"Não queremos fazer mais horas extras para estarmos saudáveis a tratar dos doentes"

João Oliveira é internista em Lisboa e já fez mais de 600 horas extraordinárias até fim de setembro. Sandra Hilário é cirurgiã em Leiria e já vai em mais de 400. Assumem viver em estado de exaustão, apesar de a medicina ser uma paixão e o SNS uma missão. Na semana em que o ministro aceitou voltar a negociar com os sindicatos, ambos dizem que "é hora do basta", porque não se vê "luz ao fundo do túnel".
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O número de horas que João Oliveira já cumpriu como médico especialista em Medicina Interna, no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, e que Sandra Hilário, médica especialista em cirurgia geral, cumpriu no Hospital de Leiria, ultrapassa as mil horas extraordinárias. João confessa que as horas que fez até final de setembro eram, normalmente, as que fazia durante um ano inteiro. "Só que de ano para ano tem vindo a aumentar e este ano piorou muito", conta ao DN. Sandra explica que as 433 que completou até à mesma altura são só as que estão a mais nas escalas iniciais, porque, depois, "há as outras que surgem pela substituição de um colega que ficou doente ou que teve um imprevisto. Essas, nem sequer contabilizei".

A cirurgiã é uma dos mais de dois mil médicos que já assinaram declarações de escusa para fazerem mais horas extras do que as 150 previstas na lei. Não é a primeira vez que o faz, mesmo assim, "já vou em 433 horas", comenta. "Antes, quando assinávamos esta escusa logo no início do ano para informarmos os nossos superiores que não estávamos interessados em fazer horas extras, vinham falar connosco e pediam-nos compreensão, porque não havia outra solução. Acabávamos por aceitar, mas agora somos cada vez menos e a situação está cada vez pior, sem vermos uma luz ao fundo do túnel. É hora de dizer basta", confessa, sabendo que poderá haver consequências para todos - médicos, SNS e sobretudo para os utentes. "Está na hora de nos ouvirem. O SNS precisa de médicos saudáveis, que tratem os doentes adequadamente", afirma.

João e Sandra, ambos dirigentes sindicais da Federação Nacional dos Médicos, optaram por trabalhar só para o SNS. "Não há tempo para mais", dizem. E, mesmo assim, falam de exaustão. O internista do CHULC assume que nos últimos quatro a cinco anos acumulou mais de mil horas no "chamado banco de horas do hospital. São aquelas horas que fazemos e não somos ressarcidos", explica.

João tem 42 anos e escolheu Medicina Interna porque era mesmo o que queria. "No meu tempo era preciso ter boa nota para conseguir ficar no serviço em que estou, no Hospital dos Capuchos. Hoje temos de andar a pedir aos colegas para não se irem embora".

Sandra tem 49 anos e diz ser "uma transmontana que quis vir estudar para a Faculdade de Medicina de Lisboa e que quis ir conhecer o Hospital de Leiria", onde fez toda a formação e ainda está. "Costumo dizer que cresci neste hospital. Não só vesti a camisola do SNS como a do hospital".

Sandra Hilário fala com o DN depois de ter saído de uma noite de 12 horas de urgência e a poucas horas antes de entrar de novo de serviço para fazer urgência interna. É assim a sua vida, assumindo mesmo: "Não tenho vida social. Se espremer bem o que faço, a minha vida é entre hospital e casa, casa e escolas e depois hospital. Não faço privada. Aliás, quando me perguntam qual é a minha privada, respondo que a única coisa que faço fora do hospital é ser mãe".

Sabe que não é só ela a ter esta vida. "Como eu, há muitos outros colegas que se dedicam só ao SNS. É uma causa e há muitos anos que vivemos o acumular da exaustão. Agora, está a vir tudo ao de cima". Em parte, argumenta, devido à "energia magnífica dos colegas mais novos. Foram eles que nos levaram para este ponto de viragem, foram eles os primeiros a dizer "basta", os primeiros a recusarem fazer mais horas e trabalho do que aquilo que lhes é pedido por contrato de trabalho, porque querem ter vida pessoal", mas explica: "Não quer dizer que estes colegas também não façam muitas horas extras. Todos os do meu serviço fazem. Todos têm colaborado sempre, mas fazendo-nos repensar, a nós, mais velhos, que o esforço que fizemos durante anos era um exagero e nem sequer saudável."

A cirurgiã assegura que "o que queremos como médicos é que o utente que precisa de cuidados tenha um médico a 100% na urgência para o tratar, e isso não está a acontecer. Sou uma pessoa consciente e sei que não sou capaz de servir bem o utente se continuar a fazer este exagero de horas".

Há semanas de trabalho que têm 80 horas para Sandra Hilário. "Parece que não têm fim e algumas sem dias de descanso. É impossível", diz, concordando que "a atitude das novas gerações foi um acordar para mim. Fez-me pensar também até que ponto era justo estar sempre a colocar o SNS à frente da minha família. Faltei a muitos aniversários, até dos meus filhos, a casamentos de família e a reuniões com direções de turma".

