Não olhem para cima, olhem antes para mim

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Don"t Look Up (Não Olhem Para Cima, Netflix) é uma variação interessante sobre o tradicional filme-catástrofe: a história de um cometa gigantesco a caminho da Terra, e do plano científico para o destruir arremessando milhares de opiniões correctas na sua direcção.

O plano derrapa quando a tarefa de chamar a atenção das pessoas, e equipá-las com as respectivas boas opiniões, se revela mais difícil do que o esperado. Os protagonistas - o astrónomo e a estudante de doutoramento que descobrem o cometa - deparam-se com um sortido de dificuldades contemporâneas, e vão sendo sucessivamente ignorados: pelo poder político (demasiado corrupto), pelo jornalismo (demasiado frívolo), e pelo público em geral (demasiado distraído). Há uma ameaça existencial clara e ninguém parece querer saber. É quase como se as coisas fossem extremamente metafóricas, e estivéssemos perante um filme com a coragem de colocar a questão fundamental dos nossos tempos: e se as alterações climáticas fossem um calhau gigante no céu contra o qual fosse possível disparar uns mísseis, mas ninguém o faz por causa da corrupção e da internet?

Num aspecto, pelo menos, o filme é um artefacto exemplar de cultura popular. O seu grande triunfo é reproduzir a lógica essencial da canção pop, que consegue proclamar uma certa universalidade através da pura convicção com que pronuncia cada "eu" como se fosse um "nós" (e cada "baby" como se fosse um "tu aí, sim, tu"). Don"t Look Up executa uma versão acrobática desse truque delicado: durante 145 minutos, comporta-se como se todas as pessoas do mundo fossem estúpidas - excepto a pessoa que está sossegadinha a gostar do filme.

Além de ser um filme sobre a maçada de nem toda a gente ser tão lúcida e racional como nós, é também um filme sobre a importância dos filmes importantes, e como tal, tratou de se blindar com a devida armadura retórica. A personagem de Leonardo DiCaprio serve como porta-voz intradiagético. Numa de várias presenças televisivas para tentar explicar à plebe o risco de extinção da humanidade, exalta-se com os constantes comentários jocosos de um apresentador, e explode: "Não precisamos de ser sempre espertos, engraçados ou agradáveis! Às vezes precisamos de ser capazes de dizer coisas uns aos outros e ter uma conversa honesta".

O realizador Adam McKay mencionou esse diálogo em várias entrevistas como o seu momento preferido, e o mesmo tem sido usado como evidência para mostrar a todos os que acharam Don"t Look Up insuficientemente esperto, engraçado ou agradável que o filme tinha plena noção das suas prioridades, e previu todas as potenciais críticas. A julgar pela campanha de promoção, aliás, a maquinaria defensiva do filme está muito mais afinada do que a maquinaria criativa que o produziu.

A metáfora central, para começar pelo início, não é a melhor. Um problema com forma tangível, data de chegada, e que, na lógica interna do filme, podia ser resolvido caso Meryl Streep carregasse num botão, pode servir para muita coisa, mas não como analogia útil para crises ambientais ou problemas sistémicos. E qualquer cena com o autarca de Tubarão funciona melhor como explicação da dimensão política da luta contra as alterações climáticas do que este filme inteiro.

Uma resposta possível a esta objecção é que qualquer sátira procede pelo exagero, e não precisa de ser subtil. Que não precisa de ser subtil é um argumento irrefutável. A boa sátira é frequentemente obtusa, além de que nenhum filme precisa de ser subtil pela simples razão de que nenhum filme "precisa" de ser seja o que for. A sua existência não satisfaz qualquer "necessidade". A questão é que, a partir de um certo ponto, a insistência nestas isenções especiais - uma sátira com estes alvos não requer subtileza, e certas mensagens são tão "importantes" que convém transmiti-las da forma mais directa possível - vai também rasurar qualquer diferença entre um artefacto cinematográfico e, por exemplo, um post no facebook a dizer em maiúsculas ISTO É TUDO UM PUTEDO LOL. Ambos podem estar cheios de convicção e até de razão, o que só por si não vale nada.

