Nestas Lisbons não há Portugal, mas ouve-se ecos de outros tempos
Os lagos rodeados de verde na primavera, os campos cobertos de neve no inverno e as casas de arquitetura oitocentista pintam a pequena cidade de Lisbon no estado norte-americano do Maine, servida pelo rio Sabattus e onde o tempo anda mais devagar. "É uma cidade rural simpática, não muito grande", diz ao DN Dorothy Smith, presidente da Sociedade Histórica de Lisbon. Natural de uma cidade vizinha, passou ali quase toda a sua vida, depois de se casar muito nova. "Saímos duas vezes mas voltámos sempre", conta. Nenhuma aventura foi suficiente para os afastar por muito tempo da cidade batizada com o nome da capital portuguesa, que outrora foi conhecida pela prosperidade fabril.
Durante muitos anos, a fábrica de tecidos Worumbo Mill Manufacturing Company ganhou fama em todo o país pela qualidade da produção e chegou a exportar para a Europa. Um incêndio em 1987 ditou o fim do histórico edifício, que, juntamente com outros desaparecimentos, como a torre de água e a escola católica montada pelos primeiros colonos, levou consigo um pedaço da alma da Lisbon de antigamente.
É esse suspiro quase místico por uma era desaparecida e a construção que remonta aos primórdios dos Estados Unidos que tornam esta cidade um sítio especial. Aqui há mais do que a memória de fábricas encerradas e lojas que venderam os últimos refrigerantes na década passada. Dividida entre três secções, Lisbon, Lisbon Falls e Lisbon Center, esta Lisbon americana serviu de inspiração a várias novelas do prolífico escritor de terror Stephen King. A recente série Castle Rock, produzida por King e J.J. Abrahams para a Hulu, inspira-se no charme denso e misterioso desta cidade meio rural cheia de história. A novela 11.22.63, também transformada em série para a Hulu, passa-se em Lisbon Falls e usa a vila como uma personagem silenciosa da história. Nada disto é coincidência: Stephen King andou na escola secundária de Lisbon Falls quando era adolescente e morava com a mãe em Durham, ali perto, e trabalhou na fábrica Worumbo Mill durante um verão.
A inspiração é indesmentível, mas quem visitar a localidade não verá qualquer referência desta ligação a um dos maiores escritores do género de terror de todos os tempos. Lisbon, Maine é uma cidade pequena, com cerca de nove mil habitantes, onde o maior acontecimento do ano não tem nada que ver com histórias ficcionais. É o Moxie Festival, um evento de três dias com música, artes e comida que começou em 1982. O nome vem do refrigerante Moxie, criado em 1876 como um medicamento e transformado em refrigerante em 1884, que se tornou a bebida oficial do Maine, mais antiga do que a Coca-Cola e símbolo de uma certa forma de viver.
Neste ano, por causa da pandemia de covid-19, não haverá celebração. É uma tristeza adicional, depois da morte do carismático Frank Anicetti, em 2017, uma figura histórica da localidade e dono da Kennebec Fruit Co. Era conhecido como Senhor Moxie, diz Dorothy Smith, ela própria a trabalhar em modo de isolamento durante este período.
Sem a invasão de 40 a 50 mil pessoas por causa do festival, que todos os anos acontece em julho, Lisbon manterá em 2020 a tranquilidade quase esquecida que a caracteriza.
Ao cimo da Main Street, diz Charles W. Plummer, historiador local que editou o único livro sobre a história da cidade de que há registo, é possível espreitar para o início de tudo, quando Lisbon, Maine foi oficialmente criada.
"A cidade chamava-se Thompsonborough, mas a ortografia era algo difícil e os fundadores começaram à procura de um nome mais curto", explica o ancião. "Foi assim que decidiram usar o nome de Lisbon."
A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos dá-nos outra explicação: os habitantes da cidade não gostavam da atitude antipatriótica do general Samuel Thompson, cujo nome de família dera origem à designação da cidade, em 1799, e quiseram alterá-lo. Em 1801, quando entraram com uma petição para modificar o nome, citaram simplesmente a complexidade ortográfica.
Plummer, que estudou a fundação da localidade - tão cedo quanto 1628 - e o seu crescimento ao longo dos séculos, diz que nunca foi possível encontrar uma justificação registada para a escolha de Lisboa como inspiração. "Não havia nenhuma semelhança entre as cidades", afirma. "Evidentemente alguém estava familiarizado com Lisboa e lembraram-se quando procuraram um novo nome, mas não há referência a qualquer pessoa que tenha recomendado diretamente." O historiador explica de forma sucinta: "Alguém achou que era muito fácil de escrever e por isso escolheram-na."
Dorothy Smith atesta que, no passado, foi feita uma pesquisa para perceber a ligação, e não há nenhuma. "Não conseguimos encontrar ninguém de origem portuguesa aqui", diz. Curiosamente, a sua irmã, que vive noutra cidade, acabou por se casar com um luso-americano, cuja família materna veio de Portugal.
Esse não foi o caso dos colonos iniciais que fundaram Lisbon. Vinham de Alemanha, França, Hungria, Eslováquia. Assim se explica a peculiaridade dos nomes inscritos nos cemitérios das vilas. "Quando eles chegaram, incluindo os meus avós da Hungria, quiseram mudar os nomes para algo que soasse mais a inglês", indica Plummer. "Mas quando morreram, foram enterrados com os nomes originais nas lápides."
Plummer serviu no Exército norte-americano e isso levou-o a várias partes do mundo, desde China e Japão à Coreia e às Filipinas. Todavia, nunca pôs os pés na ponta ocidental da Europa, onde poderia ter conhecido a Lisboa original. O livro História de Uma Pequena Cidade no Maine, que editou com autoria do pai, Francis W. Plummer, é "a única história oficial da cidade que foi publicada", segundo diz ao DN Diane Nadeau, a diretora da biblioteca de Lisbon.
A história do nome desta cidade do Maine não é muito diferente de várias outras localidades nos Estados Unidos. No Ohio, surgiu em 1803 a cidade New Lisbon, estabelecida pelo pastor batista Lewis Kinney em honra da capital portuguesa, tendo-se tornado a segunda cidade mais antiga do estado. Em 1895 o nome passou a ser apenas Lisbon, como forma de a cimentar como um "marco de modernidade" em Ohio.
No Dakota do Norte, a Lisbon que existe até hoje com dois mil habitantes foi fundada em 1880 e nomeada por causa de Lisbon, Nova Iorque - e não Lisboa, Portugal. Esta Lisbon da Costa Leste, por sua vez, tem uma origem duvidosa: alguns dizem que foi por causa de Portugal, outros por causa de Lisburn, uma cidade irlandesa.
É que batizar novas localidades com com nomes de cidades europeias era muito comum no início dos Estados Unidos. Os colonos antecipavam que as novas cidades pudessem crescer para uma dimensão e importância comparável às originais, algo que não veio a verificar-se. No Maine há locais chamados Palermo, Belgrado e Viena. Há uma Antuérpia em Ohio e uma Luxemburgo no Wisconsin. Há uma Copenhaga no estado de Nova Iorque e várias Paris, a mais conhecida no Texas. Toulon, Berlim, Versalhes, Atenas e Budapeste são todos nomes de cidades que existem nos Estados Unidos. E Lisbons? Pelo menos 37 em 26 estados, metade do país.
É o que diz a Biblioteca do Congresso, referindo-se quer a pequenas vilas sem governo próprio quer a cidades com milhares de habitantes, entre as quais Lisbon, Maine (9009 pessoas) e Lisbon, Wisconsin (10 523 residentes) são as mais povoadas.
A existência de tantas cidades com o nome da capital portuguesa confundiu até o Google, quando duas turistas norte-americanas que visitavam Portugal estavam em apuros. No verão de 2018 - quando o turismo estava num pico que hoje parece lenda à luz da pandemia - as norte-americanas ficaram presas num elevador por causa de uma avaria. Depois de vinte minutos de desespero, usaram o smartphone para pesquisar o número da polícia de Lisboa e pedir socorro. Só que o motor de pesquisa do telefone, com as definições habituais da utilizadora norte-americana, apresentou como primeiro resultado o contacto da polícia de Lisbon... Maine, a cidade de Dorothy Smith, Charles W. Plummer e Diane Nadeau. O canal de televisão local WCSH relatou o que aconteceu depois de a operadora da Polícia de Lisbon, Cathy Roy, ter atendido a chamada e percebido o engano. Foi ela que ligou para a PSP e que, apesar da "barreira da língua" descrita na notícia da estação de televisão, conseguiu que as mulheres fossem libertadas do elevador avariado.
Ainda assim, várias das Lisbons que proliferaram no século XIX já não constam dos mapas topográficos do território americano, porque os habitantes desapareceram. Dessas, restam apenas as localizações históricas.
Uma curiosidade que a documentação da Biblioteca do Congresso apresenta é que nenhuma destas Lisbons se encontra nos quatro estados tradicionalmente associados à emigração de origem portuguesa - Califórnia, Rhode Island, Massachussetts e Havai. Destes, a Califórnia é o que contém a maior população luso-americana, cerca de 347 mil pessoas. Mas é na Costa Leste que se encontra a maior densidade de comunidades portuguesas. Talvez para estes emigrantes, a maioria dos quais vindos dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, houvesse apenas uma Lisboa - e essa, mesmo do outro lado do Atlântico, foi sempre insubstituível.