Nem Kawasaki, nem Choque Tóxico. Esta é a síndrome que afeta crianças com covid
A pandemia de covid-19 afeta sobretudo pessoas mais velhas (acima dos 70 anos). Relatos da doença em crianças não são frequentes. Em Portugal, dos 27913 infetados, apenas 478 são crianças até aos nove anos e não há nenhuma morte a registar nesta faixa etária. No entanto, uma desregulação imunológica rara que tem sido associada à covid-19, e que faz com que os mais novos precisem de cuidados intensivos, está a preocupar os pediatras europeus e norte-americanos.
A nova síndrome tem uma incidência reduzida e surge em crianças mais novas, até aos cinco anos. Faz-se notar com manchas na pele, febre alta durante vários dias, dificuldades respiratórias e gastrointestinais, glândulas inchadas, dor abdominal. Em comum, todas as crianças notificadas têm a doença covid-19, ativa ou apresentam anticorpos ao vírus (detetados a partir de testes imunológicos). Infeção que terá desencadeado uma desregulação imunológica, apresentando características semelhantes às síndromes de Kawasaki e Choque Tóxico (distúrbios nos vasos sanguíneos). No entanto, não é exatamente a mesma coisa, apesar de o tratamento ser baseado na experiência adquirida com estas duas doenças raras. "Isto não tem nada a ver com a doença de Kawasaki, que está bem descrita", alerta Maria João Brito, responsável pela Unidade de Infecciologia do Hospital pediátrico Dona Estefânia.
Segundo a especialista, "este síndrome multissistémico inflamatório é uma situação rara que acontece como resposta desadequada do nosso sistema imunológico ao vírus e que tem algumas manifestações semelhantes à doença de Kawasaki e outras semelhantes ao Choque Tóxico. A imunidade do nosso corpo em vez de nos proteger ataca as nossas células".
Este género de alterações no sistema imunológico não são novas. Aliás, já foram verificadas em relação a outros coronavírus e, por isso, também são conhecidos os tratamentos que fazem efeito.
Em Portugal, existe apenas uma criança com "uma situação clínica que, não sendo o síndrome de Kawasaki, tinha algumas características, enquadrando-se no padrão que tem sido descrito", referiu a diretora-geral da Saúde, durante uma conferência de imprensa, há dois dias. Graça Freitas indicou ainda que, apesar de esta criança, internada no Dona Estefânia, ter apresentado um estado crítico "tem tido uma evolução favorável".
"Tanto quanto sabemos, em Portugal, não nos foram reportados casos adicionais compatíveis com este tipo de inflamação", acrescentou a diretora-geral da Saúde.
São ambas doenças graves e raras. O síndrome de Kawasaki "é a segunda vasculite [inflamação dos vasos sanguíneos] mais frequente na infância. Apesar de ser pouco comum, é bem conhecida dos médicos que tratam crianças", diz a infeciologista Maria João Brito. A doença atinge a população entre um e cinco anos, sendo ainda mais rara depois dessa idade.
Os principais sintomas são uma febre prolongada (com mais de cinco dias), erupção cutânea, inchaço das mãos, dos pés e dos gânglios linfáticos no pescoço, irritação nos olhos, boca, lábios, garganta. De acordo com o Centro de Investigação sobre a Doença de Kawasaki, nos Estados Unidos, esta inflamação pode não ter efeitos graves no imediato, mas, a longo prazo, é possível que cause danos nas artérias coronárias e nos músculos cardíacos.
A sua causa não é completamente clara, "pensa-se ser desencadeada por um agente infeccioso", aponta Mariana Rodrigues, pediatra no Hospital de São João. E tem uma disseminação muito diferente consoante a geografia, até porque apresenta uma relação genética comprovada. As crianças asiáticas são as mais afetadas e o Japão é o país com maior número de casos (daí a designação de Kawasaki - nome do pediatra japonês, Tomisaku Kawasaki, que descreveu, pela primeira vez, a patologia).
Em Portugal, nos últimos cinco anos houve 41 infetados, em pequenos ciclos de surto que envolveram quatro a cinco crianças. Os dados são avançados pela diretora de infecciologia do Hospital Dona Estefânia, onde há uma equipa a estudar a doença. Uma vez que esta não é de notificação obrigatória, as únicas estatísticas que existem pertencem a este grupo de investigadores ligados ao Centro Hospitalar Lisboa Central, que, num documento publicado em 2017, apontava que a incidência da Kawasaki em território nacional era de 6.48 por cada cem mil crianças.
Já a síndrome do Choque Tóxico, que também têm sido ligada à nova doença inflamatória multissistémica, embora menos que a Kawasaki, resulta de um envenenamento bacteriano (de uma ou mais bactérias - sendo a mais frequente a Staphylococcus aureus). Os sintomas são febre alta, vómitos, diarreia, tonturas, convulsões, dores musculares, irritações cutâneas nas mãos e nos pés. Está, muitas vezes, associada a infeções provocadas por cirurgias, queimaduras, picadas de insetos e à utilização de tampões. Trata-se com antibióticos.
Na Europa, o primeiro alerta, no final de abril, veio das autoridades de saúde do Reino Unido (o quarto país com mais casos de infeção pelo novo coronavírus no mundo - 226 463 - e o segundo com mais mortes - 32 692). Os britânicos apontavam para um aumento do número de crianças com sintomas semelhantes aos da doença de Kawasaki, que estavam a requerer cuidados intensivos. Num documento produzido pela Sociedade de Cuidados Intensivos Pediátricos, especialistas chamam a atenção para o facto de os casos terem em comum "características do Síndrome Choque Tóxico e da doença de Kawasaki com parâmetros sanguíneos consistentes com covid-19. A dor abdominal e os sintomas gastrointestinais têm-se revelado coincidentes com inflamação cardíaca", escreveram, fazendo a ressalva: estes casos têm uma incidência rara.
Estas indicações foram corroboradas pelas associações pediátricas em Espanha, Itália e França, que também notificaram casos. Entretanto, também os Estados Unidos (país com mais notificações de covid-19 do mundo - mais de 1,3 milhões - e mortes - mais de 82 mil) anunciaram 73 diagnósticos de crianças coincidentes com os descritos anteriormente só no estado de Nova Iorque (o mais afetado pela pandemia). Três crianças morreram.
Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estar a investigar as possíveis ligações à covid a partir das "descrições recentes de casos de crianças em alguns países europeus que tiveram esta síndrome inflamatória semelhante à síndrome de Kawasaki", sem terem sido apresentadas quaisquer conclusões até à data.
Tratando-se de uma inflamação no sistema imunológico, a doença é combatida com medicamentos imunomoduladores (servem para reforçar o sistema imunitário), usados já no combate à Kawasaki e ao Choque Tóxico. A infeciologista Maria João Brito refere que o tratamento não é uma novidade e foi testado em situações semelhantes, "o que faz com que saibamos como tratar".
A pediatra Mariana Rodrigues fala também em "tratamento de suporte como soro, antibióticos, aspirinas, e medicamentos específicos biológicos".