Mas se Don"t Look Up é banal como sátira, isso deve-se sobretudo a não funcionar como sátira. O único exagero cómico é o que sustenta a premissa; o resto da execução procede através da mera transcrição não-cómica da realidade. Estará mais perto da paródia do que da sátira: do resumo da actualidade noticiosa feito com estrelas convidadas que é a especialidade do Saturday Night Live. Há mais piadas engraçadas e comentário certeiro sobre instituições disfuncionais em meia-hora de Veep, ou em quaisquer três cenas aleatórias de Sorry to Bother You. Não é que as piadas aqui sejam más, exactamente. A questão é que também não são muito boas. Nem são inesperadas; nenhum dos alvos é atingido a não ser da forma mais óbvia e previsível. Mais uma vez, é possível argumentar que também isso é deliberado. Há um estilo de humor cuja ambição não tanto fazer as pessoas rir, mas sim acenar veementemente com a cabeça, e Don"t Look Up pertence claramente a essa escola. Mas, chegados aqui, chegamos também ao ponto em que uma metáfora não precisa de ser certeira, uma sátira não precisa de ser subtil, uma comédia não precisa de ser engraçada, uma mensagem não precisa de ser coerente, uma obra de entretenimento não precisa de entreter, e um filme não tem obrigação de mudar o mundo (por muito que os seus co-criadores andem pela internet a sugerir o contrário). Todas estas coisas são verdade, mas a sua acumulação também torna qualquer exercício crítico uma ofensa, ou uma inutilidade. Para cada categoria, há uma intenção nobre que cauciona quaisquer defeitos aparentes - um álibi estrutural tão abrangente que colocar ao filme a prosaica exigência de que seja bom ou interessante parece falta de educação.

No seu pior, o filme age como se os problemas complexos que procura representar tivessem soluções óbvias e fáceis de executar, caso os políticos não fossem tão burros, a imprensa tão cobarde, e a ralé não passasse tanto tempo agarrada aos telemóveis. É uma corrente de pensamento popular, que apela sobretudo aos mesmos segmentos demográficos predispostos para se sentirem superiores a toda a sorte de "chalupas" e "negacionistas", uma corrente tributária da complacente fantasia racionalista de que a única diferença pertinente é a que existe entre pessoas inteligentes e pessoas estúpidas, ou entre pessoas informadas e desinformadas - como se não estivéssemos todos à mercê, em maior ou menor grau, de desejos paradoxais, impulsos auto-destrutivos, heranças culturais não-examinadas, incentivos sociais contraditórios. Uma comédia que queira inspirar confiança artística, ao invés de uma intimidade falsa, não se exclui dos defeitos que denuncia, nem investe todos os seus recursos em ordenar uma sucessão de momentos nos quais o espectador pode ir acenando e dizendo "pois é... concordo... tal e qual...", sem nunca criar um único instante de dúvida, confusão ou ambiguidade.

Uma das funções daquilo a que chamamos "elites" (políticas, mediáticas, ou até artísticas) é servirem como figuras expiatórias. É uma função de conveniência narrativa - permitindo-nos colher os benefícios das decisões ou inacções que repudiamos, mas evitando qualquer sentimento de culpa, e mantendo intactos os privilégios de exasperação. Uma piada semi-falhada da personagem de Jonah Hill no terço final do filme remete para a versão "populista" contemporânea deste tipo de discurso - dividindo o mundo em três tipos de pessoas "vocês, as classes trabalhadoras; nós, os ricos fixes; e... Eles".

É mais um momento em que aquilo que o filme mostra inadvertidamente é muito mais interessante do que o efeito consciente que procurou. Porque é esse o mesmo truque que Don"t Look Up reproduz: excluindo-se retoricamente da categoria de que faz parte (a de mero entretenimento e, segundo os seus próprios termos, "distração") e posicionando a sua importância artificial ao lado de quem vai lisonjeando. Em última instância, encarna uma espécie muito peculiar de centrismo - não um centrismo ideológico, ocupando tepidamente o espaço entre qualquer esquerda ou direita, mas um centrismo vertical, de impotência resignada, mas confortável, que é passivamente contra as Elites Corruptas lá em cima e contra as Massas Ignorantes lá em baixo.

Essa é a derradeira aliança que este filme (do qual, como o Laundromat de Soderbergh, ninguém se vai lembrar daqui a 6 meses) tenta forjar. Um consenso temporário de razão e razoabilidade entre um produto da Netflix e o consumidor inteligente: devidamente informado e devidamente entretido por este entretenimento que parece concordar tanto connosco que é impossível não partilhar também todas as nossas qualidades, que são evidentes, e imensas.


Escreve de acordo com a antiga ortografia

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