Foi o Hospital de Leiria que Sandra Hilário escolheu, porque era a região que o marido, militar colocado na Base de Monte Real, estava, optando assim por ficar num local "onde não tinha qualquer apoio familiar senão o de base". A opção foi sua, mas tem-se dedicado a 100% e " tem sido muito difícil conseguir articular a minha vida profissional com a pessoal. E como tudo continua na mesma tive de dizer basta, agora é a vez da minha família".

No serviço de Sandra, além dela, outros 12 cirurgiões com horário completo e a fazerem serviço de urgência assinaram declarações de escusa de mais horas extraordinárias. "Embora todos saibam que vamos ter de consentir em fazer algumas horas extras para tentarmos minimizar as consequências, senão a urgência de cirurgia ainda teria de fechar mais dias do que aqueles que vai ter de fechar".

Conta mesmo que ela própria nem é das que já tem mais horas extras, além das 150 previstas na lei. "Eu completei as 150 horas no início de abril, mas neste momento tenho, pelo menos, dois colegas que já fizeram, cada um, mais de 500 horas. Se cada um tivesse deixado de fazer horas extraordinárias quando completámos as 150, não sei o que seria do meu serviço, dos utentes e do SNS".

Destaquedestaque4,3 milhões. Este é o número de horas extras feitas pelos médicos até final de agosto, segundo dados do Portal da Transparência. A ACSS confirmou que até esta data foram gastos 302 milhões de euros só em horas extras com a classe médica.

A urgência de cirurgia do Hospital de Leiria fechou portas às 20:00 de quinta-feira e só vai abrir às 8:00 desta segunda-feira, dia 9. E isto vai repetir-se durante o mês de outubro às sextas, sábados e domingos.

Quando perguntamos se esta recusa, ou se este basta, não traz sofrimento a um médico, Sandra Hilário assume: "Claro que sim, mais do que sofrimento traz uma angústia enorme. Os médicos portugueses são competentes e reconhecidos nacional e internacionalmente e têm de ser ouvidos, têm de ter condições para prestar um bom serviço ao utente, e neste momento não temos. A margem de erro agora é mais elevada do que antes, somos menos e estamos exaustos. E isto é uma angústia porque a nossa missão é tratar bem os doentes".

Na opinião da médica, os recursos que existem hoje no SNS não são suficientes para dar resposta à população: "É fundamental que se criem condições para não saírem mais médicos do SNS e até para cativar os que saíram a regressar".

O colega de Lisboa concorda, dizendo que uma das suas grandes preocupações "é o desalento, o desânimo e o desespero dos médicos". "Estamos numa fase em que quem vai trabalhar, vai em sofrimento. Já estamos habituados a não poder fazer algum do trabalho que consideramos muito importante para a nossa formação cientifica precisamente porque estamos muito sobrecarregados, mas isso empobrece o SNS em termos clínicos e científicos".

João Oliveira fala com o DN ao volante do seu carro e no único fim de tarde em que consegue ir buscar as duas filhas, de cinco anos e de três, à escola. Era o único tempo em que o poderia fazer, porque o restante estava cronometrado entre hospital, urgência e casa. Em janeiro, nasce mais uma filha, tem direitos paternais a gozar, mas reconhecendo que se se dedica ao SNS como se dedica "é porque tenho muito apoio em casa, senão, não conseguia".

Na Medicina Interna, exerce várias atividades, além das consultas que assegura na área das doenças autoimunes nos Capuchos e na área pulmonar em Santa Marta, tem ainda as urgências externas em São José, onde é chefe de equipa, todas as quartas-feiras e com rotação à sexta, ao sábado e ao domingo, e urgências internas, entre duas a três por mês".

João é dos internistas que defende o "basta" a mais horas extraordinárias do que as 150 de lei, admitindo, no entanto, que ainda não assinou qualquer declaração de escusa. "Ainda não assinei porque no meu centro hospitalar estamos a decidir se apresentamos todos em conjunto ou não. Até porque, ao contrário de outros centros hospitalares, a administração tem feito esforços para nos tentar ajudar".

Por norma, João Oliveira faz, mensalmente, 50 a 60 horas extraordinárias, mas já houve meses a que chegou às 70 e às 80. "Sempre foi necessário fazermos horas extras, mas estas deveriam servir para colmatar os imprevistos, o que não está planeado. Por exemplo, a covid-19 foi uma coisa extra, mas, nem de longe nem de perto as horas extras que se faziam antes da pandemia se comparam às que são necessárias hoje. A nível pessoal começa a ser incomportável os médicos manterem-se no SNS com tanta pressão".

Destaquedestaque"Os médicos portugueses são competentes e reconhecidos nacional e internacionalmente e têm de ser ouvidos, têm de ter condições para prestar um bom serviço ao utente, e neste momento não temos. A margem de erro agora é mais elevada do que antes".

