No primeiro ano a trabalhar no estrangeiro, conquistou o título de campeão da Ucrânia com o Shakhtar Donetsk. Que balanço faz desta experiência? Quando atingimos os objetivos é normal que fiquemos com uma sensação de paz interior e mais motivados para o futuro. Por isso, tem de ser um balanço positivo, mas embora com uma parte que belisca este sucesso, que é a pandemia que tem sido tão negativa para a humanidade. Foi algo que atingiu todos e que pôs em causa o sentido de estarmos fora do país. Em determinado momento tivemos dúvidas se seríamos campeões no campo ou na secretaria, mas a verdade é que perante um infortúnio destes não podemos alhear-nos do mundo em que vivemos..Chegou a colocar em causa o sentido de estar fora de Portugal? Quando deixamos o nosso país, com objetivos, e quando as coisas não correm como esperado, com o mundo em cacos, longe da família, dos amigos e das nossas rotinas... é natural que pensemos. Saí para jogar um novo campeonato, com um bom projeto para praticar um futebol atraente e, de repente, parou tudo e ficámos os dias em casa..Esteve sozinho durante esse período de confinamento? Sim, estive sozinho em casa. A minha família está em Portugal. É nestas alturas que pensamos que tudo é travado quando decidimos agarrar uma proposta de trabalho que nos entusiasma. Tirando isso, não tive qualquer problema porque desde os 17 anos, quando saí de casa dos meus pais, que fazia as tarefas diárias. Mas tenho de dizer que eu e os meus assistentes somos uns privilegiados porque estamos num clube de grande dimensão que garante que nada nos falta. No entanto, no que diz respeito ao equilíbrio emocional, há uns dias melhores, outros piores..Nunca se sentiu isolado? Nunca. Vivo num condomínio, onde também estão os meus assistentes, e além disso o conceito de família está muito presente no Shakhtar, afinal tínhamos sempre contactos com o presidente, dirigentes, médicos... nunca nos faltou nada..Iniciou esta aventura na Ucrânia há um ano, quando foi escolhido para render Paulo Fonseca, que foi tricampeão. Foi uma herança pesada? Não pesou nada! Quanto mais choruda é a herança melhor... é como as heranças que os pais deixam aos filhos. Difícil é receber uma equipa que não conquista títulos nem tem qualidade. Foi uma satisfação imensa receber esta equipa das mãos do Paulo Fonseca..Mas se não tivesse conquistado o título seria um fracasso... Claro que seria, mas nós temos de ter sempre a exigência máxima. Eu sabia a responsabilidade que tinha de apurar a equipa para a Liga dos Campeões que representa um encaixe de 40 milhões de euros, mas isso não me assustou..Por que dificuldades passou nos primeiros tempos? Senti poucas dificuldades, pois tinha um apartamento à minha espera, um tradutor que me facilita a comunicação e quando chegou o frio... bem, estive um ano em Chaves e as temperaturas até foram semelhantes. É algo violento, mas é também para isso que somos bem pagos. Somos máquinas preparadas para nos destruirmos e nos regenerarmos..Começou a época com uma derrota na Supertaça com o Dínamo Kiev. Preocupou-o? Apesar da derrota, recebemos os parabéns do presidente por termos jogado tão bem. Acabou por ser um impulso para o que veio depois porque a administração do Shakhtar quer bom futebol e ofensivo. Nós sabemos que temos de ser campeões, mas com qualidade. Aqui, quando ganhamos sem qualidade, não é muito confortável..Nota-se, pela forma como fala, que este é um projeto à sua medida. É assim? Sou um privilegiado porque gosto de trabalhar com jogadores inteligentes, que interpretam bem os momentos do jogo, mas também porque tenho na equipa pilares que suportam os mais jovens e porque tenho ao meu dispor qualidade, que é aquilo que mais interessa, independentemente da idade. Temos jovens com enorme potencial para desenvolver e isso apaixona-me. Vivo entusiasmado: ver que determinado jogador tem qualidade mas ainda não está preparado e, três meses depois, constatar que está pronto e que pode ser lançado no jogo com o Dínamo. É isso que me realiza e satisfaz a administração do clube e os jogadores..