"Não sou capaz de inventar"

Da Lisboa de sempre à Lousã e à Figueira da Foz da infância, de Havana a Londres. Das viagens épicas ou trágicas dos outros, para terminar numa viagem interior porque para onde quer que se vá leva-se "o que se tem na cabeça". A nova coletânea de crónicas de Mexia não é literatura de viagens, é sobre "o fascínio do lugar".
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Chegamos ao bater da hora combinada. Pedro Mexia já estava instalado, num cadeirão do bar do hotel. Junto à chávena de café, há documentos, blocos e várias canetas. Para quê tanto material de escrita? "Fico com pânico de ficar sem canetas." Prefere ter uma caneta à mão para apontar uma ideia do que usar o telemóvel, apesar de que por vezes tem dificuldades em compreender o que garatujou. "Tenho uma letra horrível."

Encontramo-nos num hotel, um espaço "inautêntico, hostil e alienado" ao qual dedica uma das crónicas de Lá Fora. Isso faz dos hotéis um bom sítio para se escrever?

Gosto imenso de escrever em hotéis e gosto imenso de ler e de estar em hotéis em geral, embora sejam isso tudo negativo que eu aponto. Há um lado impessoal e clean nos hotéis de que gosto bastante.

Há menos distrações?

Teoricamente sim. É um espaço diferente, que não é nosso, não estamos em casa. Não sei se escrevi muito em hotéis mas provavelmente sim. No verão tendo a escrever em hotéis. Mas escrevo em qualquer sítio, basicamente.

E são espaços amplamente retratados na literatura e no cinema.

Sim, há toda uma mitologia, desde conspirações internacionais a histórias amorosas, os hotéis são um palco ideal para encontros e desencontros, se bem que tenha essa carga romanesca. Há um texto gémeo no livro, que é sobre aeroportos. Sendo que gosto de hotéis, mas não gosto de aeroportos.

Um não lugar.

Sim, é essa ideia dos não lugares, porque estamos lá umas horas ou uns dias e provavelmente ninguém se lembra de um quarto de hotel a não ser que fosse espectacularmente bom ou espectacularmente mau. Um quarto de hotel, pelo menos o quarto em si não fica na nossa memória.

Que viagem é a que propõe em Lá Fora?

Este livro é um bocadinho diferente dos outros. Não escrevo sobre espaços, não é aquilo que mais me motiva, daí a relativa estranheza deste livro. Quando estava a fazer uma seleção de crónicas para um livro não tinha tema, e este nasceu do facto de haver um conjunto relativamente pequeno de textos, que não dava um livro, sobre sítios onde fui, podia ser perto ou noutro continente, e um núcleo muito grande de textos sobre o que viagens significaram para outras pessoas. Quer viagens de exploração, quer viagens de exílio, quer viagens aos sítios onde se foi feliz... O livro acaba por ter três partes, uma mais teórica, um núcleo de textos biográficos de viagens, e depois o fascínio do lugar, o facto de as pessoas viverem com saudades do sítio onde nasceram ou viveram. Não foi propositado, mas apercebi-me que tinha muitos textos em que falava de livros ou filmes onde isso era uma obsessão. Não por acaso, o meu filme favorito, sobre o qual já tinha escrito e voltei a escrever, Paris, Texas, é a ideia de um lugar onde acha que foi concebido, é como regressar ao útero.

O livro começa com uma crónica sobre a Feira Popular, depois outra sobre os cinemas e os salões de jogos e acaba numa crónica sobre uma experiência imersiva, uma espécie de cápsula aquática. É uma viagem interior?

Começa com uma distanciação espacial. Primeiro Lisboa, depois os arredores, por aí fora. A última crónica foi uma das poucas experiências que foram deliberadamente para escrever sobre ela. Não é uma viagem a sítio nenhum, mas é para acabar o livro Lá Fora com um texto cá dentro, isto é, a ideia de flutuação, silêncio, privação sensorial, etc., é a de que nós nos libertamos, largando o nosso eu. Não acredito nisso, como está amplamente documentado. Não acredito, pelo menos que isso esteja ao meu alcance, é uma espécie de epílogo irónico. Não vale a pena andar lá por fora porque se volta sempre ao interior da nossa cabeça. Mesmo quando estamos numa experiência para pensar em nada, há sempre coisas na nossa cabeça, incluindo lugares. A experiência não foi escrita de propósito para entrar no livro. Não gosto do processo de viajar, mas gosto de estar noutros sítios. Mas onde quer que se vá carrega-se o que se tem na cabeça, daí esse texto que se chama Geringonça.

