Marcelo Gallardo, 43 anos, mudou a história do River Plate. Desde 2014 no cargo, o treinador argentino conseguiu recuperar o histórico clube de Buenos Aires do trauma sofrido com a inédita descida à segunda divisão argentina em 2011. Sob o comando de El Muñeco, como é conhecido, os milionários conquistaram seis títulos continentais - duas Taças dos Libertadores, uma Taça Sul-Americana e três Supertaças. E neste sábado (20.00) tem a oportunidade de somar mais uma Libertadores ao currículo, na final contra o Flamengo de Jorge Jesus. Ele é a alma do River Plate, o Napoleão, como é carinhosamente tratado devido à sua liderança e à baixa estatura..Filho de um pedreiro e de uma auxiliar de idosos, a carreira de Gallardo como futebolista (atuava médio ofensivo) foi quase toda passada no River Plate, clube onde começou e pelo qual teve três passagens (jogou também, entre outros, no Mónaco e no PSG). No seu último ano de carreira como profissional de futebol representou o Nacional, do Uruguai, e quando pendurou as botas ofereceram-lhe o cargo de treinador. Aceitou..Logo na época de estreia sagrou-se campeão uruguaio, em 2012, mas depois decidiu fazer uma paragem. Uma pausa com um único objetivo: preparar-se para treinar o seu clube de sempre, o River. Montou um escritório em Buenos Aires e junto dos seus auxiliares passou a observar minuciosamente todos os jogos do clube. Durante esse período sabático viajou para a Europa para observar ao vivo os métodos de trabalho de outros treinadores. E para aprender..Em 2014 tornou-se finalmente treinador do River Plate, rendendo no cargo o ex-jogador Ramón Díaz. E causou logo sensação ao integrar na sua equipa técnica uma médica especialista em neurociência, Sandra Rossi, que até hoje trabalha no clube. A missão de Sandra é desenvolver técnicas de raciocínio rápido e de estimulação, para que o cérebro dos jogadores funcione apesar do esforço físico e da pressão.."A minha função é criar um treino cerebral para os jogadores. A neurociência é a teoria que nos permite saber como pensamos e, da nossa parte, tentamos levá-la ao campo para treinar as capacidades dos atletas. Este trabalho é feito com a otimização das funções cerebrais, como o tempo de reação, a visão periférica, o foco ou a visão para antecipar o que os outros vão fazer. A minha missão é manter os níveis de atenção de um jogador. Tudo o que fazemos tem que ver com o que antecede um movimento e com o que ocorre no cérebro de um futebolista antes de uma competição. A ideia é que os jogadores entendam o que estão a fazer", resumiu Sandra, numa entrevista em dezembro de 2018, dias depois de o River bater o rival Boca Juniors na final da Libertadores.."Tenho pena de não ter conhecido a Sandra quando ainda jogava. Ela mostrou-me uma nova alternativa para o desenvolvimento desportivo em alto rendimento e tem ajudado a revolucionar o trabalho no River", confessou Gallardo, que conheceu Sandra quando a médica trabalhava no Centro Nacional de Alto Rendimento da Argentina, e quis logo integrá-la na sua equipa técnica..Esta ideia da otimização das funções cerebrais é herdada da escola de Cruyff, que dizia que o futebol devia ser jogado com o cérebro. Mas os grandes mentores de Gallardo são os compatriotas Marcelo Bielsa e Alejandro Sabella. "Marcelo Gallardo sempre foi muito inteligente como jogador, pois sabia o que fazer com a bola antes de ela chegar aos seus pés. Como treinador ele é assim também e costuma estudar, para cada adversário, até duas ou três estratégias para tentar vencer o jogo", resumiu Diego Borinsky, autor de dois livros sobre o treinador do River - Gallardo Monumental, de 2015, e Gallardo Recargado, publicado em maio deste ano..Estudioso, psicólogo e pedagogo.Marcelo Gallardo é um workaholic que vive para o futebol. Passa cerca de 12 horas diárias no centro de treinos do River Plate, a preparar os treinos, a estudar o rendimento dos seus jogadores e os adversários através de vídeos que lhe são preparados por um departamento de análise de desempenho. E vai ao mínimo dos pormenores. Tem um adjunto que assiste aos jogos na bancada e que munido de um iPad desce ao intervalo para o ajudar a corrigir erros. Na maior parte das vezes, contudo, não é necessário, pois o treinador já se apercebeu de tudo..Outra das facetas elogiadas em Gallardo é a forma como lida com os jogadores. Não é um treinador à imagem, por exemplo, de Jorge Jesus, emotivo e com pelo na venta, capaz de dar um raspanete em público aos jogadores. Prefere gerir as crises e os problemas de outra forma. E há vários exemplos de histórias contadas por quem foi treinado por ele..Em 2015, na viagem de regresso do México após um jogo da Libertadores que o River empatou, os jogadores começaram em pleno avião uma autêntica guerra de almofadas. De repente uma passou muito perto de Gallardo. Os futebolistas pararam, à espera de um raspanete do treinador. Mas o chefe limitou-se a olhar para trás e não soltou uma palavra. O olhar disse tudo..Outra história que demonstra bem este lado psicológico do treinador passou-se com um médio uruguaio, Carlos