Negri. A vida de um comunista pós-moderno

Publicado a
Atualizado a

Alguns apontamentos da vida do filósofo e revolucionário que ambicionou transcender as fronteiras.

O filósofo e militante Toni Negri morreu na madrugada deste sábado, em Paris, com 90 anos de idade. Durante o longo 68 italiano, foi um participante destacado de movimentos situados à esquerda do Partido Comunista. À época, as suas ideias tiveram eco fora da própria Itália, inclusivamente em Portugal, nomeadamente junto de Manuel Villaverde Cabral e dos Cadernos de Circunstância. Já em 1979, e apesar de ser uma figura tutelar na Universidade de Pádova, foi preso, num processo judicial denunciado pela Amnistia Internacional.

A prisão trouxe-lhe isolamento e outras maleitas, mas também o tempo para mergulhar a fundo na leitura de Espinosa, de quem se tornou um intérprete incontornável. Em 1983, foi eleito deputado ao Parlamento Italiano, o que o tirou da prisão. E antes que a imunidade parlamentar lhe fosse retirada, exilou-se em França, acolhido pelo seu amigo Félix Guattari. Beneficiando da tolerância do Gverno de François Miterrand, inicia-se então a sua segunda vida. Dinamiza projetos coletivos como a revista Futur Antérieur e ensina na universidade, não sem antes desenvolver inquéritos sociológicos na metrópole parisiense. Torna-se sensível às transformações em curso na composição de classe, no trabalho e nos modos de produção e vida da grande cidade.

Em 1997, decide regressar a Itália, na expectativa de que o gesto suscite uma amnistia para casos como o seu. A expectativa é defraudada e é preso em pleno avião. Cumpre mais um tempo de prisão, sendo que o cadastro lhe pesaria sobre os ombros até ao fim da vida. Ainda ontem lhe era vedada a entrada nos EUA, por exemplo. Contudo, foi justamente a partir dos EUA que a sua figura conheceu uma terceira vida. Em 2000, a Harvard University Press publicou o best-seller Empire, um trabalho escrito com Michael Hardt, num encontro perfeito que marcou a ação de vários militantes e as análises de outros tantos académicos um pouco por todo o mundo.

Aparecendo na cena editorial internacional como uma alternativa ao Fim da História e o Último Homem, em que Francis Fukuyama sugeria o fim da era das revoluções, Empire seria traduzido em vários países, incluindo Portugal. A obra resgata métodos, conceitos e autores do longo 68 italiano, contribui significativamente para a criação de uma tradição marxista-foucauldiana, formulava uma agenda comunista de análise e intervenção nas sociedades pós-industriais e, de forma icónica, celebrava o exemplo de São Francisco.

Negri e Hardt propõem então duas ideias fundamentais. A primeira é a de que a globalização seria menos o nome de um inimigo a combater do que um terreno onde travar o combate. A segunda é a de que o neoliberalismo será melhor combatido se entendermos os desejos emancipatórios que ele a um tempo exprime e nega. Um exemplo talvez concretize o que está aqui em causa: a emergência do conceito de "colaborador" em detrimento do de "trabalhador" certamente representa uma tentativa de embelezamento da realidade da exploração laboral; todavia, segundo Negri, a crise da figura do "trabalhador" é igualmente devida ao desamor dos próprios proletários pelo trabalho, um desamor em tudo libertador.

No início deste novo século, as ideias de Hardt e Negri tiveram eco nos movimentos antiglobalização, os quais, seguindo os dois autores, mais facilmente chamamos de alterglobais. O conceito de multidão fez então caminho como alternativa às políticas identitárias do liberalismo triunfante, com a sua apologia do indivíduo e da propriedade privada, mas também enquanto resposta à crise do socialismo e da social-democracia, com a sua apologia da soberania estatal e da nação enquanto instâncias de resistência ao capitalismo global.

Entretanto, a fortuna política da multidão negriana diminuiu significativamente ao longo dos últimos anos, com o recuo dos movimentos alterglobais e a crise global do capitalismo em 2008. Em Espanha, o movimento das acampadas e do 15M acabou por desaguar na formação de um partido político orientado para ganhar eleições e tomar o poder de Estado. Na sua tese de doutoramento, no início do século, o jovem Pablo Iglesias citava Toni Negri na sua epígrafe. Quando criou o Podemos, era já a hipótese de um populismo de esquerda, teorizada por Mouffle e Laclau, que mais o animava.

Na hora da morte de Toni Negri, os obituários provavelmente acusarão os ódios e paixões que a sua persona suscitou em vida. Tentei que assim não fosse nestas linhas, mas não quero deixar de começar a pagar a minha dívida para com ele. Conheci-o pessoalmente no início do século e, desde então, mantivemos uma relação de amizade. É certamente a figura intelectual e política que mais me influenciou. Reconheço a sua presença em tudo o que escrevi, de um texto sobre a economia política do futebol a alguns ensaios mais recentes em torno de Amílcar Cabral. Mas, porventura ainda mais relevante, é a admiração que a sua permanente disponibilidade militante me inspirou. Nas suas palavras, traduzidas pelo Miguel Serras Pereira, continuaremos a falar sobre "a luz e a alegria irreprimíveis de ser comunista".

Historiador

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt