NATO @ 70: o reforço da coesão transatlântica como prioridade

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No dia em que a NATO completa 70 anos, a Aliança Atlântica pode celebrar a sua continua importância enquanto aliança militar e organização política: a NATO, criada quatro anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, permanece uma aliança crucial, a maior aliança militar em tempo de paz do mundo - e a mais bem-sucedida da história, preservando a paz na Europa e no espaço euro-atlântico alargado. Esta aliança defensiva, criada para proteger a Europa Ocidental contra a agressão soviética alargou-se institucionalmente, desde o fim da Guerra Fria, incluindo hoje 29 países membros, e tendo às suas portas Estados como a Geórgia, e a Ucrânia, o que revela como a NATO permanece uma organização atraente para vários Estados europeus que a querem integrar, contra, entre outras razões, o revisionismo da Rússia pós-soviética.

A continua relevância da NATO, em 2019, prende-se com três aspetos, um primeiro evidente, os outros dois menos evidentes mas nem por isso menos relevantes.

Em primeiro lugar, a NATO mantém-se fundamental como aliança de defesa coletiva, contra ameaças de natureza variada, como agressões territoriais e ataques de cibersegurança, assim como aliança contra o terrorismo internacional e ameaças híbridas. Se olharmos para o papel da NATO nas últimas décadas, os aniversários redondos marcaram momentos bastante diferentes entre si quanto aos objetivos da organização. A queda do Muro de Berlim, em 1989, sugeriu um otimismo ocidental, fértil à expansão da NATO e dos seus princípios liberais e democráticos para o leste europeu; a intervenção militar da NATO no Kosovo, em 1999, sinalizou um novo papel para a Aliança com intervenções de caráter humanitário como orientação estratégica; em 2009 discutiu-se o futuro da NATO enquanto "aliança global" em função da participação da NATO na Guerra do Afeganistão no combate ao terrorismo internacional. Chegados a 2019, o aniversário de hoje marca uma NATO de regresso ao seu "core business" de defesa coletiva territorial acentuado pela anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014.

Em segundo lugar, o valor da aliança militar é ampliado pelo caráter político da organização, como é repetidamente sublinhado também pelos responsáveis militares da Aliança. Durante a Guerra Fria, a NATO desenvolveu-se através da criação de uma comunidade de segurança transatlântica, livre, democrática e defensiva, composta por Estados que comungavam dos princípios e valores subjacentes ao mundo livre. A inclusão de Portugal, como membro fundador nesta organização representou a exceção que confirmou esta regra: as credenciais de aliado fiável, ao lado das potências aliadas, contra as potências do eixo no decorrer da Segunda Guerra mundial, apesar da neutralidade (colaborante), garantiram que Portugal não fosse excluído, para além da evidente mais-valia geoestratégica dos Açores. A NATO tornou-se, mais do que uma mera aliança militar, uma comunidade de segurança transatlântica, que atenuou o dilema de segurança entre os Estados vizinhos europeus e confirmou os Estados Unidos como o "pacificador da Europa" (ocidental) em tempo de paz. Assim, a NATO serviu o duplo propósito de ser um garante na defesa contra a União Soviética e de se asumir como comunidade política transatlântica, essencial para a coesão interna entre os Estados que a integravam.

Por último, a NATO não apenas sobreviveu a extinção do Pacto de Varsóvia, a aliança militar liderada pela União Soviética, e alargou-se a novos Estados membros e adaptou-se estrategicamente ao pós-Guerra Fria, mas tornou-se um dos pilares mais sólidos da ordem internacional liberal e do alargamento do seu enquadramento político-normativo.

Contudo, ao mesmo tempo que o valor da NATO deve ser celebrado, deve reconhecer-se que a Aliança se encontra em crise, por três razões principalmente:

A primeira razão prende-se com a posição dos Estados Unidos e a atual ausência de vontade de liderança da Aliança Atlântica pelo Presidente Trump. Tendo considerado a NATO como organização obsoleta enquanto candidato presidencial, Trump considera a NATO uma organização dispensável, quanto muito uma aliança no sentido clássico, com uma dimensão transacional, onde os Estados aliados têm apenas obrigações a cumprir. Trump não só não vê a Aliança como uma comunidade de segurança, assente numa comonalidade de valores, como ponderou retirar os EUA da mesma. Isto retirou aos aliados europeus a certeza da garantia de proteção norte-americana, através do artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, pedra angular da Aliança durante mais de seis décadas. Em desacordo, o Secretário de Defesa James Mattis escreveu na sua carta de demissão, em dezembro passado que a força dos EUA continua "inextricavelmente ligada" à força do "sistema único e abrangente de alianças" que os Estados Unidos construíram nas últimas décadas. A posição de Trump é inédita ao ponto de, em janeiro de 2019, a Câmara dos Representantes ter aprovado uma medida que impede o presidente norte-americano de retirar os EUA da NATO. Nas recentes palavras de Nicholas Burns e Douglas Lute, dois antigos representantes permanentes dos EUA na NATO, "a ausência de uma liderança norte-americana forte e baseada em princípios é a maior ameaça, pela primeira vez na história".