Sánchez, que o River contratou em 2015 a um clube mexicano. Depois de feitas todas as análises, Gallardo mandou chamar o jogador ao seu gabinete. Elogiou-o pela forma como se posicionava em campo, mas depois, através de um vídeo, mostrou-lhe o que não queria que o jogador fizesse, criticando a pouca intensidade do médio..Outro episódio aconteceu com Camilo Mayada, em 2015. Durante um treino, o treinador apercebeu-se de que algo se passava com o jogador. E por conhecê-lo bem, teve logo a certeza de que o problema não era técnico. Em vez de o corrigir, esperou pelo final da sessão de trabalho. Após uma conversa ficou a perceber que o futebolista tinha uma irmã muito doente.."O Marcelo é um treinador que gere muito bem o grupo, lê e interpreta os momentos dos jogadores. Esta sua inteligência, esta liderança natural que ele tem, faz que os jogadores elevem o seu nível e por consequência a equipa funcione melhor", descreveu à Folha de S. Paulo o médio Ariel Rojas, que representou o River Plate vários anos..O mais engraçado é que nos tempos de jogador Marcelo Gallardo tinha um feitio complicado e temperamental, algo que conseguiu inverter com a passagem a treinador. "Sou passional, sangue quente, reajo a certas coisas que me vão acontecendo. Com o tempo fui conseguindo lidar com algumas dessas frustrações que muitas vezes aparecem quando há algo que não está a correr bem. Injustiças, por exemplo. Mas comecei a ser um pouco mais cuidadoso na forma de me expressar. Antes era pior, reagia em demasia e em alguns momentos passei mal", admitiu numa entrevista, na qual confessou que tem colado na porta seu cacifo um calendário com as datas dos aniversários de 57 pessoas do clube, desde jogadores a roupeiros, passando por massagistas e seguranças..Treinador de grande sensibilidade, mas muito exigente, Marcelo Gallardo protagonizou um episódio polémico em outubro do ano passado, no jogo das meias-finais da Libertadores com o Grémio, que lhe custou ficar de fora na final depois ganha ao Boca Juniors. O técnico foi impedido de estar no banco na partida com o Grémio (devido a uma atraso de dois minutos no regresso da equipa do River ao intervalo no jogo anterior), mas quebrou os regulamentos. Foi filmado a dar instruções da bancada aos seus auxiliares e no intervalo desceu aos balneários para falar com os jogadores.."Tomei a audácia porque achei que os jogadores precisavam e eu também. Quebrei uma regra, reconheço e assumo, mas era o que eu precisava e não me arrependo de nada. Eles tinham uma mensagem muito clara e as pessoas que trabalham comigo também", referiu na altura..As táticas, a posse de bola e os movimentos.Desde que é treinador do River Plate, o treinador argentino já utilizou vários esquemas táticos, mas sempre assentes em três ideias fundamentais: o posicionamento dos jogadores, a profundidade e a precisão. Esta temporada tem alternado entre o 4x4x2 e o 4x2x3x1, com a variante em 4x3x3. O River é uma equipa de posse, que constrói jogo muito atrás, através de toques curtos até chegar à zona de finalização. A transição ataque-defesa é feita de forma rápida, com muita pressão sobre o adversário que tem a bola, e a jogar preferencialmente pelo corredor central. "Nós, os defesas, somos os primeiros a atacar e os avançados os primeiros a defender", definiu Lucas Martínez, defesa central dos milionários.."Controlar e passar bem a bola é uma das premissas fundamentais para que depois tudo o resto possa progredir. O River muitas vezes tem a bola, mas não tem apenas a intenção de a conservar, mas sim de fazer correr o rival, com movimentos que os jogadores já têm assimilados. Os passes entrelinhas, a movimentação dos avançados no espaço, os cruzamentos para trás, são coisas que a equipa trabalha arduamente", contou o ex-jogador do clube Ariel Rojas.."Gallardo é o treinador mais importante da história do River. Ele participa em todas as decisões do clube, não só a nível de contratações mas também questões logísticas, como os locais de treino, hotéis e até assuntos relacionados com as camadas jovens. Tudo o que acontece no River passa pelo Gallardo. Vai além do técnico, de um jogador que passou pelo River. É mais do que um treinador, é a cabeça de uma instituição grande como o River Plate. É o maior treinador da história do clube e o mais influente dos últimos 20 anos", referiu ao site Globoesportes o jornalista argentino Germán García Grova, do canal TYC Sports..É este o perfil do treinador que Jorge Jesus vai defrontar neste sábado, na final da Taça Libertadores entre o River Plate e o Flamengo, marcada para as 20.00 (em Portugal continental), numa partida em que o treinador português vai reencontrar Enzo Pérez, médio que orientou no Benfica. Um jogo que pode muito bem ser um dos últimos de Gallardo pelos milionários, já que neste mês surgiram várias notícias a darem-no como próximo do Barcelona. "Gallardo vai ser treinador do Barcelona em dezembro. É um dos melhores treinadores do mundo. Foi uma fonte direta que me disse isto", afirmou num programa de televisão o técnico argentino Claudio Borghi.