É o melhor projeto que alguma vez teve? Sem dúvida. Nunca tive um projeto para ser campeão numa primeira liga e vivo feliz por ter aparecido a quatro mil quilómetros de distância do meu país e também por ter correspondido ao que me foi pedido..Sente que em Portugal não obteve reconhecimento pelo trabalho que fez? Tive o respeito pelo trabalho que fiz, mas reconhecimento é outra coisa. Posso dizer é que dei sempre o máximo de mim nas instituições que representei. Nem sempre ganhei, mas dei sempre o máximo..Tem mais um ano de contrato, vai continuar no Shakhtar na próxima época? Vou continuar, se a administração também quiser que eu fique..Voltar a trabalhar em Portugal não está no seu horizonte mais próximo? Não tenho como objetivo voltar a trabalhar Portugal. O mundo é o meu mercado, sendo certo que quando ficamos sem emprego é natural que tenhamos de voltar a casa..E se fosse convidado por um dos três grandes, as equipas que lutam pelo título? Olharia para esse clube da mesma forma que olho para o Shakhtar....Há a ideia de que os jogadores e os treinadores portugueses não têm muito interesse em voltar a Portugal por causa das constantes polémicas e do ruído que está instalado. Sente isso? Eu consigo viver no meio da polémica porque não me interessa o que os outros dizem, embora tenham o direito à sua opinião, mas não me desequilibram. Vivi sempre sozinho, tive de lutar muito e senti as agruras quando ninguém olhava para mim. Por isso, se tiver de trabalhar debaixo de ruído, trabalharei..Já tem traçados os próximos objetivos? Voltar a ser campeão, neste caso conquistar o penta para o Shakhtar, e fazer uma boa carreira na Liga dos Campeões. Neste ano fomos relegados para a Liga Europa no último jogo porque perdemos [0-3] em casa com a Atalanta, que foi mais competente..Esse jogo ficou-lhe atravessado? Não ficou... foi um jogo com muitas incidências. Assim como eu falhei, o árbitro também não esteve bem e quem lucrou com isso foi o Gasperini [treinador da Atalanta]. O que fica é que passámos para a Liga Europa e que na nossa carreira na UEFA não perdemos nenhum dos cinco jogos fora de casa, algo que só está ao alcance de uma equipa de grande dimensão..A Liga Europa permitiu-lhe regressar a Portugal para defrontar o Benfica. Foi especial? Foi especial jogar em Portugal, mas não por ter sido contra o Benfica ou outro qualquer clube. Foi um prazer voltar. Aqui digo aos ucranianos que o meu país é lindo... E isso é algo que tem muito significado quando estamos tão longe. Quando foi o sorteio, tinha a sensação de que íamos jogar com uma equipa portuguesa e saiu o Benfica. Foi uma felicidade ver a família, que me visitou numa altura em que já havia covid. Gostei de rever amigos e colegas de profissão. Fiquei satisfeito porque venci, não por ter sido ao Benfica mas por ter sido pelo Shakhtar..Nesse jogo teve oportunidade de abraçar Bruno Lage, que nesta semana foi demitido... Foi uma surpresa. Os treinadores passam sempre por maus momentos e nada tem que ver com a competência. A condição psicológica é muito importante no futebol e há ciclos negativos dos quais é difícil sair..A conquista da Liga Europa é um objetivo do Shakhtar para esta época? Para já temos de passar o Wolfsburgo - e vencemos na Alemanha 2-1 - para chegar à final a 8. Mas esta competição será um problema porque querem que voltemos a jogar fora, o que não é justo. Será um problema porque vamos disputar esta competição duas semanas e meia depois do final do campeonato da Ucrânia. Na prática, vamos ter de fazer uma quarta pré-temporada. Tenho de me reinventar, mas também motivar e incentivar quem me rodeia. É uma situação nova, mas estamos todos em pé de igualdade..Imagino que desde que chegou ao Shakhtar nunca tenha ido a Donetsk. Não. O conflito mantém-se, aquela zona continua a ser dominada pelos russos. É o lado pior e irracional da vida. O meu motorista foi lá nesta semana visitar a família, diz que está tudo tranquilo, mas a verdade é que pouco sabemos sobre o que lá se passa. É pena termos lá um estádio que levava sempre 30 a 35 mil pessoas e agora jogamos longe, em Kiev, com quatro ou cinco mil.