E continua: "Tirando esta última leva de internos que se tornaram assistentes hospitalares a grande maioria dos que saíram do SNS eram mulheres em idade fértil, engravidaram e perceberam que não queiram esta vida com filhos". No seu caso, confessa: "Só consigo vir buscar as minhas filhas à escola uma vez por semana, sendo que quando chego a casa quinta-feira de manhã, depois de uma noite de urgência, já não as vejo e que já não jantei com elas na quarta-feira. Muitas vezes quando saio de casa são elas que me vêm dizer: "Papá, temos saudades"".

João escolheu Medicina Interna como especialidade, uma das que é mais sobrecarregada na urgência, reconhecendo que o que mais o assusta, neste momento, "é ser cada vez mais difícil arranjar internistas de qualidade. A diferenciação em Medicina Interna tem uma dinâmica de trabalho que assente no trabalho de equipa e na hierarquia do conhecimento. Neste momento, há médicos que se formam e que não ficam nos hospitais, preferem o trabalho à tarefa". E conta: "Conheço cinco internos, que se formaram há pouco tempo, e que se organizaram para trabalharem em conjunto e sentirem-se mais confortáveis. Um dia por semana vão todos fazer urgência a um hospital, depois vão a outro. O problema é que veem um doente uma vez e nunca mais o acompanham ou discutem o seu caso, não fazem consulta nem internamento. Não há uma continuidade no seu trabalho, o que significa que, em termos de formação clínica, daqui a cinco anos serão médicos muito mais inaptos do que um colega que tenha prosseguido com a sua carreira no hospital".

Por isto, reforça, "vai haver um decréscimo de qualidade na nossa especialidade e isso é assustador. Há médicos que já estão a fazer isto há bastante tempo e pelos quais eu não gostaria de ser tratado".

Para João Oliveira a covid-19 "foi uma experiência muito traumática. Os profissionais deram de longe o melhor de si, mas viveram coisas que, na altura, nem se aperceberam. Na altura, o sentimento era de um certo heroísmo, mas os médicos vivem sempre desta sensação de ajudar o próximo, é algo que nos preenche, uma adrenalina que precisamos para nos sentirmos bem", mas passaram as vagas de covid-19 e continuamos a trabalhar na linha vermelha, com os níveis de exaustão a agravarem-se progressivamente, as coisas a piorar e sem existir uma luz ao fundo do túnel".

A verdade, sublinha, é que "a grande maioria dos médicos pensava que agora se iriam tomar decisões, que agora se iria perceber que os médicos são importantes no SNS e isso não aconteceu. Hoje, cerca de 40% do que faço num dia não é trabalho médico. É andar a pedir a secretárias de unidades e a outros colegas que, por favor, façam este ou aquele exame, porque se não for naquela altura, daí a uns meses o doente pode já não estar cá. Isto é desgastante e muitos colegas deixam de ter paciência".

À pergunta sobre o que fazer então? João Oliveira diz que "há três coisas essenciais". "A primeira é existir coragem política para definir o que se quer para o SNS daqui a cinco, dez ou mais anos, mas definir com um plano estruturado e não sempre com medidas que sentimos que são definidas em cima do joelho. Veja as Unidades Locais de Saúde (ULS) devem entrar em vigor em janeiro e ainda ninguém sabe como vão funcionar. É preciso coragem política para assumir uma direção".

A segunda, reforça, "é fazer uma proposta de trabalho aos médicos que estão no SNS como aos que estão fora que os motive a ficar ou a entrar no serviço público". A terceira tem a ver com as condições de trabalho. OU seja, "demonstrar que existe respeito pelos profissionais e que se está a traçar um caminho para que daqui a uns anos não se tenha de fazer 600 horas extraordinárias".

Para João Oliveira, "o que Governo fez, propor contratos que nos obrigam a fazer 250 horas extraordinárias, foi uma falta de respeito". Sandra Hilário - que às horas do hospital acrescenta todas as semanas mais seis ou oito no trabalho de emergência, numa VEMER, por considerar que "é "um trabalho de socorro fundamental que tem de existir 24 horas concorda e diz ao DN acreditar que a situação está a agravar porque "não se quer resolver o problema dos médicos".

"O ministro da Saúde é nosso colega e foi ele mesmo que relembrou que o SNS dependeu sempre da boa vontade dos médicos. Ninguém quer fazer mais horas extras, não é uma questão de dinheiro, porque a proposta do ministério vai no sentido de que sejam pagas de forma mais simpática, a questão já tem a ver com a resposta correta que o SNS tem de dar aos utentes. E para isso são precisos médicos. Senão o problema vai ser perpetuado".

No final, a cirurgiã deixa uma mensagem: "Aos colegas peço que continuem a fazer o bom trabalho que sempre temos feito e que não desistam do SNS. Ao Governo que pense no cidadão português e nos utentes que precisam de ter os médicos a 100 % para serem bem tratados".

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