Afirma a certa altura que prefere a nostalgia ao saudosismo. A felicidade conjuga-se apenas no pretérito?

Ah, de maneira nenhuma. De resto a nostalgia não sei se diz respeito apenas à felicidade, de ter um sentimento de melancolia em relação ao passado. Às vezes é o contrário, porque se perdeu, mitificar o passado, ou seja, às vezes as pessoas têm saudades da sua infância sem terem razões objetivas para terem saudades. Mas é a infância como possibilidade, como tempo em que tudo podia acontecer. Essa nostalgia não é necessariamente da felicidade passada, a felicidade é talvez uma experiência mais do presente do que do passado.

Eu diria mais de uma felicidade fabricada.

Mas é uma felicidade q.b., melancólica, ligada ao fim de alguma coisa. Há um texto que acho bastante significativo, tanto que o fui repescar a outro livro sobre o Café Império. Senti uma nostalgia sobre o café que ia fechar sem ter nenhuma memória especial ligada àquilo.

Ao escrever sobre viagens menciona meios de transporte como o comboio, o avião ou o barco. Mas não há uma linha sobre o automóvel.

Em primeiro lugar porque sou peão. E depois porque não sinto fascínio sobre nenhum meio de transporte em particular. O comboio, talvez, é aquele que associo mais a uma certa mitologia.

A crónica mais surpreendente foi a da Tomatina. A imagem de Pedro Mexia é a de um autor melancólico, com um gato aninhado ao colo...

Que não tenho...

Com um chá ao lado...

Que não bebo...

Como é que convive com a persona pública, a imagem que se tem de si?

A imagem que as pessoas têm de pessoas públicas ou semipúblicas não são inteiramente falsas, mas são claramente parciais. Nenhuma pessoa é só uma coisa. Se definirmos alguém só com uma palavra ou uma ideia, a não ser que essa pessoa seja muito unidimensional, isso não esgota. É-me muito fácil surpreender alguém, porque as pessoas associam-me a duas ou três coisas. Basta verem-me no Estádio da Luz para achar estranho. Acham estranho verem-me em concertos, o que é uma coisa absurda. Escrevo sobre música pop desde que escrevo em público. A Tomatina [em Buñol, Valência] não era um sítio muito óbvio para ir, de facto. Eu via as imagens na televisão e não percebia aquilo. Era fascinante e estranha. Não é uma festa religiosa nem uma tradição antiga. Estava para ir há anos e anos. Não fui para escrever uma crónica, mas quando fui soube que ia escrever sobre aquilo. Acabou por ter relação, embora não fosse essa a intenção, com a crónica da Geringonça, porque é outra experiência de dissolução do eu, aí não no silêncio, mas na massa, no todo. Nunca fui a uma rave ou a uma orgia, mas imagino que sejam parecidas no sentido em que há um corpo coletivo e ali sujidade coletiva, também.

Lê-se a certa altura "estar longe é geralmente melhor do que estar aqui". Quais são os sítios em que preferia estar quando não quer estar aqui, reais ou imaginários?

O meu sítio preferido é Londres. Não sei se gostava de viver, pensei nisso há uns anos. Não sei se em casa é a palavra certa, mas sim. Houve uma ou outra cidade de que gostei muito, aconteceu com Dublin e Buenos Aires, por exemplo, mas em geral não acontece ter vontade de lá viver. Mesmo Londres, a cidade a que fui mais vezes, talvez uma dezenas de vezes, o que conheço é nada, é uma aproximação. Sítios imaginários, gosto muito do Dicionário de Lugares Imaginários, do Alberto Manguel, como exercício imaginativo, mais pela capacidade literária dos autores. Gostava de ir à Atlântida ou à Tróia mítica... Bom, não sei se gostava.

Ao lermos estas crónicas juntas há um tom comum, de sobriedade. É-lhe natural ou exige uma grande disciplina?

