"Não podemos mais fechar os olhos à realidade dramática da prostituição"

Mulheres Socialistas entregaram ao líder parlamentar um anteprojeto de lei para quebrar o "insustentável silêncio do Estado". Linha vermelha: a prostituição não pode ser um trabalho.
Publicado a
Atualizado a

"Recorrentemente, a Assembleia da República é convidada a legislar em matéria de prostituição. A polémica não levou a qualquer tomada de posição dos vários titulares de do direito de iniciativa legislativa. E não gerou um desfecho legislativo, unânime ou maioritário. É uma situação insustentável (...) O silêncio do Estado tem um profundo impacto na sociedade. O silêncio não é sinal de tolerância mas de insensibilidade. O adiamento da aprovação de uma lei é interpretada por um cada vez maior número de cidadãos e cidadãs como uma fuga às responsabilidades".

A explicação para a entrega de uma proposta de Projeto de Lei encontra-se resumida nesta frase e na afirmação vincada de que não se pode "mais fechar os olhos" a uma realidade que "funciona como um negócio" que alimenta "o crime organizado, o tráfico de seres humanos, crimes muito violentos e a corrupção". Um alerta: "cada vez mais jovens, entre os quais um número alarmante de crianças, são forçados a prostituir-se".

Para travar "esta situação insustentável", Elza Pais, ex-deputada e líder das Mulheres Socialistas, e um grupo de deputadas já entregaram a Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, as 14 páginas de um anteprojeto de lei para "resolver questões que estão mais do que identificadas".

"Não podemos mais fechar os olhos à realidade dramática que retira a dignidade à vida de milhares de pessoas e a grande maioria são mulheres. Há aqui uma grande desigualdade de género: a maior parte das pessoas que se prostituem são mulheres, a grande maioria dos clientes são homens. A prostituição masculina não gera tanta dependência do proxenetismo nem gera tanta exploração como a prostituição feminina. Isto está claro, não há dúvidas", alerta Elza Pais.

Questão de princípio: "Não se pode encarar este fenómeno como trabalho, emprego, profissão ou atividade económica, enquanto direitos universais económicos. Tal violaria as convenções internacionais subscritas por Portugal". E esta é a pedra basilar irremovível do anteprojeto entregue ao líder parlamentar socialista.

"Não seguir este caminho" seria banalizar a "prostituição" como "transação comercial, encorajando o lenocínio, o proxenetismo, o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual e a violência estrutural contra as mulheres que o Estado está vinculado a combater. Subordinaria seres humanos ao dever de subordinação ao poder de uma entidade patronal e à prática obrigatória de atos sexuais".

O anteprojecto é sustentado em quatro ideias chave: garantir "às pessoas que se prostituem o direito à segurança social alterando o Regime Jurídico do Seguro Social Voluntário", reforçar "a prevenção do lenocínio e do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual", alterar o "Código da Publicidade" e criar uma "Estratégia Nacional Global e Integrada para Saída da Prostituição".

Na proposta entregue, as Mulheres Socialistas (MS-ID) estabelecem as regras para o "Reajustamento do Regime Jurídico do Seguro Social Voluntário - alterar a Lei que aprova as Bases Gerais do Sistema de Segurança Social (art 1º a 4º)" de modo a que possa ser concretizado "o exercício do direito à segurança social, previsto no artigo 64º da Constituição, por parte das pessoas que se prostituem e não exercem atividade profissional independente ou por conta de outrem que permita efetivar esse direito".

"É uma solução humanista para proteger quem se dedica a práticas de risco, e que tem a vantagem de não recorrer a qualquer figura nova, mas antes a uma já existente para várias categorias de cidadãs e cidadãos", é sublinhado na proposta.

As alterações ao Código Penal incidem em "tornar inequívoca a constitucionalidade do nº 1 do artigo 169º do Código Penal, através de uma nova redação de todo o preceito" e "reforçar consequentemente a dissuasão do lenocínio, também através da alteração da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro, que estabelece um regime de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado".

Simplificando: "O lenocínio simples tem que manter-se. É preciso clarificar muito bem a noção de prostituição em situação de vulnerabilidade para se resolverem os equívocos interpretativos que têm saído do Tribunal Constitucional", explica Elza Pais.

Outra alteração é a introdução de um novo artigo que reforça a criminalização do proxenetismo e "a associação para fins diretos ou indiretos de prática de prostituição ou do encorajamento à procura ou à oferta". As penas podem chegar, segundo a proposta, aos 8 anos de prisão ou mais ainda e "serem especialmente agravadas sempre que se encontrem envolvidas crianças".

As mudanças propostas no Código de Publicidade pretendem "a proibição e, consequente inclusão no respetivo regime sancionatório, de qualquer forma de publicitação que incitem à procura e à oferta de prostituição, à exploração sexual, à violência sexual, incluindo a humilhação, relativamente a pessoas adultas ou a crianças". Consequência imediata? "O princípio da licitude" poria fim, por exemplo, às páginas de "classificados" com "ofertas de prostituição" que se encontram "nalguns jornais".

E se há "estratégias nacionais" para "tanta coisa" é "fundamental" criar uma para "permitir às pessoas, querendo, sair da prática da prostituição". Para tal, o governo deve concretizar uma Estratégia Nacional Global e Integrada de Saída da Prostituição "dotada da robustez substantiva e financeira adequadas, que inclua designadamente, medidas ao nível de segurança física e psicológica, proteção social própria e da família a cargo, saúde, habitação, educação, formação profissional, apoio ao emprego, à criação do próprio emprego e ao empreendedorismo".

E agora? A decisão está nas mãos do líder parlamentar porque "não podem dar entrada [na Assembleia da República] dois projetos" do PS.

E nesta altura há dois: um da JS que as Mulheres Socialistas contestam por "violar princípios de direitos humanos" e que está em "consulta pública" no site da Juventude Socialista, e o que foi já entregue, formalmente, por Elza Pais e um grupo de deputadas a Eurico Brilhante Dias.

"Ele depois decidirá o que é que vai fazer e o momento em que o vai fazer", diz a antiga deputada.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt