Neto de Moura pondera exigir até 100 mil euros a quem o "ofendeu"
"São ações cíveis com pedido de indemnização as que serão interpostas. Não está definido nenhum valor, nem existe nenhuma tabela, mas os valores que têm sido aplicados em tribunais portugueses em casos semelhantes apontam para quantias entre os 10 mil e os 100 mil euros."
Ricardo Serrano Vieira, o advogado que representa o juiz desembargador Neto de Moura, estabelece assim o enquadramento quantitativo das indemnizações que o seu constituinte deverá pedir nos processos a quem considera tê-lo ofendido "pessoal e profissionalmente."
Em causa, uma vez que se trata de ações cíveis -- nos processos criminais o prazo para interpor ações é de seis meses a partir do conhecimento dos factos -- poderão estar declarações feitas desde 2017, quando o juiz se tornou conhecido como relator do "acórdão da mulher adúltera", no qual invocou a Bíblia, a lapidação de adúlteras e o Código Penal de 1886, "contextualizando" as agressões à vítima, que foi espancada com uma moca com pregos, nesse pano de fundo, e chegando a escrever que "o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem" e "uma conduta que a sociedade sempre condenou (são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras), e por isso [a sociedade] vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher."
O acórdão suscitou uma reação de repúdio generalizada, tendo ocasionado uma petição, iniciada por várias associações feministas, ao Conselho Superior de Magistratura, que reuniu mais de 28 mil assinaturas, incluindo as de Cristiano Ronaldo, Paulo Portas, Fernando Medina e Rui Moreira. O CSM viria, em dezembro de 2017, a instaurar um processo disciplinar ao juiz e à juiza que assinaram o acórdão; a 5 de fevereiro desde ano, Neto de Moura foi punido com uma advertência registada e a juíza, Luísa Arantes, viu o seu processo arquivado.
Em causa no procedimento disciplinar a Neto de Moura esteve também outra sua decisão de 2017, igualmente referente a violência doméstica e na qual também acusava a vítima de adultério, usando em relação a ela uma série de insultos: "dissimulada", "falsa", hipócrita", "desleal" e "imoral sexual". Expressões que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Antonio Piçarra, reputou, na sua declaração de voto enquanto presidente do CSM, de "ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas", ultrapassando "o limite da ofensa ou do respeito devidos a qualquer interveniente processual."
Mário Morgado, o vice-presidente do CSM, corroborou: "A utilização de expressões graves e desnecessariamente ofensivas dos intervenientes processuais em especial" pode no limite "assumir relevância jurídico-criminal". Ou seja, poderia estar em causa o crime de ofensa ao bom nome das vítimas.
Das ofensas feitas pelo juiz às vítimas àquelas de que se sente alvo: o seu advogado diz não saber ainda precisar quantos serão os demandados por Nero de Moura, mas esclarece que não serão os 20 inicialmente apontados. "Serão as pessoas", explica o causídico, "cujos comentários chegaram ao grande público que mais interessam e nem todas as inicialmente referidas ultrapassaram o campo da liberdade de expressão ou entraram no campo das ofensas e dos insultos." Para já, aponta oito nomes: os humoristas Ricardo Araújo Pereira, Bruno Nogueira, João Quadros e Diogo Batáguas; as políticas Mariana Mortágua e Catarina Martins, ambas do Bloco de Esquerda, e Joana Amaral Dias; o comentador Manuel Rodrigues. Que afirmações estarão em causa em cada um dos casos não é ainda claro.
O número de demandados nas ações de que prevê dar entrada "em final de março, princípios de abril" não é despiciendo: cada ação tem custas que dependem do valor da causa, ou seja, da indemnização pedida. Para uma indemnização de 10 mil euros, o valor das custas iniciais é de 306 euros; para 50 mil, 714 euros; para 100 mil, 908 euros. Que quer quem interpõe a ação quer o demandado terão de pagar -- a não ser que beneficiem de alguma isenção. Poderá ser o caso de Neto de Moura.
As opiniões dividem-se, porém: há quem considere que a lei lhe permite a isenção e quem diga liminarmente que não -- é o caso da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Que, por via do seu assessor de imprensa, garantiu ao DN que por se tratar de "processos pessoais do juiz", não há lugar a essa isenção. O mesmo crê Tiago Rodrigues Bastos, advogado do Sindicato de Jornalistas: "A lei não foi pensada para isso, mas para os casos em que os magistrados sejam demandados por decisões que tenham tomado, o que não é o caso, já que é ele o autor."
Já um juiz de um tribunal superior, se concorda com Tiago Bastos no sentido em que a lei não previu este tipo de situação -- "As coisas estão feitas para situações normais. Este caso pode ser um abuso do direito" --, vê a possibilidade de a isenção ser reconhecida ao juiz como muito possível, ou até provável: "A interpretação tem sido lata. Admito a interpretação de que tem direito como aceitável, não é esticada."
A lei em causa -- o Regulamento das Custas Processuais -- estabelece, no artigo 4.º, as isenções, nas quais se incluem, na alínea C, "os magistrados e os vogais do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior do Ministério Público ou do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais que não sejam magistrados, em quaisquer ações em que sejam parte por via do exercício das suas funções." A questão é pois a de saber se se pode considerar que Neto de Moura é parte nas ações em causa por via das suas funções.
E quem decide? O tribunal onde der entrada a ação, explica o magistrado citado. "Ao interpor a ação, invocará a isenção de custas ao abrigo da alínea C do artigo 4.º da lei 34/2008. E o tribunal vai verificar se existe o direito ou não, e se concordar não tem de dizer nada. O demandado é que pode, na contestação, contestar também essa isenção." Mas sublinha: "Se a ação for considerada improcedente, as custas são devolvidas ao réu." Existe no entanto uma possibilidade de o autor -- neste caso, o juiz -- ser condenado: "Se quem julga o caso considerar que o autor está a litigar com litigância de má fé - se se entender que a ação é absurda." E conclui: "Tenho esperança de que haja bom senso e estas ações não avancem."
Segundo Ricardo Serrano Vieira, ele e o juiz ainda não terão tomado uma decisão sobre o pedido de isenção de custas: "Ainda não sabemos se vamos pedir ou não." Mas terão de decidir rapidamente: o prazo para o recurso em relação à pena de advertência registada, que o Conselho Superior de Magistratura lhe aplicou a 5 de fevereiro "termina já na próxima semana" e o advogado considera que a isenção de custas também se pode aplicar aí (trata-se de um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça).
Será essa para já a prioridade do advogado de Neto de Moura, que em todo o caso certifica que já está terminado "o levantamento do que foi dito". A equipa de defesa do magistrado focou todos os que proferiram comentários nos jornais, televisões e nas redes sociais.
A Neto de Moura, recorde-se, foram imputados os epítetos de misógino, machista e incapaz de continuar a exercer a profissão, entre muitos outros qualificativos, como "cavernícola", "ultramontano", e até, no caso da dupla Bruno Nogueira/João Quadros, "animal irracional".
Em causa nos comentários estão as citadas decisões judiciais de 2017 e uma outra, mais recente, de outubro de 2018, na qual entendeu retirar a pulseira eletrónica e diminuir de três para um ano o período de proibição de contactos a um homem que foi condenado, em primeira instância, a três anos de pena suspensa por ter insultado e agredido a mulher ao longo de cinco anos, inclusive causando-lhe a rutura de um tímpano com um soco, e por várias vezes ameaçá-la de morte, usando "um objeto de parecia uma arma de fogo" e, por fim, uma catana.
Sobre a indignação que as decisões e os comentários de Neto de Moura causaram numa altura em que as mortes de mulheres vítimas de violência doméstica acontecem repetidamente - só em 2019 já morreram 11 - o advogado diz que Neto de Moura "limitou-se a aplicar a lei" e que "a lei atual não está adaptada para aquilo que é a nossa realidade atual [no contexto da violência doméstica]".
Já sobre a alusão à Bíblia num dos acórdãos, Ricardo Serrano Vieira diz que "esse foi o objeto do processo disciplinar e não a decisão".
No entanto, apesar da pressão da opinião pública, e apesar de, disse o seu advogado ao DN, "legalmente, poder pedir escusa de processos de violência doméstica", este não o pensa fazer, uma vez que "entende ter tomado a decisão correta". Uma informação contraditada por uma notícia desta segunda-feira no Público, na qual se refere que o juiz pediu mesmo ao Supremo Tribunal, no verão passado, que o escusasse de intervir em processos de violência doméstica. Mas, garante o jornal, "o Supremo negou-lhe essa pretensão."
Diz o Público que no pedido de escusa que enviou ao Supremo "o juiz do Tribunal da Relação do Porto queixava-se de "algumas pessoas" - que não identificava - terem "cavalgado esta onda de mentira e deturpação" sobre as suas decisões, promovendo contra si "uma campanha de ódio e de instigação à violência, com apoio da comunicação social"." E o juiz via mesmo uma campanha contra si: "Tem-se andado a escabichar as decisões em que intervém o juiz para as pôr em causa e encontrar um pretexto (qualquer que seja) para prosseguir a campanha persecutória".
Perante um novo caso de violência doméstica que lhe calhara, no qual o arguido fora posto em prisão preventiva, o juiz sentia-se preso por ter cão e por não ter: "Se for no sentido da revogação da prisão preventiva, é altamente provável que irá desencadear mais histeria, mais campanhas de ódio e mais exigência de reação punitiva por parte do Conselho Superior da Magistratura (...). Que (...) não deixará passar a oportunidade de voltar a arrogar-se o poder de sindicar a decisão judicial e reincidir na perseguição disciplinar". Se, porém, "a decisão for no sentido da manutenção da prisão preventiva o arguido, com toda a legitimidade, dirá que toda esta situação afetou a isenção e a liberdade de decisão" do magistrado, "e porá em causa a justiça da decisão".
Mas, como já referido, a resposta foi negativa: "O senhor juiz desembargador parece implicitamente pretender que o Supremo Tribunal de Justiça o dispense, pelo menos por um determinado período de tempo, de intervir em processos que versem sobre violência doméstica. Trata-se de desejo que, pela sua natureza e extensão, não pode ser acolhido por este tribunal." E os juízes conselheiros dizem mesmo, ainda de acordo com o Público, que o colega do tribunal inferior "não se pode sentir condicionado pelo exercício da liberdade de imprensa e de expressão, direitos que são quotidianamente exercidos pelos mais variados atores numa sociedade aberta e democrática".
Citado por aquele jornal, Ricardo Serrano Vieira afirma: "Neto de Moura está obrigado a julgar violência doméstica."