Há duas crónicas que corresponderam a duas encomendas [sobre a Assembleia da República e o Lux] que têm um tom diferente. As questões estilísticas são intrínsecas. Não vou escrever um texto barroco ou prolixo ou esfuziante ou carnavalesco porque não sou assim nem saberia escrever assim. O tom é muito contido.

Não se contém demasiado, por vezes?

Há pessoas que acham que me contenho demasiado, mas não sei qual seria o grau certo de contenção. Escrevo como me é natural escrever, não é uma pose no sentido de ser uma forma de fingimento com fins literários. Há técnicas que toda a gente usa a escrever um texto. Se quero ter graça uso o exagero, mas não é para enganar ninguém, é um truque aceite no mercado, por assim dizer. Deixo as crónicas sempre para o fim, deixo-as em cima do relógio, presumindo que isso force a inspiração, o que nem sempre acontece. O que parece disciplinado é na verdade bastante natural. Às vezes é limado na revisão, não porque queira encontrar uma fórmula qualquer mas porque o que estava a mais não era natural. Quando há dias entre a escrita e a revisão há sempre frases a mais.

Quanto tempo lhe ocupa uma crónica? Pode ser um dia?

Já aconteceu. Num dia em que esteja de férias, sem nada para fazer. Mas acontece pouco. Para o bem e para o mal a crónica tem o lado da imediatez, embora sejam crónicas um bocadinho diferentes. No outro dia recebi um email simpático de um leitor que me perguntava porque é que eu escrevera sobre aquele tema. Isso sim, não sinto a necessidade - e tenho tido a sorte de ter diretores e editores que não sentem demasiado a necessidade de ser a propósito da atualidade, embora bastantes sejam. Tenho verificado pelos mails que recebo que as pessoas gostam disso. Sobre a atualidade há sete ou oito textos e de repente está ali outro que não tem a ver sobre aquele assunto.

Escreve a certa altura que tem uma memória "altamente deficiente". Como é que faz para ligar os pontos entre o tema da crónica e as passagens dos autores que cita?

Não tenho memória no sentido de me lembrar dos nomes e das caras das pessoas, dos sítios onde estive. Mas por exemplo não tenho nenhum problema em memorizar letras de canções e tenho uma certa facilidade associativa, digamos assim. É-me muito fácil pensar numa coisa a propósito de outra. Às vezes, segundo algumas pessoas, de forma abusiva e extravagante. Associo com frequência um acontecimento a um livro ou uma pessoa a um filme, ou uma cara a uma pintura.

Na prática como é que o faz? Tem uma biblioteca organizada?

Na medida do possível. Gostava de ter os livros todos de A a Z numa abadia como tinha o Manguel, mas a vida moderna e as casas modernas não são compatíveis com grandes bibliotecas. Quando extravasa para estar em caixotes não pode estar organizada. Mas como todas as pessoas desarrumadas sei onde estão as coisas e é-me mais fácil trabalhar em casa porque tenho os livros à mão. Estou mais à vontade para levantar-me e pegar num livro. Como gosto de fazer essas associações, também gosto que as pessoas o façam. Uma parte substancial da correspondência são pessoas a pedir referências daquele autor ou livro. Fico muito contente com isso. Acho que já pus umas dezenas de pessoas a ler o Cesare Pavese, um dos meus autores favoritos.

Ainda em relação à memória, é capaz de recitar poemas seus ou de outros?

Meus, não. De outros, sim, mas não muitos. Não são necessariamente os que me dizem algo particularmente, como o Cântico Negro do José Régio, porque quando comecei a interessar-me por poesia o meu pai tinha o disco do João Villaret a ler poetas portugueses e esse poema ficava no ouvido. E alguns poemas do Jim Morrisson, do An American Prayer, coisas da adolescência.

Os seus pais tiveram importância no gosto literário ou no gosto pela leitura?

