E subitamente, numa amena manhã de verão em Lisboa, um fado de Ana Moura ecoa em sussurro pela esplanada quase deserta de um café numa pacata rua nos arredores da Alameda: "Olha só, parece que a vida passou por nós, deixando um manto de água na minha voz..." A cena poderia ser corriqueira, até mesmo fora dos limites de Alfama, não fosse o fado entoado em falsete por Nayem Hasan, jornalista nascido em Bangladesh, 26 anos, os quatro últimos na condição de um lisboeta vindo de fora..Apesar de afinada, a voz não é famosa pelos fados. Correspondente em Portugal do canal de televisão bengali News 24, Nayem tem sido o porta-voz de uma comunidade geralmente diluída pela estereotipada perceção ocidental no difuso espectro dos "indianos", mas que costuma retribuir a visão turva com um olhar curioso, generoso e grato ao povo que a acolheu..Mesmo sem querer alimentar estereótipos, Nayem reconhece ser uma exceção entre os patrícios, reconhecidos pela fama de exímios comerciantes. Antes de ser a voz e o rosto dos bengalis em Lisboa, foi a voz e o rosto por trás dos balcões de cafés e receções de hotéis, cumprindo a portagem imposta aos imigrantes de aceitarem emprego em funções para as quais têm qualificações a mais. "Era natural, pois sabia que seria difícil trabalhar com jornalismo antes de aprender o português", contemporiza. O novo idioma foi aprendido por entre chávenas e pastéis de nata, a lição sobre a diferença entre "um pão e dois pães" ensinada pelos colegas de trabalho. Hoje, o que era muro transformou-se em ponte..Uma ponte que as autoridades portuguesas reconhecem como valiosa no diálogo com os imigrantes bengalis, nem sempre tão fluentes assim em português. Intermediado pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), Nayem usa as habilidades de comunicador em vídeos para entidades como o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a Direção-Geral da Saúde (DGS), difundindo mensagens de boas práticas ou no esclarecimento a questões relacionados à pandemia. "Como falo hindi e urdu, recentemente passei a fazer também vídeos às comunidades de indianos e paquistaneses", explica..Um destes trabalhos de Nayem, o Reset Today (reset2unite.com), recebe financiamento da União Europeia numa iniciativa de se evitar que os jovens muçulmanos em Portugal sejam seduzidos pelo discurso de radicalismo e extremismo religioso e acabem recrutados por grupos terroristas. Na função de um dos embaixadores do programa, Nayem usa a experiência própria de um imigrante acostumado a frequentar a Mesquita Central de Lisboa e que soube integrar-se na comunidade local de forma plena, sem abrir mão de sua cultura ou dos pilares religiosos, como evitar o consumo de bebidas alcoólicas..Se o vinho português está fora de questão, o mesmo não pode ser dito de outra bebida típica. "Desde que cheguei, troquei o chá popular em Bangladesh pelo café. O dia não começa sem uma chávena dupla", diz, assumindo-se fã do "combustível" indispensável aos workaholics..Nayem confessa que para dar conta das atividades reduziu as horas de sono. "São pelo menos 15 peças jornalísticas por mês, os textos, os vídeos para o ACM, o SEF e a DGS, e ainda ajudo na organização de eventos para angariar fundos para as causas da comunidade." O último desses eventos foi dedicado a um comerciante bengali de Sacavém, alvejado numa perna durante um assalto. Uma relação direta que o leva ainda a ser convocado para alguns serviços pela Embaixada de Bangladesh. "Sobra pouco tempo para descansar", resume. A agenda deverá ficar mais atribulada a partir de setembro, quando começam as aulas de um curso que fará no ISCTE..A energia aparentemente inesgotável do bengali tem uma inspiração bem portuguesa: Cristiano Ronaldo. Nayem exibe no telemóvel alguns posts do craque, não a driblar ou a marcar golos mas a replicar algumas de suas frases com teor motivacional. "Por causa dele, sou adepto do Sporting", conta o sportinguista à última hora, que pode ser visto em dias de jogos numa camisola que ostenta o próprio nome nas costas, sobre o número "7" imortalizado pelo misto de futebolista e coach..O tempo escasso não impede Nayem de dedicar alguns momentos a flanar por Lisboa, aparentemente sem rumo, até, inevitavelmente, findar na Praça do Comércio. "Gosto de contemplar o Tejo. Lembra-me o rio onde me banhava na infância, o Choto Feni, em Daca. Nestes momentos, vem-me à memória os versos de Al Mahmud, um poeta de que gosto muito e que para mim tem semelhanças com Fernando Pessoa", acredita..O que Nayem sente diante do Tejo define "saudade", uma das palavras preferidas em português. "Logo quando a ouvi, busquei no tradutor o significado. Mas o sentimento que a envolve eu percebi somente ao ver os portugueses pronunciarem-na com o corpo. Recentemente, vivi algo semelhante, quando fui de férias ao Bangladesh e senti um aperto no peito assim que o avião descolou. Aquilo já era saudade de Lisboa", conta.."Sonho" é outra palavra estimada por Nayem. Aprendeu o sentido com a repórter da RTP Mafalda Gameiro, quando foi personagem do programa Linha de Frente, dedicado aos imigrantes de Bangladesh. "Na época, ainda não trabalhava com jornalismo nem falava bem o português e disse que meu dream era ser jornalista, assim como ela. Daí, olhou-me nos olhos e falou-me de sonho, e, desde então, é o meu mantra.".O sonho de ser jornalista levou Nayem a deixar Bangladesh. O plano de cursá-lo na Manarat International University acabou frustrado pelo pai, que o aconselhou a graduar-se em Gestão. "Disse-me que se fosse jornalista acabaria assassinado, o que, infelizmente, é a realidade no país", conta. Mesmo assim, Nayem frequentou disciplinas nas turmas de Jornalismo e chegou a colaborar em jornais locais. Já em Lisboa, os vídeos que postava nas redes sociais chamaram a atenção da News 24, que o convidou a ser o correspondente do canal em Portugal. A partir daí, trabalho não falta, enquanto o diploma de gestor, nunca usado, descansa numa gaveta..Nayem, pelo contrário, parece não descansar, nunca. Pergunto se agora, jornalista de um canal do Bangladesh, considera o sonho finalmente realizado. "Os sonhos sempre se atualizam", responde. "Sei que é difícil trabalhar numa emissora em Portugal, mas posso fazer o caminho inverso e ser o correspondente de um canal português no Sul da Ásia, quem sabe", completa, deixando no ar a sugestão, pois, como diz o já citado e cantado fado de Ana Moura, "de que serve uma canção se ninguém sequer a ouve"?.Escritor, jornalista e lisboeta vindo de fora