa fúnebre. Todavia, nenhum membro do clero queria estar no enterro, por medo das reações. Acabou por fazê-lo um padre militar num funeral onde estiveram milhares de pessoas e onde até à manhã do dia seguinte a sua vida foi celebrada.
"Hoje em dia na Grécia está a operar-se uma recuperação e reavaliação crítica da sua obra, sobretudo no meio académica, mas também na opinião pública", explica Costa Ideias. Por cá, falta agora que a língua portuguesa também o resgate.