São nascimentos pré-guerra na Ucrânia, gravidezes que ocorreram antes desta crise e acredito que, em 2023, esse aumento não se irá manter devido ao impacto da guerra. O aumento do custo de vida, a inflação, o clima de insegurança, a mudança no setor da energia e o facto de não haver um cenário de melhoria à vista - pelo contrário, achamos que caminhamos para uma situação ainda mais complicada para as famílias portuguesas - irão pôr um travão aos nascimentos", prevê Vanessa Cunha, socióloga e investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa)..As decisões reprodutivas estão muito dependentes das conjunturas e, se as perspetivas são negativas, as pessoas não avançam com a decisão de ter filhos. O principal fator para criar um clima positivo é ter trabalho não precário, refere a investigadora.."As famílias estão muito dependentes do mercado de trabalho. Os apoios públicos são importantes, particularmente em momentos em que o mercado de trabalho é mais inóspito, mas as pessoas não tomam decisões por isso - pelo menos na sociedade portuguesa, em que o estado social não é tão generoso como em outros países..Mesmo após as transferências sociais, as famílias mais pobres são as que têm filhos: as monoparentais (em que só há um rendimento, quando há) e as numerosas. As famílias precisam da estabilidade e dos rendimentos do trabalho para se organizarem e terem filhos; e precisam de políticas económicas de serviços, como equipamentos para a infância, educação pré-escolar gratuita, medidas que permitam conciliar o trabalho com a parentalidade", defende a socióloga..Entre janeiro e novembro, foram estudados 76 692 recém-nascidos no âmbito Programa Nacional de Rastreio Neonatal (PNRN), conhecido como o "teste do pezinho". Indica mais 4 376 bebés do que em igual período de 2021 (72 316), ano em que a natalidade voltou a bater no fundo (79 217 no total). O estudo é coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, através da Unidade de Rastreio Neonatal, Metabolismo e Genética, do Departamento de Genética Humana, no Porto. Não traduz o número exato de nascimentos - o teste tem de ser realizado entre o 3.º e o 6.º dias de vida - mas é equivalente..É a partir de agosto que há mais nascimentos, o que indica um clima de maior confiança face à pandemia da covid-19. Em 2022, há uma média mensal de sete mil nascimentos, mais 500 do que no ano anterior. Em 2019, realizaram-se 87 364 rastreios neonatais, número que caiu para os 85 456 em 2020, continuou a descer em 2021 (para baixo dos 80 mil) e subiu este ano.."Nos anos da pandemia, tivemos uma nova quebra, que não teve tanto impacto como nos anos da crise devido ao discurso político e às medidas de mitigação da pandemia. Houve uma almofada para que as famílias, nomeadamente na questão do emprego, mantivessem os seus projetos. Houve um choque muito grande no início da pandemia e as pessoas tiveram receio, mas não foi tão intenso como poderia ter sido porque houve uma tentativa de não se perderem postos de trabalho. Em sociedades como a portuguesa, em que homens e mulheres estão muito dependentes da sua relação com o mercado de trabalho, é fundamental ter a segurança de que o emprego não vai desaparecer", explica Vanessa Cunha..Mas a crise demográfica mantém-se. Na última década, agravou-se o fenómeno de envelhecimento da população, "com o aumento expressivo da população idosa e a diminuição da população jovem", indicam os Censos 2021. O país registou um decréscimo populacional de 2,1%. Diminuiu a dimensão média dos agregados domésticos e aumentou o número de pessoas que vivem sozinhas. Cresceu o número de núcleos familiares monoparentais e baixou o das famílias numerosas.."Tem havido ligeiras oscilações que não alteram as tendências de fundo. Temos um processo de envelhecimento que, no topo, está ligado à longevidade e, na base, à redução de nascimentos. Muitas vezes, estamos a falar de alterações que parecem que são uma mudança de tendências mas obedecem a contextos mais circunstanciais que alteram ligeiramente os indicadores. As grandes mudanças foram durante o período da crise e da austeridade, o que teve um impacto muito forte a nível da natalidade e da fecundidade. Muita população em idade de constituir família saiu, levando consigo os projetos de parentalidade. Muitos não regressaram e tiveram os filhos no estrangeiro; os que ficaram tiveram mais dificuldade em concretizar os seus projetos face à instabilidade laboral e a quebra de apoios públicos, nomeadamente no abono de família. As famílias sentiram-se desamparadas e puseram em suspenso os projetos de ter filhos", salienta a investigadora..Atingimos nesse período o mínimo histórico de índice de fecundidade (crianças por mulher em idade fértil): 1,21 em 2013. Após a austeridade, houve um período de recuperação. "Algumas pessoas conseguiram concretizar os projetos que tinham em suspenso, ter um segundo e, até, o terceiro filho, mas foram processos de recuperação, não para inverter a tendência da quebra de nascimentos"..ceuneves@dn.pt