A segunda razão prende-se com as tendências centrifugas e illiberais dentro da comunidade transatlântica, e com o receio de que Brexit e o retrocesso democrático em alguns Estados membros, como na Hungria, Polónia e Turquia esteja a comprometer a solidariedade e unidade da aliança. Existem divergências profundas entre aliados não apenas sobre ameaças e riscos, mas também sobre a condução da política interna e o estado das democracias europeias, com implicações para o grau de confiança e cooperação necessárias para forjar compromissos perante as ameaças multifacetadas com que a NATO se depara. Na Europa, a adicionar a esta diminuição da coesão democrática, verifica-se ainda que o aumento dos orçamentos militares dos Estados da Aliança, com os qual todos os Estados se comprometeram na cimeira da NATO no país de Gales, em 2014, está a progredir de forma mais lenta do que previsto, dando, neste ponto concreto, razão a um discurso norte-americano que antecede Trump e que desde há muito tempo exorta os europeus a investirem mais na sua defesa e contribuírem mais para a segurança e defesa euro-atlânticas.

A última razão de crise prende-se com as contestações à ordem internacional liberal. Esta ordem corre hoje o perigo de implosão, contestada que é pelo revisionismo político e militar da Rússia e pela crescente consolidação geo-económica global da China, e fragilizada pelas deficiências da globalização, o illiberalismo emergente e, não menos significante, o percurso errático da política externa da administração Trump. Por outras palavras, o regresso da geopolítica e a competição entre grandes potências dificultam a sobrevivência da ordem internacional liberal, num ambiente securitário que é hoje cada vez mais complexo e perigoso e onde se verifica uma simultaneidade de crises e ameaças híbridas e assimétricas.

Perante este quadro de simultaneidade de crises, os lideres da Aliança terão de responder aos seguintes desafios no futuro próximo: primeiro, a liderança americana da Aliança tem que ser reforçada; segundo, a cooperação transatlântica, entre EUA e os seus aliados europeus, assim como entre a União Europeia e a NATO deve aumentar e não diminuir para fortalecer a defesa europeia sem diminuir a relevância da NATO. Ao mesmo tempo, os europeus devem fazer mais para convencer os EUA que a Europa é importante para os interesses estratégicos americanos em todo o mundo, e não apenas para proteger os europeus. No entanto, este sinal terá pouca credibilidade enquanto persistir a discrepância europeia quanto ao aumento dos orçamentos de defesa europeus. É importante que Portugal assuma os seus compromissos de aliança e aumente para 1.41 por cento do PIB o orçamento deste ano. Mas enquanto um Estado como a Alemanha persistir em cumprir com grande relutância o compromisso dos 2 por cento até 2024, a credibilidade não apenas da Alemanha como ator de defesa, mas também da NATO e da UE, estará seriamente comprometida. Em terceiro lugar, nas relações com a Rússia a NATO acabou de anunciar o reforço da sua presença naval no Mar Negro: se se trata de uma medida relevante para a Ucrânia que continua a sentir-se diretamente ameaçada pelas agressões russas, no leste do país e no Mar de Azov, parece improvável que, à exceção da Finlândia e da Suécia, a NATO venha a integrar novos membros num futuro próximo. Por outras palavras, a relação com a Rússia será determinante não apenas em termos bilaterais, mas na definição do futuro quadro geopolítico do espaço euro-atlântico alargado. Por último, seria importante a NATO definir como se pretende posicionar face à estratégia global da China, que está fixar presença no espaço euro-atlântico através do seu projeto geo-económico e político da Belt and Road Initiative, com investimentos relevantes nas infra-estruturas europeias assim como aquisições de tecnologias avançadas, o que, a médio prazo, poderá ter efeitos sobre a coesão da comunidade transatlântica em como esta se posiciona perante esta nova potência global.

No seu conjunto, estes fatores constituem uma agenda muito complexa a definir para os próximos anos. Hoje, o momento deve legitimamente ser de celebração. A partir de amanhã, as respostas da Aliança Atlântica a todos estes desafios devem proliferar. O discurso de Jens Stoltenberg, ontem no Congresso dos Estados Unidos e a decisão dos Estados membros de prolongar o seu mandato como Secretário-Geral são já dois sinais iniciais importantes.

Investigadora IPRI-NOVA

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