Nem só de pão vive o homem
Belo nome: Padaria do Povo.
Nascida a 17 de outubro de 1904, por proposta do Rei D. Carlos - o relógio e o cofre oferecidos pelo monarca, em exposição no interior da casa, são testemunhas do apreço da realeza -, surgiu com o objetivo de fabricar pão mais barato nas freguesias de Santa Isabel e Campolide (Santo Condestável só seria fundada em 1959). Mais história: nas suas instalações, foi fundada em 1919 por António Ferreira de Macedo e Bento de Jesus Caraça a Universidade Popular, que passou a ser inquilina da Padaria.
Casa centenária, reabriu em setembro de 2013, passando a servir almoços e petiscos, da salada de polvo ou de orelha ao pica pau, das moelas ao prego e à bifana.
E porque nem só de pão vive o homem, as jantaradas e petiscos juntam o cinema (segunda-feira), o coro e o xadrez (terça-feira), os concertos (quarta), o teatro para crianças e adultos (quarta e quinta), o baile de séniores (domingos e feriados) e ainda se aluga espaço para festanças particulares.
O jogo começa, já todos de cerveja na mão, com a sentença "isto é equipa para empatar (o Irão) e "o pessoal vai ganhar" (Portugal). Nas várias mesas, os torcedores parecem iguais: ruidosos, bem-dispostos, confiantes. Porém, há quem se destaque.
Ivo, o treinador que reza
Ivo Pinheiro, 32 anos, boné virado ao contrário, camisola com o número 7 nas costas, licenciado em Educação Física pela Universidade Lusófona. "Tenho também o curso de treinador", diz com orgulho. Trabalhou temporariamente em futebol e gostaria de poder viver do trabalho de treinador. Não sendo possível, dedica-se à gestão de condomínios".
Registado em Benfica, o seu bairro é Campo de Ourique. De resto, os avós ainda ali moram. Ao fim dos primeiros quinze minutos, Ivo faz o balanço: "Portugal foi para cima do jogo e a seleção do Irão aproveitou o contra-ataque". Ao lado, Bruno Rodrigues, 33 anos, nascido e criado em Campo de Ourique - "ajudei à reabertura disto aqui (Padaria) e a pintar estas paredes"- completa a ideia do amigo: "Se mantivermos este ritmo, podemos ganhar". Trabalha "na Coca-Cola" e não morre de amores por Carlos Queiroz, "se bem que na formação deu-nos dois títulos". Ivo, esse, não tem dúvidas. Os melhores formam um trio: "Pedroto, pela inovação e leitura do jogo; Mourinho, pela tática e pelos títulos; Fernando Santos, pela vitória no Europeu" de há dois anos.
É dos que acreditava que Portugal venceria o campeonato. Um homem de fé: "Sou católico, sim senhor; não vou à missa como o selecionador mas rezo todos os dias".
E Jorge Jesus? "Um belíssimo treinador que não teve sorte em Alvalade", diz Ivo, sportinguista. Esteve na Assembleia Geral de sábado mas não confessa em quem votou.
Benedita, a craque da camisola 7
Benedita Rolão faz hoje, 26 de junho, 11 anos. Adora futebol, quer ser jogadora de futebol. E já joga: atacante, alinha de vermelho e branco no Sporting Clube de Linda-a-Velha. Nas costas da camisola, o número sete. Como o melhor: "Gosto muito de Ronaldo, mas também gosto do Patrício". É do Sporting, já foi Benfica e não sabe explicar a mudança de clube. Anda no 5.º ano, na mesma escola do irmão, o Francisco, "um ano, um mês e um dia mais novo", e que também joga futebol, a avançado.
"A nossa seleção está boa", diz Benedita. Lembra-se bem do dia em que Portugal foi campeão da Europa, "só acho mal terem magoado o Ronaldo". De Fernando Santos, diz que "é um bom treinador, apesar de não se rir muito".
Na turma, contando com ela, há quatro meninas que gostam de futebol. E que o jogam bem. Contudo: "muitas vezes os meus amigos não me deixam jogar porque acham que vou falhar. Já estou habituada", reflete, em voz grave.
Por que achas que isso acontece? "Não sei. Mas é injusto". Benedita não gosta de ler, gosta muito de escrever e não vale a pena os pais, uma agente imobiliária e um arquiteto, criarem ilusões: "Quero ser jogadora". Se insistirem "digo-lhes que não são eles que escolhem".
Sobre a carreira da seleção, aposta, entendida: "Hum, desta vez não vamos tão longe". Parabéns, Benedita, pelo aniversário.
De volta ao bar. "Como é que o DN se lembrou de nós?", pergunta André Costa, 42 anos, que com Vasco Loução, ambos de Campo de Ourique, gerem o restaurante da cooperativa. A resposta foi cortada pela trivela de Quaresma, golo considerado na sala "tão bom como o de Cristiano Ronaldo no jogo com a Espanha".
"Quaresminha", vem de uma mesa. "Que coisa linda", ouve-se noutra. "Ah, grande Fernando", vem do bar. E o bar tem dono: Elísio Cruz.
Elísio, o Figura
"O Figura" é o carismático barman da Padaria, a casa onde trabalha desde 2009. Pessoa conhecida sobejamente no bairro, nunca perde o sorriso nem o sentido de humor. Muito menos a disponibilidade e o gosto pelo trabalho que faz. Por isso, do jogo sabe pouco:"Não estou a ver. Estou a trabalhar".
Elísio chegou a Campo de Ourique com 3 meses de vida, de Cabo Verde, onde nasceu. Há 48 anos no bairro, "adora" a Padaria. Por isso, já recusou boas propostas de trabalho: "Se a vida fosse dinheiro...mas não é. Toda a gente tem um preço, é certo. Depois há a amizade, o bairro, a minha mãe, que ainda aqui mora e, finalmente, isso é o que conta". A família: Sete irmãos, a mãe e um filho: "o Hugo Miguel acabou o 12.º ano e trabalha num bar". Desde que tivesse um trabalho "honesto e respeitável", gostava que o filho pudesse ser, na vida, o que quisesse. Conheceu um bairro em que se brincava na rua, à carica e à apanhada, numa infância em que ficou a saber que o racismo existia.
O que se vê a fazer daqui a dez anos? "Sei lá. Se estiver vivo já é muito bom". Provocado - "É Sportinguista?"- responde com indignação: "Credo, sou benfiquista. Não me tire a única coisa boa que tenho."
Penálti a favor de Portugal: o aplauso fervoroso quase deita as paredes abaixo. Ronaldo falha: "Olha-me este armado em Messi", diz um. Vai outro: "Podíamos estar descansadinhos, mas não, tinha de falhar."
E agora? "Agora", diz Ivo,"temos de ganhar ao Uruguai. Preferia a Rússia, se bem que temo sempre as equipas da casa. Mas não vamos pôr a carroça à frente dos bois". António Roxo, ainda vermelho da praia matinal, declara: "Ia mas é sendo um balde de água fria". 34 anos, campo ouriquense de alma e coração, sócio do Atlético de Campo de Ourique, diz que não há bairro igual: "Como vê, esteve aqui muito bem. Não houve nenhuma ofensa; e aposto que se distraiu". De facto: divertida e gentil, a gente de Campo de Ourique.