No gosto pela literatura, sim. No gosto literário, mais ou menos. As minhas leituras são muito mais anglo-saxónicas que as do meu pai, que como é normal na sua geração era de franceses. No caso particular dele de italianos também. Não digo quase todos, mas muitos dos autores mais importantes para mim são ingleses e americanos. Mas houve algumas descobertas de autores importantes para mim, pelo menos numa certa fase, que devo diretamente aos meus pais. Por exemplo, o primeiro diário que li foi do Torga, de quem o meu pai sempre gostou muito, de quem conhecia pessoalmente e que eu cheguei a conhecer através dele. Fiquei fascinado com a ideia de diários. A minha mãe, que estudou Germânicas, tem livros muito importantes para mim. Descobri o Hölderlin num livro anotado pela minha mãe. É uma mistura de gostos diferentes e de gerações diferentes, é muito importante, nascer com livros em casa ajuda a chegar à literatura, embora não haja nenhum determinismo. O que não falta são escritores que nasceram em casas sem livros.

António Mega Ferreira, no prefácio, diz que o Pedro Mexia é um dos poucos autores que "honra o género". Quem mais honra?

Não vou responder assim porque parecia que concordo com o António Mega Ferreira. Um prefácio é um sítio para dizer coisas simpáticas e acredito que sinceras, mas não é esse o ponto. Vou dizer pessoas que no meu hábito de leitor de jornais foram fundamentais, por razões diferentes: Miguel Esteves Cardoso e Vasco Pulido Valente. Têm em semelhante o lado cosmopolita e snob. No caso do MEC, o lado inventivo e lúdico, quebrou os espartilhos de uma certa seriedade, de que para ser sério tinha de ser sisudo. E o Vasco por esse lado muito enxuto da prosa, a misantropia e a ideia de que a história sempre se repete para pior. Leio-o como leio Uma Campanha Alegre, do Eça e do Ramalho. Tenho muitas coletâneas de crónicas e aquilo morreu, só era interessante quando toda a gente sabia do que estavam a falar. Não tinha virtude literária que fizesse com que durasse. Lia também com gosto o Manuel António Pina. E brasileiros, há uma plêiade de autores.

Não há nestas crónicas, tirando uma sobre Leonard Cohen, referências a música ou músicos. É propositado?

Acho que é pelo facto de o próximo livro ser sobre isso. Não tinha pensado nisso. Não sei se tenho textos suficientes para um livro, mas a música no sentido lato do termo é tão importante como a literatura e o cinema, são os pilares da minha educação. Depois da Cinemateca e da Biblioteca, a Discoteca...

Para quando um romance?

Não é quando, é se. Se escrevesse um romance seria uma autobiografia com nome mudados. Não seria só desinteressante literariamente, como duvidoso deontologicamente. Não sou capaz de inventar. Grandes escritores escreveram romances inventando muito pouco. Um dos meus romances favoritos, o Herzog, do Saul Bellow, fiquei a saber que as coisas mais extraordinárias do romance eram transcrições quase ipsis verbis de conversas e cartas. Gostava muito de escrever um romance. Mas nem sequer fiz uma tentativa, não me parece que esteja no horizonte.

Tem uma crónica sobre o DN. Começou há 20 anos a colaborar no DNa, mas antes já escrevia no DN Jovem. O DN está a preparar-se para mudanças. O que gostaria de ler no futuro DN?

Gostava que o DN fosse, e tem a obrigação de ser, um jornal à altura da sua história. É uma resposta um bocadinho genérica, eu sei.

É airosa.

Não quero fugir à pergunta. Porque foi o primeiro jornal onde escrevi, porque escrevia na redação e tudo o mais, tenho uma relação com o DN diferente do que com os outros jornais. Mas ninguém sabe o que é o futuro dos jornais. Para mim um jornal importante é aquele de que sinto a falta. Do género, vou uma semana para fora e peço a alguém para mo guardar. Hoje em dia há edições online, já não se passa desta maneira, a ideia foi-se esbatendo. No próprio Independente, jornal com que tive uma relação mais forte, mesmo não escrevendo lá na altura, só escrevi brevemente no fim, não durou o tempo todo, só os anos em que estiveram lá o MEC, o [Paulo] Portas e o Vasco. A ideia de que faz falta é muito importante. Há que dizer que os jornais também não são alheios a isso, mas é bastante importante chamar para a imprensa escritores. Muitos não sabem escrever só uma página, mas há escritores como Mário de Carvalho e Luísa Costa Gomes, que escreveram crónicas e que fazem falta aos jornais. Não estou a dar ideia nenhuma, mas ficava muito contente se a seguissem [risos].

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